É bem paradigmática — não só para cada alma, mas também para a Igreja — essa tempestade pela qual passaram os Apóstolos: após as borrascas, a Igreja ergue-se sempre mais forte, mais jovem e com a sua beleza incomparavelmente acrescida.
Evangelho do 12º Domingo do Tempo Comum
35 Naquele mesmo dia, ao cair da tarde, disse-lhes: “Passemos à outra margem”. 36 Eles, deixando a multidão, levaram-n’O consigo, assim como estava, na barca. Outras embarcações O seguiram. 37 Então levantou-se uma grande tempestade de vento, e as ondas lançavam-se sobre a barca, de tal modo que a barca se enchia de água. 38 Jesus estava na popa a dormir sobre o travesseiro. Acordaram-n’O e disseram-Lhe: “Mestre, não Te importa que pereçamos?” 39 Ele levantou-Se, ameaçou o vento e disse para o mar: “Cala-te, emudece”. O vento amainou e seguiu-se uma grande bonança. 40 Depois disse-lhes: “Por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?” 41 Ficaram cheios de grande temor, e diziam uns para os outros: “Quem será este, que até o vento e o mar Lhe obedecem?” (Mc 4, 35-41)
I – Um pouco de História
Entre os grandes sermões sobre o Reino (o da Montanha e o das Parábolas) deu-se a viagem narrada no Evangelho de hoje, tendo como ponto de partida a famosa cidade de Cafarnaum, à qual Jesus e seus discípulos ainda retornariam.
Sempre rodeado de muita gente, conseguia ser mais visto e ouvido por todos quando utilizava a natural inclinação da praia e os momentos de calmaria das águas, ao pregar de dentro de uma barca no Lago de Tiberíades. Esse “mar” de Genesaré, ou da Galiléia, como costumeiramente é chamado, e que se localiza ao nordeste da Palestina, com o tempo passou a ser a fronteira oriental da Galiléia. Tem um tamanho considerável, sobretudo para as diminutas concentrações populacionais daqueles tempos, pois chega a ter 12 quilômetros de largura e 21 de comprimento, com uma superfície de 170 km2, e 12 a 18 metros de profundidade em certas partes.
É junto às margens desse lago que se encontra a famosa cidade de Mágdala, na qual Maria, irmã de Lázaro, decaíra moralmente. Ali viveu durante anos, num castelo à beira das águas, antiga propriedade de sua família. Cidade, naqueles tempos, de grande circulação de mercadorias, de refinado luxo e, como conseqüência, de costumes corrompidos. É nas proximidades desse lago que, além de Cafarnaum, encontramos as outras duas cidades que mais assistiram aos milagres do Senhor, sem se converter: Corozaim e Betsaida.
Nessas regiões Nosso Senhor atuou seguidamente, realizando retumbantes milagres como a multiplicação dos pães e dos peixes, e empreendendo uma de suas mais famosas viagens.
Segundo o historiador Flávio Josefo, por essa época o grande lago era cenário de uma intensa atividade. Havia 230 embarcações só em Mágdala, sinal da grande produtividade da indústria pesqueira em toda a circunvizinhança.
II – O acontecimento
A multidão se espremia a cada instante para melhor acompanhar as maravilhas saídas dos lábios do Salvador. De fato, dissera Ele: “Está escrito: Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4, 4). Todos estavam presos àquela adorável voz. Queriam aproveitar as nesgas de luz solar que ainda restavam, para se alimentar daqueles manjares eternos. Por outro lado, em meio ao cansaço daquela ininterrupta jornada, Jesus planejava lançar mão de um de seus refúgios, assim classificados por São Remígio: “Lê-se que o Senhor teve três refúgios, a saber: o barco, o monte e o deserto. Sempre que a multidão O assediava, refugiava-se em um deles”1.
