A injustiça pode penetrar até nos âmbitos mais insuspeitos da cultura humana. A prova é que se infiltrou nos provérbios, como bem exemplifica o adágio italiano: “Traduttore traditore – O tradutor é um traidor”. Mas, apesar do agravo que lança ao honrado ofício, tal aforismo tem seu quê de verdade.
Quem não consideraria uma traição traduzir saudade por añoranza, longing, regret ou rimpianto? Os matizes que tornam tão expressiva nossa palavra perpassam por essas traduções tanto quanto a luz por um vidro fosco: sem clareza, confusa e pardacenta.
Uma tradução impossível
Para mitigar essa consequência do pecado de Babel (cf. Gn 11, 7-9), o tradutor que não deseje ser traidor deve conhecer perfeitamente o idioma que interpreta e aquele para o qual traduz. E isso tanto no que tange à gramática, sintaxe ou semântica, quanto aos provérbios típicos, às nuances de cada expressão, às interjeições, metáforas, ironias, ordem das palavras, subentendidos… tudo, enfim, que faz a eloquência de um povo.
Mas não só. É obrigação sua conhecer a fundo a obra em questão e, mais do que tudo, o autor: suas convicções e intenções, sua personalidade e modos de dizer, ser e entender, seu contexto histórico, sua vida, suas experiências. Antes mesmo que o livro, é necessário entender quem o compôs.
A fidedigna tradução da Bíblia era uma tarefa quase impossível, mas houve um homem que foi capaz de realizá-la: São Jerônimo
Agora imagine o leitor uma obra impossível, ou quase, de se verter a outro idioma: um livro escrito em línguas diferentes – de preferência com gramáticas e alfabetos diversos – e variado quanto aos estilos literários; elaborado ao longo de séculos para povos de todas as épocas; dotado de sentido tanto literal quanto alegórico; no qual não haja palavra alguma sobrando nem faltando; cujo autor, ou melhor, cujos autores fossem conhecidos quase exclusivamente por meio dessa obra e que não tivessem sido senão “plumas” de um único Autor capaz de semelhante variedade. Haveria alguém com coragem para encetar tal tradução?
Sim, seu nome foi Jerônimo. E esse livro é a Bíblia Sagrada.

Preparação inadvertida
São Jerônimo reuniu em si todas qualidades mencionadas para o desempenho de tão arriscada missão: do lado humano, o domínio do latim, grego, siríaco e hebraico, bem como de literatura e exegese; da parte espiritual, a santidade para compreender ortodoxamente as páginas sagradas, ponto indispensável já que só entende a Deus aquele que O ama. Como, pois, terá o Divino Inspirador das Escrituras preparado o seu intérprete?
Nascido em 347 de uma abastada família de origem grega, em Estridão – fronteira do Império Romano e cruzamento de povos, falas e culturas –, ainda jovem é enviado para estudar na Urbe. Ali segue por quatro anos as aulas de gramática, retórica e literatura do famigerado Élio Donato, reputado como o melhor mestre de então. Distingue-se dos colegas por sua capacidade intelectual, pela avantajada memória e pelo devotamento às letras romanas, o qual redundou na organização de uma enorme biblioteca pessoal. Os primeiros equipamentos para a sua missão estavam conquistados: o latim, a literatura e a erudição.
Se por este lado contrasta com seus companheiros, quanto aos costumes é-lhes idêntico: ainda não batizado – era o tempo em que os homens recebiam as águas regeneradoras quando adultos –, com dinheiro e amigos licenciosos, sem qualquer parente a freá-lo, Jerônimo leva uma vida correspondente à proverbial corrupção de Roma. Por pouco tempo, porém…
O edito de 17 de junho de 362, promulgado por Juliano, o Apóstata, retirava certos direitos dos católicos. Mas o que não supunha o césar é que um estudante se serviria desse começo de perseguição para afirmar sua fé: Jerônimo, com o ardor da mocidade e do temperamento, inscreve-se entre os catecúmenos, sendo batizado três anos depois pelo Papa Libério. Daí em diante seria católico na força do termo; aquilo que hoje talvez se chamaria de “fanático”… Terminados os estudos, resolve encetar a via religiosa: parte a pé para o Oriente ansiando pelo deserto. Na primavera de 375 chega a uma comunidade cenobita em Cálcis, onde passa dois anos em meio a penitências, tentações, enfermidades e arroubos de amor a Deus. Conquista assim outro elemento indispensável à sua vocação: a santidade.
Para fugir às seduções da carne que de contínuo o assaltam em seu retiro, passa o tempo aprendendo o hebraico com um judeu convertido. Pouco depois, deixa o ascetério e, ordenado presbítero em Antioquia, mesmo local onde seguira aulas de exegese, parte para o Concílio de Constantinopla em 381. Aí aperfeiçoa vertiginosamente os rudimentos de grego que possuía e as suas já suculentas bases exegéticas. Dois passos rumo ao cumprimento do desígnio divino: desenvoltura em mais dois dos idiomas das Escrituras Sagradas – lhe faltaria para sempre um perfeito aramaico – e a arte de interpretá-las.
