Quem não corrige seu próximo, causa dano não somente a ele mas também a si próprio. Ver-se-á privado dos méritos e benefícios do cumprimento desse dever, e acabará por escandalizar os que constatam sua negligência.
Evangelho do XXIII Domingo do Tempo Comum
“Se teu irmão tiver pecado contra ti, vai e repreende-o entre ti e ele somente; se te ouvir, terás ganho teu irmão. Se não te escutar, toma contigo uma ou duas pessoas, a fim de que toda a questão se resolva pela decisão de duas ou três testemunhas. Se recusa ouvi-las, dize-o à Igreja. E se recusar ouvir também a Igreja, seja ele para ti como um pagão e um publicano. Em verdade vos digo: tudo o que ligardes sobre a Terra será ligado no Céu, e tudo o que desligardes sobre a Terra será também desligado no Céu. Digo-vos ainda isto: se dois de vós se unirem sobre a Terra para pedir, seja o que for, consegui-lo-ão de meu Pai que está nos Céus. Porque onde dois ou três estão reunidos em Meu nome, aí estou Eu no meio deles” (Mt 18, 15-20).
I – A correção, grande meio de salvação
Santo Afonso Maria de Ligório escreveu uma bela obra intitulada “A oração, grande meio de salvação”. Seu conteúdo é preciosíssimo e irrefutável. Numa de suas páginas, o Santo chega a afirmar que quem reza se salva e quem não reza se condena.
Ao penetrarmos no âmago do Evangelho deste XXIII Domingo do Tempo Comum, chegamos a uma conclusão parecida: a correção fraterna é um grande meio de salvação, pois bem pode o destino eterno de alguém depender da aceitação às correções que lhe sejam feitas.
Esta é a matéria que a Liturgia de hoje nos leva a considerar: o dever da correção fraterna e a necessidade de bem recebê-la.
II – Qual é o filho a quem seu pai não corrige?
“Se teu irmão tiver pecado contra ti, vai e repreende-o entre ti e ele somente; se te ouvir, terás ganho teu irmão”.
É claro o conselho do Divino Mestre, quanto à necessidade de corrigir aqueles que pecam contra nós.
Nas ofensas pessoais, injúrias, ou mesmo nos defeitos que observemos na conduta de outros — sobretudo faltas concernentes à Fé e aos costumes, com risco de produzir algum escândalo — não podemos deixar de advertir nosso próximo, seja por indiferença nossa, seja, pior ainda, por desprezo. E para pôr em prática a norma do Senhor, expressa no versículo acima, nosso zelo deve ser cheio de fervor.
São João Clímaco compara, com muita unção, a crueldade de alguém que retira o pão das mãos de um menino faminto, com a daquele que tem a obrigação de corrigir e não o faz.1 Este último causa dano não só a seu próximo mas também a si próprio. Ver-se-á, por essa omissão, privado dos méritos e benefícios do cumprimento desse dever e acabará por escandalizar os que constatam sua negligência.
O mesmo se passa no campo da botânica, pois quanto mais fértil um terreno, mais se deve trabalhá-lo para evitar que se transforme em bosque e, depois, em mata.
Evidentemente, na aplicação deste preceito, não se deve agir com alguma paixão, por menor que seja. A isenção de ânimo é fundamental. Toda caridade deverá ser empregada na delicadíssima tarefa da reconciliação.
A obrigação de advertir
A primeira responsabilidade — reconhecer o próprio erro — é de quem o comete. Porém, o zelo, a prudência e o amor a Deus cabem a quem tem a obrigação de advertir. “Aquele que poupa a vara quer mal ao seu filho; mas o que o ama corrige-o continuamente” (Pr 13, 24). Portanto, é falsa ternura deixar de aplicar uma necessária correção, julgando com essa omissão poupar alguma amargura a quem dela necessita. Quem assim se omite, em realidade não só é conivente com a falha praticada, mas demonstra querer mal a quem precisaria do apoio de uma palavra esclarecedora. Esse sentimentalismo, desequilíbrio e equivocada indulgência confirmam em seus vícios os que erram.