O Divino Mestre, antes do anoitecer, determinou aos Apóstolos que rumassem ao outro lado, ou seja, à cidade de Gerasa. Chegara o momento dos últimos pedidos e das incontáveis despedidas finais, naquele alvoroço tão próprio ao temperamento oriental. Não deviam faltar aqueles ou aquelas que, não se importando em algo molhar suas vestimentas, aproximaram-se da embarcação para se beneficiar das derradeiras graças daquele abençoado convívio.
Para melhor exercitar a confiança no Pai, alçadas as âncoras, partiram as embarcações sem nenhuma provisão. Comenta Andrés Fernández Truyols SJ:
“O mar estava em bonança; o barco deslizava, suave e ágil, sobre o liso cristal das águas.
“Os Apóstolos conversavam tranqüilamente e faziam seus cálculos: dentro de umas duas horas, antes do cair da noite, chegariam à margem oposta, distante apenas uns doze quilômetros. Estavam longe de pensar que pouco depois uma súbita tempestade poria sua fé e confiança a dura prova, proporcionando ao Divino Mestre a ocasião de dar uma esplêndida mostra de seu soberano poder.
“Esse diminuto Mar da Galiléia, que de ordinário apresenta-se na aprazível tranqüilidade de suas águas, guarda sempre latente a ameaça de alguma furiosa tempestade.
“Situado a mais de duzentos metros abaixo do nível do Mediterrâneo, e apertado de quase todos os lados por um cinturão de montes, recebe sobre sua lisa superfície os ventos que se precipitam do alto do Hermon. Sob esse duro golpe, suas águas se revoltam e saltam como fogoso corcel golpeado pelo chicote. Foi o que se passou nesse dia em que os Apóstolos, ao deixarem a pequena enseada, viram as águas muito tranqüilas, sem notar o menor indício de tormenta próxima.
“Jesus aproveitou essa tranqüilidade para descansar das fadigas do dia. Estendeu-se na popa, apoiando a cabeça sobre o travesseiro, como nota Marcos (4, 38), provavelmente um pequeno saco de couro cheio de lã, simples e tosco, que, para comodidade dos próprios marinheiros, ou talvez de algum viajante distinto, com certeza as barcas costumavam levar, uma vez que o Evangelista trata disso como algo bem determinado e conhecido, acrescentando o artigo definido (έπί τò πρσχεφάλατσυ). Como os anjos do Céu deveriam estar contemplando seu Rei e Senhor deitado sobre a dura madeira: restaurando suas forças com o sono, Ele, que vigia desde toda a eternidade; vencido pela fadiga, Ele, que move com seu dedo o universo inteiro!
“De súbito, desenhou-se no rosto dos Apóstolos um movimento de inquietação; interrompeu-se a conversa, fixaram-se as vistas no horizonte: sua longa experiência lhes fazia pressentir a tormenta. E ela se precipitou, e desde logo com um ímpeto formidável.
“Enquanto a tempestade fremia, Jesus continuava dormindo.
“No princípio, os Apóstolos respeitariam o sono do Mestre. Desceriam as velas, tomariam os remos, poriam em jogo os meios sugeridos por sua perícia na arte de navegar para enfrentar o perigo ameaçador. Mas o mar se enfurecia mais e mais, e a embarcação corria o risco de ser tragada pelas ondas. Então, como supremo recurso, achegam-se ao Mestre: ‘Senhor, salva-nos, pois perecemos!’ Ou, segundo a expressão mais viva de São Marcos: ‘Mestre, não Te importa que pereçamos?’
“Tais palavras revelam bem quão turbados estavam os Apóstolos e como havia diminuído sua confiança. No entanto, não estava Jesus com eles? Não estava ali quem disse: ‘Fui Eu quem pôs a areia por limite do mar (…) Por mais que se lhe agitem as ondas, são impotentes, murmuram, mas não vão além’? (Jr 5, 22)”2.