Uma missão arriscada
O mencionado concílio bizantino precedeu de perto um outro realizado em Roma. Abertas as sessões, vemo-lo redigindo as atas enquanto secretário papal… Sim, Jerônimo de Estridão, que havia pouco era um monge do deserto! Acompanhando o seu Bispo à Cidade Eterna, foi agregado aos serviços em Latrão por ser visto como um expert cristão – raridade! – nas línguas bíblicas. A par dessas funções, escreve e traduz abundantemente, nunca abandonando os estudos.

São Dâmaso, Sumo Pontífice nesses anos, intuindo um especial chamado no jovem secretário, testa-lhe as capacidades: pede que explique o significado do termo Hosanna e resolva outras questões bíblicas. As respostas se apresentam tão rápidas e fulgurantes – acompanhadas ainda de um tratado contra o herege Helvídio e da tradução de várias obras exegéticas de Orígenes – que o Papa ousa desalojar de suas preocupações um problema que ali residia havia muitos anos: a tradução do Novo Testamento.
Enquanto secretário papal, Jerônimo recebeu de São Dâmaso a incumbência de traduzir o Novo Testamento para o latim
Circulavam, então, pelo mundo católico múltiplas traduções latinas das páginas sagradas: contraditórias, falhas, pobres, eram “tantas as versões quantos os manuscritos”.1 Tratava-se da chamada Vetus Latina. A solução estava numa revisão encetada por uma só cabeça. E essa cabeça só poderia ser a de Jerônimo. Chegado a esta conclusão, São Dâmaso pede no ano de 383 a tradução do Novo Testamento ao seu secretário. A demora nunca coexistiu com este que, num trabalho cuja velocidade até hoje espanta, em 384 entrega ao Papa uma versão latina dos Evangelhos por ele traduzida com base em fidedignos textos gregos.
Apesar do apoio do Santo Padre, a obra recebeu ataques de todos os quadrantes. Falava-se de um desrespeito para com as antigas edições. Mas Jerônimo, apoiado pelo Pastor dos pastores, nada temia; a tal ponto que escrevia abertamente contra a vida dissoluta dos clérigos e monges romanos. Nada temia… até o dia da morte de São Dâmaso. A perseguição que então contra ele se levantou obrigou-o a voltar ao Oriente em 385. A partir de então residiria em Belém.
A vocação ou o mundo
Em seu novo domicílio, São Jerônimo empenhou-se na continuação da revisão dos textos bíblicos latinos. Seu objetivo era agora passar à língua de Virgílio todo o Antigo Testamento. O trabalho era mais extenso, mas aparentava menos dificuldades. De fato, a versão grega dos Setenta – Septuaginta –, a partir da qual se procederia à tradução, era um texto em extremo confiável, o mais utilizado pela Igreja primitiva, o mais respeitado, quase sagrado. Não haveria grandes obstáculos.
O nosso santo biblista desenvolvia seu ofício manuseando a Hexapla de Orígenes,2 a qual cotejava as versões mais conceituadas do Antigo Testamento. Mas à medida que o fazia apercebia-se de não poucas divergências entre a Septuaginta e a Hebraica. Não se incomodou, porém, o bastante para deixar a famosa versão grega, limitando-se a algumas correções. Voava para a conclusão do trabalho, e só um grave acontecimento o poderia deter. E foi exatamente um grave acontecimento que se deu: numa manhã o tradutor constatou que as folhas que continham o fruto de quatro anos de esforços – entre 386 e 390 – haviam desaparecido.3
O Santo biblista resolveu-se ao heroísmo de se basear apenas nos “originais” hebraicos, e suas traduções suplantaram os antigos textos latinos
Vendo nisso um sinal divino, deixou a Versão dos Setenta apenas como escora e resolveu-se ao heroísmo de se basear apenas nos “originais” hebraicos. Heroísmo? Sim, pois sabia que meio mundo, ou mundo e meio, se levantaria contra ele: já havia rejeitado os tradicionais textos latinos e agora “desrespeitaria” a tão veneranda Bíblia dos Setenta… Aos olhos de seus contemporâneos, era quase um sacrilégio.

A despeito do apupo geral, o tradutor encetou aquilo que sabia ser sua vocação: no ano 392 terminou o saltério e os profetas, até 396 os livros históricos – com exceção dos Juízes, revistos até 400 – e o de Jó, em 400 os sapienciais e o Pentateuco. Concluiria entre 404 e 405 os deuterocanônicos, como que transportado em asas: o Livro de Tobias traduziria em uma jornada e o de Judite em uma noite. Esse conjunto de traduções começou a suplantar os antigos textos latinos e, devido à sua extensa divulgação, passou a cognominar-se de Vulgata.