É importantíssimo que pais, educadores, etc., cumpram nessa matéria seu dever, pois assim nos ensina o Livro dos Provérbios: “A loucura está ligada ao coração do menino, mas a vara da disciplina a afugentará” (22, 15). Aliás, é sinal de muito amor avisar de suas faltas os inferiores; quando um pai assim procede com seu filho, deseja-lhe o bem e a virtude.
A reciprocidade nesse amor deve ser uma característica de quem recebe o aviso ou repreensão: “Não rejeites, meu filho, a correção do Senhor, nem caias no desânimo quando Ele te castiga, porque o Senhor castiga aquele a quem ama, e acha nele a sua complacência como um pai em seu filho” (Pr 3, 11-12).
Se o superior deixa de advertir os que lhe estão confiados, é claro sinal de que não se sente amado como um pai; ou não ama o inferior como filho, e neste caso não é raro que dele venha até a murmurar. Ao escrever aos hebreus, São Paulo não receia afirmar: “Sede perseverantes sob o castigo. Deus trata-vos como filhos. E qual é o filho a quem seu pai não corrige? Se, porém, estais isentos do castigo, do qual todos são participantes, então sois bastardos e não filhos legítimos” (Hb 12, 7-8). Pois, de fato, o remorso, a dor de nossas faltas, o peso de consciência, constituem um inestimável dom de Deus.
“Não poupes a vara a teu filho”
Cornélio a Lápide, em sua famosa obra de comentários sobre as Sagradas Escrituras, assim se exprime sobre esta questão: “Não poupes ao menino a correção; se o castigares com a vara, ele não morrerá, diz o Livro dos Provérbios (Noli subtrahere a puero disciplinam; si enim percusseris eum virga, non morietur). Castiga-o com a vara e salvarás sua alma do inferno (Tu virga percuties eum et animam eius de inferno liberabis) (23, 13-14). A correção é para o menino o que o freio é para o cavalo e o aguilhão para os bois.
“Os pais que são demasiadamente indulgentes com seus filhos não os castigam, mas os expõem aos suplícios do inferno. Quem tem excessiva indulgência para com seu filho, é o seu mais cruel inimigo. Assim, pais e mães, se amais vossos filhos, aplicai-lhes a vara das correções, para não acontecer que eles vão parar no inferno; se os livrais daquelas, será para condená-los a este. Escolhei!
“Repetimos: a salvação e a felicidade dos filhos resultam de uma boa educação e da justa severidade dos pais. Pelo contrário, uma condescendência licenciosa e a falta de correção são o princípio da má conduta e da condenação dos filhos: eles caem em excessos e crimes que os levam à desgraça eterna. Quantos filhos, no inferno, maldizem os seus pais e os encherão de imprecações durante os séculos dos séculos, por terem negligenciado repreendê-los, corrigi-los e castigá-los, tornando-se assim causa de sua eterna perdição!
“Compreende-se o ódio desses desgraçados, porque tais pais lhes deram, não a vida, mas a morte; não o Céu, mas o inferno; não a felicidade, mas a desgraça sem fim e sem limites. O menino guarda até sua velhice e até a morte os costumes de sua infância e de sua juventude, de acordo com as palavras da Sagrada Escritura: ‘O caminho pelo qual o jovem começou a andar desde o princípio, dele não se afastará mesmo quando envelhecer. (Adolescens juxta viam suam etiam cum senuerit non secedet ab ea) (Pr 22, 6). A árvore que cedo se entorta continua com sua má inclinação até ser cortada e lançada ao fogo”.2
Dever de gratidão de quem é corrigido
Na vida comum, não é raro acontecer o caso de sairmos de casa distraidamente com algum desalinho em nossa apresentação: meias de cores diferentes, roupa mal-colocada, etc. Basta que, por caridade, alguém nos advirta para nós nos manifestarmos cheios de gratidão; se, pelo contrário, ninguém nos avisasse, ficaríamos ressentidos. Ora, maior motivo temos para agradecer a quem nos admoesta pela nossa falta de virtude, sobretudo naquilo que possa vir a constituir escândalo.
Inclusive as considerações daqueles que trilham as veredas do paganismo mostram irem no mesmo sentido os ditames da sabedoria humana neste particular. Plutarco afirma que nós deveríamos pagar bem aos nossos adversários porque dizem as verdades a nosso respeito. Os amigos, segundo ele, só sabem bajular, adular e lisonjear.3 É, aliás, o que encontramos nas relações habituais de hoje em dia, ou seja, não nos deparamos com alguma correção a não ser quando se estabelece uma inimizade, só aí acabamos por conhecer o que realmente os outros pensam sobre nós.