III – O Evangelho
35 Naquele mesmo dia, ao cair da tarde, disse-lhes: “Passemos à outra margem”.
São Lucas também assim nos relata esse fato (8, 22-25). São Mateus se cala sobre esse particular. Embora nenhum dos dois Evangelistas declare as razões que levaram o Divino Mestre a tomar essa decisão, são elas facilmente dedutíveis. Como anteriormente dissemos, sintetizam-se na estafa física depois de um laborioso dia. Não nos esqueçamos da natureza humana de Jesus, se bem estivesse unida à divina. Assim, São João também menciona o cansaço do Salvador naquela ocasião em que Ele, estando sentado junto ao poço, vê surgir a samaritana, momento no qual ainda manifesta ter sede (cf. Jo 4, 6-7).
No presente episódio, a plausibilidade dessa hipótese se torna clara pelo profundo sono no qual Jesus caiu, logo depois de subir à barca.
36 Eles, deixando a multidão, levaram-n’O consigo, assim como estava, na barca. Outras embarcações O seguiram.
Maldonado interpreta o fato de tomarem os Apóstolos a mesma embarcação de Jesus como algo providencial, pois assim, quando Ele os repreendesse pela falta de fé, isso poderia ser feito com toda a liberdade. Parece-nos, porém, mais provável que as circunstâncias assim o exigissem, uma vez que a barca lhes pertencia. Além disso, já se tornara tradicional estarem eles com o Mestre.
Também tradicional era a falta de preparativos para a viagem. Quantos pães e peixes possuíam eles por ocasião dos dois milagres de sua multiplicação? “Não leveis nada para o caminho, nem bastão, nem alforje, nem pão, nem dinheiro, nem leveis duas túnicas” (Lc 9, 3), dissera-lhes Ele. Por isso conduziram-n’O na barca na situação em que se encontravam. De outro lado, pondera São João Crisóstomo, Jesus quis tê-los por testemunhas de seus milagres, mas desejava evitar aos outros o escândalo de verem que eles tinham tão diminuta fé.
“Levantou-se uma grande tempestade”
37 Então levantou-se uma grande tempestade de vento, e as ondas lançavam-se sobre a barca, de tal modo que a barca se enchia de água.
Essa tempestade não se armou por acaso. Não poucas vezes, por causa de uma preocupação naturalista, quer-se atribuir aos elementos a causa, a força e a glória dos milagres. Essa simplória tendência chama a atenção de certos autores de fama, como, por exemplo, Fillion: “Em cada uma das categorias dos milagres evangélicos já ficaram indicadas as objeções mais comuns e mais recentes do racionalismo, e os princípios que ajudam a refutá-las. Não é, pois, necessário ocupar-nos das elucubrações da crítica liberal acerca dos milagres do Salvador, considerados isoladamente.3. E, a seguir, o conceituado autor expõe o pensamento de vários dos racionalistas contemporâneos.
Infelizmente, os limites deste artigo não permitem discorrer sobre esse recalcitrante racionalismo, um mal muito mais difundido do que parece. Contra seu dogmatismo, lembremo-nos de que “pela palavra do Senhor foram feitos os céus; e pelo sopro de sua boca [formaram-se] todos os seu exércitos. Ele junta como num odre as águas do mar; Ele põe as ondas como em reservatórios” (Sl 32, 6-7). Esse é o poder de Deus, muito acima do poder da razão humana, também por Ele criada.
“Levantou-se uma grande tempestade”. Alguns autores admitem ter sido essa tempestade ordenada pelo próprio Senhor, e foi ela grande para que grande também fosse o prodígio. Ademais, quanto maior fosse o medo dos seus discípulos, maior seria o alívio de, por Ele, terem sido salvos.
As tormentas interiores
Ao longo dos dois últimos milênios, com freqüência os comentaristas fazem uma aproximação entre esse paradigmático episódio e a Igreja ou a alma em sua vida espiritual. Quando falam da Igreja, referem-se mais às perseguições por ela sofridas, assim como às divisões e heresias surgidas em seu seio. Ao fazerem a aplicação à alma, concentram sua atenção nos justos e não nos pecadores, os quais, mesmo que possam ser considerados como uma “barca”, nesta não se encontrará Cristo, nem sequer dormindo.