Assim, apesar do pouco reconhecimento humano à sua obra, o Estridonense deixava eximiamente traduzida toda a Escritura. As gerações posteriores lhe agradeceriam, e com razão. Com a “verdade hebraica”, São Jerônimo restituiu aos cristãos várias profecias messiânicas que não se percebiam na versão grega, desta eliminou determinadas confusões e fez calar o escárnio dos judeus que riam das traduções cristãs.4 Acrescentemos que, contrariamente a muitas versões anteriores, a Vulgata não traduz palavra por palavra as passagens bíblicas. Ademais, transposto para o latim com o talento literário digno de um Cícero, seu texto era de leitura agradável para os ouvidos sempre sensíveis dos romanos. Lembremo-nos que personagens como Santo Agostinho, e o próprio São Jerônimo, demoraram para encontrar gosto nas Sagradas Escrituras devido a este pormenor estilístico.5
De Jerônimo até nós
Consequência: os fiéis se aproximaram dos prados sempre verdejantes da Revelação. O texto da Vulgata foi o mais copiado da História e um dos preferidos entre os seletos da imprensa: a sua enorme difusão é uma realidade ofuscante.6 Espalhado por todos os cantos da terra, no medievo tornou-se o grande livro de estilo e inspiração para os escritores, eruditos e sábios.
Cognominada “Vulgata”, o texto de São Jerônimo espalhou-se pela terra, e foi sobre esta versão da Bíblia que a Igreja solidificou sua doutrina
Mais do que isso, foi a versão sobre a qual a Santa Igreja solidificou sua doutrina, por meio dos concílios. Um dos decretos de Trento declara que “a antiga edição Vulgata, aprovada pela Igreja, já de uso secular, deve ser tida como autêntica […] e que ninguém, por nenhuma razão, pode ter a audácia ou presunção de rejeitá-la”.7 Posteriormente dela se fará uma revisão crítica, a Nova Vulgata, promulgada em 1979 na Constituição apostólica Scripturarum thesaurus e utilizada pela Igreja latina na Liturgia e nos documentos oficiais.

A maioria das versões vernáculas, ademais, foram elaboradas a partir do trabalho de São Jerônimo. De maneira que a Esposa Mística de Cristo ouve a voz de seu Deus a partir desta tradução, refuta os hereges com ela em mãos e, lendo-a, ensina os seus filhos. Provavelmente, é a Bíblia que o leitor tem em casa…
Uma traição?
Por fim, a pergunta dolorosa: se o tradutor costuma ser um traidor, não será que a Vulgata atraiçoa o Divino Inspirador dos textos sagrados? Se nas Escrituras até a “própria estrutura das palavras involucra um mistério”8 e “a verdade do dogma às vezes se decide a partir de uma só sílaba”,9 como supor que uma tradução justifique todas as interpretações que dois mil anos de exegese não puderam ainda esgotar? Não terá São Jerônimo reduzido à falibilidade humana a infinita grandeza da Revelação de Deus?
Pelo contrário, o asceta de Belém conferiu segurança à fraqueza humana, concedendo-lhe uma versão fiável das Escrituras, e levou a todo o orbe, sem sair de sua cela, a semente da Palavra Sagrada que floresceria em homilias, meditações e orações de tantos homens e mulheres.
A indiscutível autoridade da Vulgata sobrevém de um título de seu autor. Não o de erudito, exegeta ou linguista, nem o de biblista, tradutor ou literato, mas o que mencionamos antes do nome de Jerônimo: Santo. Sobretudo, valeu-lhe o respeito das gerações o fato de a Santa Igreja, sempre assistida pelo Espírito Santo, a ter assumido como própria. A humanidade repousa tranquila sobre as sagradas páginas, pois que sabe que todos poderiam trair a Deus, exceto um Santo… e, menos ainda, sua própria Esposa Mística. ◊
Notas
1 SÃO JERÔNIMO. Prólogo a los Libros de Josué y de Jueces. In: Obras Completas. Madrid: BAC, 2002, v.II, p.467.
2 Composta por Orígenes entre os anos 228 e 240, trata-se da mais importante obra de crítica textual da Antiguidade cristã, a qual confrontava em seis colunas paralelas o texto da Septuaginta com o texto hebraico e outras versões gregas do Antigo Testamento. Jerônimo se utilizou especialmente da quinta coluna, que apresentava a Versão dos Setenta (cf. HEXAPLA. In: HERIBAN, Jozef. Dizionario terminologico-concettuale di scienze bibliche e ausiliare. Roma: LAS, 2005, p.473-474).
3 Cf. BERNET, Anne. Saint Jérôme. Étampes: Clovis, 2002, p.345.
4 Cf. CARBAJOSA, Ignacio. “Hebraica veritas versus Septuaginta auctoritatem”. Existe un texto canónico del Antiguo Testamento? Estella: Verbo Divino, 2021, p.43-53.
5 Cf. SANTO AGOSTINHO. Confissões. L.3, c.5, n.9.
6 Cf. BERZOSA, Alfonso Ropero. Versiones latinas. In: Gran diccionario enciclopédico de la Biblia. 7.ed. Barcelona: Clie, 2021, p.2603.
7 DH 1506.
8 SÃO JERÔNIMO. Epistola LVII, n.5. In: Obras Completas. Madrid: BAC, 2013, v.Xa, p.569.
9 DH 2711.