Hugo de São Vítor sintetiza de modo sábio os bons efeitos da correção. Quando é aceita com humildade e gratidão, ela detém os maus desejos, coloca freio às paixões da carne, derruba o orgulho, apazigua a intemperança, destrói a superficialidade e reprime os maus movimentos do espírito e do coração.4 Por isso é que ganhamos um irmão quando somos ouvidos com boa disposição da parte de quem corrigimos, pois lhe devolvemos a verdadeira paz de alma e o reconduzimos ao caminho da salvação.
III – Correção amistosa diante de testemunhas
“Se não te escutar, toma contigo uma ou duas pessoas, a fim de que toda a questão se resolva pela decisão de duas ou três testemunhas”.
O empenho de salvar nosso irmão deve ser penetrado de forte zelo. Caso tenha sido infrutífera a advertência a sós, não se deve abandoná-lo, pelo contrário, é preciso insistir.
A orientação dada aqui pelo Divino Mestre não visa preencher o procedimento exigido pelo Deuteronômio: “Sobre o depoimento de duas ou três testemunhas morrerá aquele que tiver de ser morto. Mas não será morto sobre o depoimento de uma só. […] Ambos os contendores comparecerão diante do Senhor, na presença dos sacerdotes e dos juízes que estiverem em exercício naqueles dias” (Dt 17, 6; 19, 17). Pelo contrário, ela tem por objetivo utilizar o instinto de sociabilidade como poderoso elemento de pressão psicológica para tentar “ganhar o irmão”.
Ainda estamos num âmbito de privacidade, e por isso a reputação social do infrator encontra-se resguardada. Por outro lado, a presença de testemunhas poderá criar-lhe certo temor saudável e, quiçá, tornar-lhe impossível deixar de admitir sua culpa. Se ele vier a reconhecê-la, verificar-se-á o efeito visado na primeira investida, expresso no versículo anterior.
A eficácia deste meio baseia-se no apreço que o transgressor possa devotar ao conceito que desfruta junto aos outros. Não se trata, portanto, de colocá-lo entre a espada e a parede, judicialmente falando, pois bem poderia uma ação desse teor mais suscitar um irreversível ódio do que propriamente conduzi-lo a um sentimento de dor por sua falta. Esses tais outros a serem convocados não devem exercer a função de testemunhas de acusação em juízo, mas sim a de auxiliares na correção amistosa. Portanto, a fama e o decoro do infrator serão objeto de todo o cuidado possível.
“O que devemos fazer, caso não tenhamos persuadido nosso irmão, o Senhor o diz com estas palavras: ‘E se não te escutar, toma contigo uma ou duas pessoas’, etc. Quanto mais desavergonhado e obstinado for ele, tanto mais convém aplicar-lhe o medicamento, mas sem movê-lo à cólera e ao ódio. Quando vê que a enfermidade não cede, o médico não desiste, mas é então que ele mais se prepara para vencê-la. Veja, pois, como nossa meta não deve ser a vingança, mas sim a emenda pela correção; isto obtido, não manda o Senhor que em seguida se tomem dois, mas só quando ele não quiser emendar-se. E nem mesmo neste caso quer que ele seja enviado ao povo, mas que seja corrigido diante de um ou de dois, conforme previne a Lei, a qual diz: ‘Que toda palavra saída da boca de duas ou três testemunhas seja tomada em consideração’. É como se dissesse: tendes um testemunho, fizestes a vossa parte”.5
Segundo São Jerônimo, isso pode ser entendido também desse modo: “Se ele não quis te escutar, apresenta-o tão-somente a um irmão; e se não atender a este, apresenta-o a um terceiro, seja para que ele se corrija por vergonha ou por teu conselho, seja para que veja que ages diante de testemunhas”.6 E a este comentário deve-se acrescentar o que diz a Glosa: “Ou para que, caso ele diga que não pecou, as testemunhas provem que pecou”.7
IV – O bem da própria Igreja
“Se recusa ouvi-las, dize-o à Igreja. E se recusar ouvir também a Igreja, seja ele para ti como um pagão e um publicano”.