Seja como for, todos nós passamos por tormentas interiores, às vezes, violentas. Dão-se elas por causas exteriores, mas com freqüência também por razões interiores. Sobre estas se multiplicam as apreciações destes ou daqueles autores, como, por exemplo, as do Beato João de Ávila:
“Há aqueles que perderam essa jóia da castidade por castigo de Deus que, como diz São Paulo, com justo juízo os abandonou ‘aos desejos desonestos de seus corações’ (Rm 1, 24), como nas mãos de cruéis carrascos. (…) E mesmo que isso seja geral com todos os pecados, é especialmente com o da soberba. Deus costuma castigar a soberba secreta com a luxúria manifesta. Nabucodonosor, por castigo de sua soberba, foi rebaixado ao nível dos animais (Dn 4, 20-31), no qual permaneceu até conhecer e confessar que a excelência do reino é de Deus.
“Há quem tem a soberba da castidade, crendo quase que ela é devida a suas forças. Deus o expulsa de entre os seus, e, uma vez fora da companhia dos anjos, ele cai entre os animais.
“Outros são soberbos e desprezam seus próximos por vê-los carentes de virtude, especialmente da castidade. Parecem-se com o fariseu em sua oração: ‘Não sou mau como os outros homens, nem adúltero’ (Lc 18, 11). Quantas pessoas já vi serem castigadas com a queda, por cometer este pecado! ‘Não condeneis e não sereis condenados’ (Lc 6, 37). ‘Com a mesma medida que medirdes sereis medidos’ (Mt 7, 2). ‘Ai de ti que desprezas, porque serás desprezado!’ (cf. Is 33, 1).
“Somos, todos os homens, da mesma massa, e todos podemos cair nos pecados em que tenham caído nossos próximos. Tiremos, pois, bem do mal alheio, tomando como salutar advertência a nós a queda de nosso próximo.
“Não nos esqueçamos de Davi, o qual, segundo diz São Basílio (cf. Hom. in Ps. 38: PG 30, 87) caiu porque, posto diante da abundância de graças, acreditou-se seguro. ‘Eu disse em minha abundância: Não serei jamais mudado’ (Sl 29, 7). Esqueceu-se da sentença do Eclesiástico: ‘Nos dias dos bens que temos, recordemo-nos dos males em que podemos cair’ (cf. 11, 27).
“Parecida com essa soberba é a vã confiança de quem procura a castidade apoiando-se apenas em suas próprias forças. Este pode repetir o que foi dito pelos apóstolos: ‘Trabalhamos a noite inteira em vão’ (Lc 5, 5), ou pelo Eclesiástico: ‘Quanto mais eu a procurava, tanto para mais longe fugiu de mim’ (7, 24). O que significa excesso de confiança em si mesmo e falta de oração ao Senhor e a Maria.
“Quando era o tempo em que os reis (cf. 2 Sm 11, 1-4) saíam para batalhar, Davi enviou seus generais, mas ele, acentua o livro santo, deixou-se ficar em casa e, passeando, caiu na tentação e no pecado de adultério. Quem foge do trabalho e do cumprimento de suas obrigações, logo será tentado.
“Por fim, a rebeldia da carne, de que sofre a humanidade, vem da desobediência de Adão. Quem desobedece a Deus e a seus representantes — os superiores —, costuma ser logo castigado com a revolta de suas potências inferiores à razão”4.
A quem Deus castiga? Por incrível que pareça, Ele permite à tempestade desabar sobre as almas amadas por Ele. É o próprio Deus que declara fazer uso desse procedimento: “Não desprezes, meu filho, as lições de teu Deus; nem te irrites quando Ele te repreender, pois o Senhor castiga aquele a quem ama, como a um filho querido” (Pr 3, 11-12). “Aos que amo, Eu os repreendo e castigo. Sê, pois, zeloso e arrepende-te” (Ap 3, 19).
