A verdadeira piedade deve impregnar toda a alma humana e, em consequência, deve também despertar e estimular emoções. Mas ela não é só emoção, nem mesmo principalmente emoção. A piedade brota da inteligência formada por um estudo catequético cuidadoso. Comporta um conhecimento exato de nossa Fé e, portanto, das verdades que regem a vida interior.
A piedade genuína reside ainda na vontade, pois exige querer alcançar seriamente o bem que a inteligência nos fez conhecer. Não basta, por exemplo, saber que Deus é perfeito; precisamos amar essa perfeição e desejá-la para nós em toda a medida do possível. Nisso consiste o anseio para a santidade.
Note-se que “desejar” não significa sentir veleidades vagas e estéreis. Só queremos seriamente um determinado bem quando estamos dispostos a todos os sacrifícios para consegui-lo.
O que dar a Nosso Senhor nos dias da Paixão?
Assim, a prova de que desejamos seriamente amar a Deus e procurar nossa santificação é estarmos dispostos a todos os sacrifícios para alcançar esta meta suprema. Sem isso, todo “querer” não é senão ilusão e mentira. Podemos sentir grande ternura na contemplação das verdades e mistérios da Religião, mas, se daí não tirarmos resoluções sérias e eficazes, de nada valerá nossa piedade.
É o que se deve dizer especialmente nos dias da Paixão de Nosso Senhor. Não nos adianta apenas acompanhar com ternura os vários episódios da Paixão. Seria algo excelente; não, porém, suficiente. Devemos dar a Nosso Senhor, nestes dias, provas sinceras de nossa devoção e amor.
Essas provas, nós as damos pelo propósito de emendar nossa vida e de lutar com todas as forças pela Santa Igreja Católica, Corpo Místico de Cristo. Quando Nosso Senhor interpelou São Paulo no caminho de Damasco, perguntou-lhe: “Saulo, Saulo, por que Me persegues?” (At 9, 4). O futuro Apóstolo perseguia a Igreja, e Nosso Senhor lhe disse que era a Ele mesmo que perseguia.
Se perseguir a Igreja é perseguir Jesus Cristo, e se hoje também a Igreja é perseguida, então Cristo é perseguido. A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo se repete de algum modo em nossos dias.
Meditemos no que Cristo sofreu
Como se persegue a Igreja? Atentando contra os seus direitos ou trabalhando para dela afastar as almas. Todo ato pelo qual se afasta da Igreja uma alma é um ato de perseguição a Cristo.
Toda alma é um membro vivo da Igreja. Portanto, arrancar uma alma à Igreja é arrancar um membro ao Corpo Místico de Cristo, é fazer a Nosso Senhor, em certo sentido, o mesmo que fariam a nós se nos arrancassem a menina dos olhos.
Se queremos, pois, condoer-nos com a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, meditemos sobre o que Ele sofreu nas mãos de seus algozes, mas não nos esqueçamos de tudo quanto ainda hoje se faz para ferir o Divino Coração.
Sobretudo porque Nosso Senhor, durante sua Paixão, previu tudo quanto se passaria depois. Previu todos os pecados de todos os tempos, e também os de nossos dias. Previu os nossos pecados e por eles sofreu antecipadamente. Estivemos presentes no Horto como algozes, e como algozes seguimos passo a passo a Paixão até o alto do Gólgota.
Arrependamo-nos, pois, e choremos.
A Igreja, sofredora, perseguida, vilipendiada, aí está ante nossos olhos indiferentes ou cruéis. Ela está diante de nós como Cristo diante de Verônica. Condoamo-nos com os padecimentos dela. Com nosso carinho, consolemos a Santa Igreja por tudo quanto ela sofre. Podemos estar certos de que, assim, estaremos dando ao próprio Cristo uma consolação idêntica à que Lhe deu Verônica.
O pecado da indiferença para com Deus
Comecemos pela fé. Certas verdades referentes a Deus e a nosso destino eterno, podemos conhecê-las pela simples razão; outras, apenas porque Ele nolas ensinou.
Em sua infinita bondade, Deus Se revelou aos homens no Antigo e no Novo Testamento, ensinando-nos o que nossa razão não poderia desvendar e ainda muitas verdades que poderíamos conhecer racionalmente, mas que a humanidade, por culpa própria, já não conhecia de fato.
A virtude pela qual cremos na Revelação é a fé. Ninguém pode praticar um ato de fé sem o auxílio sobrenatural da graça de Deus. Essa graça, Deus a dá a todas as criaturas e, em abundância torrencial, aos membros da Igreja Católica como condição de sua salvação.
Ninguém chegará à eterna bem-aventurança se rejeitar a fé. É pela fé que o Espírito Santo habita em nossos corações. Rejeitá-la significa rejeitar o Espírito Santo e expulsar Jesus Cristo da alma.
Pensemos, agora, em quantos católicos rejeitam hoje a fé. Foram batizados, mas deixaram de acreditar por culpa própria, porque ninguém perde a fé sem culpa, e culpa mortal.
Ei-los que, indiferentes ou hostis, pensam, sentem e vivem como pagãos e, por isso, sua desgraça é imensa. De modo indelével está neles o sinal do Batismo. Estão marcados para o Céu, e caminham para o inferno.
Em sua alma redimida, a aspersão do Sangue de Cristo está marcada, ninguém a apagará. É de certo modo o próprio Sangue de Cristo que eles profanam quando nesta alma resgatada acolhem princípios, máximas, normas contrárias à doutrina da Igreja.