Ao chegar a esse estágio, tornou-se patente que o método amigável fracassou; o culpado persistirá em seu ódio, em suas mazelas, ou em seus erros, e nesse caso não caberá senão recurso à Igreja, aquela instituição prometida por Nosso Senhor Jesus Cristo que seria fundada sobre a pedra chamada Pedro. Permanece ainda em foco o zelo pela alma do culpado e por seu bem particular, mas outro bem se torna presente: o da própria Esposa de Cristo.
Já não pertencem ao Rebanho
Se ele não der ouvidos à voz da Igreja, deverá ser considerado como um publicano ou gentio. Será indispensável haver um rompimento de relações. Nenhum vínculo nos unirá a ele. Ver-se-á excluído tal qual os pagãos ou os publicanos, que não eram admitidos pelos judeus na comunicação do culto e das orações. A consideração de todos a seu respeito será como a de uma pessoa perniciosa que poderia colocar em risco a perseverança dos demais; daí a necessidade de evitarem o seu convívio.
Pobre daquela pessoa que não ouve a voz da Igreja ou que despreza o timbre e a sonoridade dessa voz. Poderá ela levantar-se contra sua autoridade, discutir sobre seus deveres, menosprezar suas correções ou condenações. A palavra do Senhor, porém, é firme como uma rocha: “O Céu e a Terra passarão, mas as minhas palavras não passarão” (Mt 24, 35). Tal pessoa já não pertencerá ao Rebanho do Bom Pastor; não mais terá direito ao nome de católico, apostólico e romano… Quem dá as costas à Igreja de Jesus Cristo será considerado como um gentio ou publicano aos olhos de Deus.
Essa denúncia deve ser feita com espírito cristão. Assim procederam os criados da parábola quando, com tristeza, comunicaram a falta do seu companheiro ao rei (cf. Mt 18, 31). Se os acusadores se movessem por espírito de ódio ou de vingança, por puro egoísmo ou por inveja, deveriam ser tidos por delatores rasteiros; mas, procedendo assim, eles não podem ser vistos como personagens abjetos e mal conceituados.
Deus manda que os repreendamos e afastemos
O católico, quando acusa, o faz por amor e com amor. Levando em consideração que o pecador não poucas vezes poderá vir a constituir um perigo para o bem comum e, portanto, para a própria sociedade, não denunciá-lo será uma omissão contra a caridade, ou até mesmo comodidade egoísta e covarde. Não é incomum encontrarmos essa omissão como vício praticado até no interior de algumas comunidades religiosas; omissão que acaba por transformar-se em desabafo e se desdobra, muitas vezes, em comentários difundidos entre os demais sobre as infrações destes ou daqueles culpados, verdadeiras murmurações que às vezes ultrapassam os limites da calúnia.
Essa falta de caridade tem conseqüências maléficas sobre o próprio infrator, que muito lucraria se fosse conhecido como tal. Pois a situação de repudiado por todos os seus conhecidos faria crescer nele o senso de vergonha e poderia servir-lhe de um bom meio de conversão, conforme ensina São Jerônimo: “Entretanto, se tampouco a esses ele quer escutar, então deve-se dizer isso a muitos, para que o detestem e, assim, aquele que não pôde ser salvo pela vergonha salve-se pelas afrontas”.8
Por isso mesmo, é um dever denunciar o pecador, e assim o sublinha a Glosa: “Ou dize-o também a toda a Igreja, para fazê-lo passar maior vergonha. Depois de tudo isso deve seguir-se a excomunhão, a qual precisa ser feita pela boca da Igreja, isto é, pelo sacerdote que, quando excomunga, toda a Igreja excomunga com ele”.9
Vale aqui também o princípio latino: corruptio optimi, pessima. Vemos o quanto é mais pernicioso um cristão que enverede pelos caminhos do mal do que, às vezes, os próprios maus, como assevera São Jerônimo: “Pelas palavras ‘seja ele para ti como um pagão e um publicano’, o Senhor nos dá a entender que devemos detestar mais quem com o nome de cristão pratica obras de infiéis do que quem é claramente pagão. Dá-se o nome de publicanos àqueles que buscam as riquezas do mundo e exigem impostos por meio de tráficos, fraudes, furtos e perjúrios horríveis”.10