Deus nos corrige através da tribulação
Santo Agostinho é também categórico a esse propósito, pois assevera não pertencer à classe dos filhos quem não passa por atribulações. E em São Paulo encontramos a perfeita explicação: “É para vossa emenda que sofreis provação. Deus vos trata como filhos. E qual é o filho a quem seu pai não corrige? Se, porém, fôsseis privados da correção, da qual todos são participantes, então seríeis bastardos, e não filhos legítimos. Além disso, visto que nossos pais segundo a carne nos castigam, e nós os respeitamos, quanto mais não devemos ser obedientes ao Pai das nossas almas, para termos a vida? E aqueles castigavam-nos por um período de poucos dias, como bem lhes parecia. Este, porém, para nosso bem, para nos tornar participantes da sua santidade” (Hb 12, 7-10).
Esses trechos das Escrituras fazem-nos melhor compreender quanto o aparente sucesso dos maus, suas delícias e prosperidade muitas vezes podem significar um dos piores castigos. Davi nos ensina como “o ímpio diz em sua arrogância: Não há castigo! Deus não existe! (…) Diz em seu coração: Jamais serei abalado, não hei de cair na desgraça” (Sl 9, 25-27).
Assim, podemos dizer de Deus que, sendo Pai de toda consolação, é também o Pai da tribulação. Através desta, Ele nos corrige. Castiga-nos a fim de nos emendarmos, pois jamais quer a morte do pecador, mas sim que se converta e viva (cf. Ez 33, 11).
Bons e maus passam por borrascas
Em síntese, bons e maus passam por borrascas; o problema está na disposição interior de uns e de outros durante elas, conforme explica Santo Agostinho:
“Apesar de os justos e os maus sofrerem o mesmo tormento, virtude e vício não são a mesma coisa. Porque, assim como com um mesmo fogo o ouro resplandece, descobrindo seus quilates, e a palha fumega, e com o mesmo debulhador se quebra a arista da espiga do trigo e limpa-se o grão, assim também uma mesma adversidade prova, purifica e aprimora os bons, enquanto reprova, destrói e aniquila os maus. Por conseguinte, quando atingidos por uma mesma calamidade, os pecadores abominam a Deus e blasfemam contra Ele, e os justos O glorificam e pedem misericórdia. A diferença entre tão variados sentimentos consiste, não na qualidade do mal que se padece, mas nas pessoas que o sofrem; porque, revolvidos da mesma maneira, o lodo exala um fedor insuportável, e o perfume precioso, uma fragância suavíssima”5.
O “sono” de Jesus em nossa alma
38 Jesus estava na popa a dormir sobre o travesseiro.
Tal como a tempestade, o sono de Jesus naquele momento parecia ser preconcebido segundo uma finalidade que Ele tinha em vista. Era altamente formativo para seus discípulos sentirem a própria contingência e, assim, serem estimulados a recorrer a Ele em última instância. Com isso estariam criadas as condições para a manifestação de seu poder divino. A esse respeito nos diz São João Crisóstomo: “Se Ele tivesse estado acordado, ou eles não tivessem temido nem tivessem rogado que os salvasse quando a tempestade se levantou, não teriam pensado que pudesse fazer tal milagre” 6.
Com muito acerto, fazem os autores uma aproximação entre esse fato ocorrido com os Apóstolos e o mistério do “sono” de Jesus, que às vezes se repete durante a tempestade pela qual passam nossas almas. Esse “sono” de Jesus poderá ser real ou aparente.