O católico apóstata tem qualquer coisa de análogo ao sacerdote apóstata. Arrasta consigo os restos de sua grandeza, profana-os, degrada-os e se degrada com eles. Mas não os perde.
E nós? Importamo-nos com isso? Sofremos com isso? Rezamos para que essas almas se convertam? Fazemos penitências? Fazemos apostolado? Onde está nosso conselho, nossa argumentação, nossa caridade? Onde está nossa altiva e enérgica defesa das verdades que eles negam ou injuriam?
O Sagrado Coração sangra com isso. Sangra pela apostasia deles, e por nossa indiferença. Indiferença duplamente censurável, porque é indiferença para com nosso próximo e, sobretudo, indiferença para com Deus.
Coincidência ou conspiração?
Quantas almas, no mundo inteiro, vão perdendo a fé? Pensemos no incalculável número de jornais ímpios, livros ímpios, filmes ímpios, programas de rádio ímpios, de que diariamente se enche o orbe. Pensemos nos inúmeros obreiros de satanás que, nas cátedras, no recesso da família, nos lugares de reunião ou diversão, propagam ideias ímpias.
De todo esse esforço, quem há de admitir que nada resulte? Os efeitos de tudo isso estão diante de nós. Diariamente as instituições, os costumes, a arte se vão descristianizando, indício insofismável de que o próprio mundo se vai perdendo para Deus.
Se queremos condoer-nos com a Paixão de Nosso Senhor, meditemos sobre o que Ele sofreu nas mãos de seus algozes
Não haverá em tudo isso uma grande conjuração? Tantos esforços, harmônicos entre si, uniformes em seus métodos, em seus objetivos, em seu desenvolvimento, serão mera obra de coincidências? Onde e quando intuitos desarticulados produziram articuladamente a mais formidável ofensiva ideológica que a História conhece, a mais completa, a mais ordenada, a mais extensa, a mais engenhosa, a mais uniforme em sua essência, em seus fins, em seu evoluir?
Não pensamos nem percebemos isso; pelo contrário, dormimos na modorra de nossa vida de todos os dias. Por que não somos mais vigilantes? A Igreja sofre todos os tormentos só. Longe, bem longe dela, cochilamos. É a cena do Horto que se repete.
A bem dizer, a Igreja nunca teve tantos inimigos e, paradoxalmente, nunca teve tantos “amigos”.
Incontável falange de almas tíbias
Essa fé que tantos combatem, perseguem, atraiçoam, graças a Deus nós a possuímos. Entretanto, que uso fazemos dela? Amamo-la? Compreendemos que nossa maior ventura na vida consiste em sermos membros da Santa Igreja, que nossa maior glória é o título de cristão?
Em caso afirmativo – e quão raros são os que poderiam em sã consciência responder afirmativamente –, estamos dispostos a todos os sacrifícios para conservar a fé?
Não digamos num assomo de romantismo que sim. Vejamos friamente os fatos.
Não está junto de nós o algoz que nos vai colocar na alternativa da cruz ou da apostasia. Mas, todos os dias, a conservação da fé exige de nós sacrifícios. Fazemo-los? Será bem exato que, para conservar a fé, evitamos tudo que a pode pôr em perigo? Evitamos as leituras que a podem ofender? Evitamos as companhias nas quais ela está exposta a risco? Procuramos os ambientes nos quais a fé floresce e cria raízes? Ou, em troca de prazeres mundanos e passageiros, vivemos em ambientes em que a fé se estiola e ameaça cair em ruínas?
Quando o Divino Mestre gemeu, chorou, suou sangue durante a Paixão, atormentava-O tudo quanto contra se faria contra a Igreja
Todo homem, pelo próprio instinto de sociabilidade, tende a aceitar as opiniões dos outros e, em geral, em nossos dias as opiniões dominantes são anticristãs. Pensa-se contrariamente à Igreja em matéria de Filosofia, de Sociologia, de História, de ciências positivas, de arte, de tudo enfim. Os nossos amigos seguem a corrente.
Temos nós a coragem de divergir? Resguardamos nosso espírito de qualquer infiltração de ideias erradas? Pensamos com a Igreja em tudo e por tudo? Ou contentamo-nos negligentemente em ir vivendo, aceitando tudo quanto o espírito do século nos inculca, e simplesmente porque ele no-lo inculca?
É possível que não tenhamos enxotado Nosso Senhor de nossa alma. Mas como tratamos este Divino Hóspede? É Ele o objeto de todas as atenções, o centro de nossa vida intelectual, moral e afetiva? É Ele o Rei? Ou somente há para Ele um pequeno espaço, onde O toleramos como hóspede secundário, desinteressante, algum tanto importuno?
Quando o Divino Mestre gemeu, chorou, suou sangue durante a Paixão, não O atormentavam apenas as dores físicas, nem sequer os sofrimentos ocasionados pelo ódio dos que no momento O perseguiam. Atormentava-O ainda tudo quanto contra Ele e a Igreja se faria nos séculos vindouros.
Ele chorou pelo ódio de todos os maus, de todos os Ários, Nestórios, Luteros, mas chorou também porque via diante de Si o cortejo interminável das almas tíbias, das almas indiferentes que, sem O perseguir, não O amavam como deviam.
É a falange incontável dos que passaram a vida sem ódio e sem amor, os quais, segundo Dante, ficavam de fora do inferno porque nem no inferno havia para eles lugar adequado.
Extraído, com adaptações, de:
Legionário. São Paulo. Ano XIX.
N.764 (30 mar., 1947); p.1; 7