Ou, ainda, como ressalta São João Crisóstomo: “Contudo, nunca o Senhor nos mandou, a respeito dos que estão fora da Igreja, uma coisa parecida com a que nos manda aqui sobre a correção dos irmãos. Porque no tocante aos estranhos diz Ele: ‘Se alguém te ferir a face direita, oferece-lhe também a outra’ (Mt 5, 39); e São Paulo: ‘Pois que tenho eu de julgar os que estão fora?’ (I Cor 5, 12). Com relação aos irmãos, porém, nos manda que os repreendamos e os afastemos”.11
Virtude da parte do acusador e do acusado
Nunca será demasiado insistir que a nota não só tônica, mas essencial, dessa denúncia deverá ser o amor ao próximo por amor a Deus, pois quem se encoleriza contra o seu irmão será réu no tribunal de Deus (cf. Mt 5, 22). A indignação egoísta e malfazeja, o sarcasmo, a zombaria, a vingança, etc., não podem penetrar nem sequer as zonas ocultas de nosso coração, pois ali está Deus para analisar nossos sentimentos e intenções. Eles são a fonte de nossos atos, e por isso todo rancor deve ser erradicado com intransigência.
Da parte do acusado, também será exigida a virtude para sua conversão, pois não lhe fará pouca resistência a mesma soberba que o levou a andar mal. “Quem encontrará um homem que deseja ser repreendido? Onde encontraremos aquele sábio, de quem diz Salomão nos Provérbios: ‘Repreende o justo e ele te amará’? (Prov 9, 8)”.12 A manifestação de arrependimento e emenda da parte do corrigido é saudada com uma bela exclamação do Eclesiástico (cf. Eclo 20, 4), afirmando que por esse meio se consegue mais facilmente fugir do pecado. E São Basílio faz uma analogia entre a disposição de um enfermo que aceita os penosos tratamentos indicados pelo médico para obter sua cura, e a humildade de um homem que realmente deseja sua salvação eterna, pois este também aceita com gáudio a correção que se lhe faça, por mais amarga e áspera que esta possa ser.13
O receber mal as repreensões constitui não só uma ofensa a Deus, mas até mesmo conduz a rejeitar toda semelhança com Nosso Senhor Jesus Cristo. Quem assim procede não tardará em perder todas as suas virtudes e, por orgulho, caminhará de queda em queda, aproximando-se a cada passo do espírito de satanás.
O poder dado a Pedro
“Em verdade vos digo: tudo o que ligardes sobre a Terra será ligado no Céu, e tudo o que desligardes sobre a Terra será também desligado no Céu”.
Devemos manifestar nossa gratidão cheia de júbilo por essa concessão feita pelo Redentor aos primeiros Pastores da Igreja e estendida a todos os seus sucessores.
Trata-se de um nobilíssimo poder, elevado, amplo e necessário para a perpetuidade do depósito da Fé, a conservação dos bons costumes e da tradição, em suma, da boa ordem. Ele foi concedido em plenitude a Pedro (cf. Mt 16, 18-19) e é em decorrência da autoridade dele que os outros o têm. “Esses vastíssimos poderes que tocam tanto ao foro externo quanto ao interno — quer dizer, o direito de pronunciar sentenças judiciais e o de absolver os pecados — não são confiados, como é natural, à massa dos fiéis mas aos superiores regularmente instituídos. E se a fórmula pela qual eles lhes são conferidos assemelha-se à que Jesus usou quando nomeou São Pedro chefe supremo da Igreja, é natural também que não lhes conceda senão uma jurisdição subordinada à autoridade do Supremo Pastor”.14
Orígenes faz uma interessante observação sobre o plural: “nos céus”, usado por Jesus quando se refere aos poderes dados a Pedro, e o singular ao dirigir-se aos Apóstolos: no céu, “porque este poder não é tão perfeito quanto aquele dado a Pedro”.15