Quando nós nos afastamos de Jesus: “sono real”
Se, por desgraça, abraçamos o pecado mortal, nós nos afastamos de Jesus. Este é o mais terrível dos “sonos”, pois somos nós que O obrigamos a distanciar-Se de nós, além de perdermos a graça santificante. Logo em seguida arma-se a tempestade de nossas más tendências e paixões desordenadas, e submerge nosso senso moral. E se, nessa situação, somos apanhados pela morte, Deus dormirá em relação a nós o “sono eterno” de nossa terrível condenação ao inferno. Não haverá jamais, neste caso, meios de despertá-Lo.
Para o progresso de nossas almas: “sono aparente”
Há circunstâncias dolorosas em nossa vida espiritual, nas quais Jesus parecerá dormir, causando-nos a sensação de estarmos abandonados. Essa será uma ótima oportunidade para combater nossa presunção e compreender que sem Ele nada podemos fazer (cf. Jo 15, 5). O temor de Deus não só é o princípio da Sabedoria, mas também excelente meio de santificação (cf. Fl 2, 12). Privados por um período das delícias de suas consolações, mais facilmente nos purificamos das desordens de nossos afetos.
Também nosso sono deve ser santificado
Por outro lado, conforme comenta Santo Agostinho, levando-se em conta que as menores ações de Jesus contêm lições de alta sabedoria para nós, o sono de Jesus na barca mostra-nos quanto devemos santificar nosso repouso. Afinal de contas, o sono ocupa uma considerável parte de nossa existência sobre a terra e, em certo sentido, é imagem da morte. Se desejamos que nossa morte seja santa e piedosa, é indispensável que também o seja sua prefiguração. É fundamental adormecermos sob as bênçãos do Sagrado Coração de Jesus e de Maria Santíssima: “Guardai-nos também quando dormimos! (…) nosso corpo repouse em sua paz!”7. Para tal, nada melhor do que evitar atitudes e modos de ser penetrados pelo espírito de moleza, a falta de pudor ou a sensualidade.
Na hora da tempestade, desperta tua fé e virá a bonança
38 Acordaram-n’O e disseram-Lhe: “Mestre, não Te importa que pereçamos?”
É bem paradigmática para nós essa tempestade pela qual passaram os Apóstolos. Por quantos perigos não passamos nós também, durante a vida? Se eles são evitáveis, não devemos enfrentá-los; se a eles nos expusermos, se os procurarmos e os amarmos, é certo que pereceremos. A fuga, nesses casos, acompanhada de oração, é o melhor remédio.
Quando, porém, sem culpa nossa, damo-nos conta de estarmos involucrados em algum perigo, sigamos o conselho de Santo Agostinho:
“Cristão! em tua embarcação dorme Cristo; desperta-O, e Ele ameaçará a tempestade e será restabelecida a calma. Os discípulos, a ponto de naufragarem junto a Cristo adormecido, representam os cristãos em perigo de soçobrar porque sua fé dorme. Já sabes o que disse São Paulo: ‘que Cristo habite pela fé em vossos corações’ (Ef 3, 17). Segundo a presença de sua formosura e divindade, Cristo está sempre com o Pai. Segundo sua presença corporal, vive agora no Céu sentado à direita do Onipotente. Segundo a presença da fé, está dentro de nós. Portanto, se te vires em perigo, será porque Cristo dorme, isto é, será porque não vences as concupiscências que se levantam como vendavais de mau conselho, será porque tua fé está adormecida. No que consiste esse sono da fé? Em te esqueceres dela. E no que consiste despertar a Cristo? Em despertar a tua fé, em recordar o que crias. Recorda, portanto, tua fé, desperta a Cristo, e tua própria fé dominará as ondas que te turbam e os ventos que te aconselham o mal. Virá então a bonança, pois mesmo que os conselhos perversos não se calem, não mais sacudirão a embarcação, não encresparão as ondas nem poderão afundar o barquinho em que navegas” 8.
Não O viram senão como homem
39 Ele levantou-Se, ameaçou o vento e disse para o mar: “Cala-te, emudece”. O vento amainou e seguiu-se uma grande bonança. 40 Depois disse-lhes: “Por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?” 41 Ficaram cheios de grande temor, e diziam uns para os outros: “Quem será este, que até o vento e o mar Lhe obedecem?”
Comenta Frei Manuel de Tuya OP: “Se bem que os Apóstolos já tivessem presenciado alguns milagres de Cristo, não se lembraram de seu poder ante um espetáculo tão imponente. Mas seu império diante de forças cósmicas desencadeadas produz-lhes tão forte admiração que se perguntam quem é esse que tem tais poderes” 9.
Devido à união das duas naturezas — divina e humana — na Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, “o homem recebeu no tempo a onipotência que o Filho de Deus teve ab aeterno”, diz São Tomás de Aquino 10. A alma de Nosso Senhor recebeu o poder divino de fazer milagres numa tal superabundância que é por transmissão d’Ele que os Santos assim também operam, como vemos em Mateus (10, 1) 11. Por essa razão manifestou todo o seu poder, inclusive sobre as criaturas irracionais, como os ventos, o mar, a tempestade; ou, durante sua Paixão, sobre vários elementos quando o véu do Templo se rasgou, os túmulos se abriram, a terra tremeu e as rochas se fenderam 12.
A respeito desta passagem, comenta Teófilo: “Se tivessem fé, eles teriam acreditado que, mesmo dormindo, [Jesus] podia conservá-los incólumes (…). Acalmando, pois, o mar com uma ordem — e não com uma vara como Moisés (Ex 14), nem com a oração como Eliseu no Jordão (2 Sm 2), nem com a arca como Josué (Js 3) —, os discípulos reconheceram que Ele é verdadeiramente Deus. Mas, quando dormia, não O viram senão como homem”13.
IV – As borrascas sobre a Igreja
Ao longo de dois milênios, a Igreja viu abater-se sobre Ela toda espécie de tempestades, ameaçando sua existência. Ora foram perseguições declaradas e cruentas, ora silenciosas e hipócritas. Ódios mortais e ingratidões históricas vincaram o curso das heresias e dos cismas.
Entretanto, a Igreja nunca duvidou d’Aquele que vela por seu imortal destino. E mesmo quando Ele parece dormir, faz ecoar no interior dos fiéis sua infalível promessa: Ecce ego vobiscum sum omnibus diebus, usque ad consummationem saeculi — “Eu estarei convosco todos os dias até o fim do mundo” (Mt 28, 20). A Igreja aprendeu com os Apóstolos a invocá-Lo e, dominando ou não a tempestade, a barca, mesmo em meio aos mais terríveis perigos, jamais vai ao fundo. Pelo contrário, como que ressurge sempre mais forte, mais jovem e com beleza invariavelmente acrescida. A cada ameaça, sua glória se eleva, por ser inquebrantável sua fé.
Quão grande bênção e que incomensurável graça sermos filhos da Igreja! ◊
Notas
1 Apud São Tomás de Aquino, Catena Aurea.
2 Vida de Nuestro Señor Jesucristo, BAC, Madrid, 1954, pp. 316-318.
3 Vida de Nuestro Señor Jesucristo, Ed. Voluntad, 1926, t. III, p. 564.
4 Obras espirituales del Padre Maestro Beato Juan de Ávila, Apostolado de la Prensa, Madrid, 1951, pp. 49-50.
5 A Cidade de Deus, Livro 1, cap. 8.
6 Hom in Matt, 28, apud S. Tomás de Aquino, Catena Aurea.
7 Ofício Divino – Completas.
8 Serm. 361: PL 39, 1602.
9 Biblia Comentada, BAC, Madrid, 1964, v. II, p. 656.
10 Suma Teológica, III q. 13 a.1 ad 1.
11 Cf. Idem, III q. 13 a.2 ad 3.
12 Cf. Mt 27, 51-52 e Suma Teológica, III q. 44 a.4 ad 3.
13 Apud Catena Aurea.