É de muito valor a apreciação de São Jerônimo a respeito desta passagem: “Como o Senhor havia dito: ‘E se recusar ouvir também a Igreja, seja ele para ti como um pagão e um publicano’ (Mt 18, 17), e poderia acontecer que o irmão, assim desprezado, respondesse ou pensasse da seguinte maneira: ‘se vós me desprezais, eu também vos desprezo, se vós me condenais, eu também vos condeno’, o Senhor deu aos Apóstolos um poder tal que não pode restar dúvida aos condenados por eles de que a sentença humana está confirmada pela sentença divina. Por isso diz: ‘Em verdade vos digo que tudo quanto ligardes’, etc.”.16
Cabe aqui também reproduzir as sábias considerações feitas por São João Crisóstomo: “E não disse àquele que preside na Igreja: ‘Liga quem assim peca’, mas: ‘Tudo quanto ligares’. O que era deixar tudo em mãos do ofendido. E os vínculos permanecem indestrutíveis. Logo, o pecador terá de sofrer os últimos castigos; a culpa disso, porém, não a terá quem o denunciou, mas quem não quis submeter-se. Vê-se como o Senhor condena o pecador a uma punição aqui na Terra e a outra no além. Porém, se ameaça com o castigo na Terra é para não chegar ao suplício no além, mas antes para que o obstinado se abrande pelo temor da ameaça, pela expulsão da Igreja, pelo perigo de ser atado na Terra e ficar ligado também nos céus. Sabendo disso, é natural que o homem — se não no princípio, ao menos ao passar por tantos tribunais — desista de sua ira. De onde ter o Senhor estabelecido um, dois e até três juízos, e não expulsar imediatamente o culpado, pois, caso se recuse a ouvir o primeiro tribunal, pode ceder ao segundo; se rechaça também o segundo, ainda lhe resta o terceiro. Se rejeita também este, podem ainda assustá-lo o castigo futuro e a sentença e justiça de Deus”.17
V – A humanidade sempre precisará de perdão
“Digo-vos ainda isto: se dois de vós se unirem sobre a Terra para pedir, seja o que for, consegui-lo-ão de meu Pai que está nos Céus. Porque onde dois ou três estão reunidos em Meu nome, aí estou Eu no meio deles”.
Sem nenhum receio, pode-se afirmar que nestes dois versículos encontra-se a síntese de toda a obra do Salvador. Jesus é o elo entre todos aqueles que tomam a deliberação de se unir em Seu nome, pois, nessas circunstâncias, Ele estará no meio deles. Por sua intercessão, será comovida a misericórdia do Pai e saberão os discípulos o que pedir, pois neles gemerá o Espírito (cf. Rom 8, 26), e assim, tudo obterão. Jesus estará agindo sobre todos e cada um, oferecendo-lhes Seu amor, Seu poder e Sua sabedoria. E essa é a verdadeira Igreja que vive de compaixão, misericórdia e piedade, pois a humanidade, que sempre pecará, sempre necessitará do perdão do Divino Redentor, dado por meio de Sua Igreja. ◊
Notas
1 CLÍMACO, São João. Scala Paradisi – Gradus IV (De obedientia).
2 LAPIDE, Cornelius a. Commentaria in Scripturam Sacram.
3 Cf. PLUTARCO. De capienda ex inimicis utilitate.
4 Cf. SAINT-VICTOR, Hugues de. De institutione novitiorum líber, cap. X.
5 CRISÓSTOMO, São João. Homiliæ in Matthæum, hom. 60, § 1.
6 JERÔNIMO, São. Commentariorum in Evangelium Matthæi Libri Quattuor, Cap. XVIII, Vers. 15 seqq.
7 AQUINO, São Tomás de. Catena Aurea.
8 JERÔNIMO, São. Op. cit., ibidem.
9 AQUINO, São Tomás de. Catena Aurea.
10 JERÔNIMO, São. Op. cit., ibidem.
11 CRISÓSTOMO, São João. Op. cit. ibidem.
12 AGOSTINHO, Santo. Epístola 210, § 2.
13 Cf. BASÍLIO, São. Sermones viginti quator – De moribus. Sermo II – De doctrina et admonitione.
14 FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. v. II. Madrid: Ediciones Rialp S.A., 2000. p. 310.
15 Apud AQUINO, São Tomás de. Catena Aurea.
16 JERÔNIMO, São. Op. cit., Cap. XVIII, vers. 18.
17 CRISÓSTOMO, São João. Op. cit., ibidem.