A correspondência de Santa Clara de Assis – Pobreza e elevação de espírito

O relacionamento transbordante de caridade fraterna entre a fundadora e a discípula faz parte, já na nesta Terra, de “todo o bem digno de ser desejado”.

 

A maneira com a qual Santa Clara se dirige à sua
discípula mostra bem a retidão da sua alma.
“Santa Clara”, por Lippo Memmi – Metropolitan Museum of Art, Nova York

Espécime de um gênero quase esquecido nestes tempos de omnipresença da informática, a carta manuscrita é um dos documentos mais reveladores da personalidade humana. Por ela pode-se descortinar com segurança o interior de quem escreve. A caligrafia e a linguagem, mas também o papel, o tipo de caneta, a cor da tinta e inúmeros outros detalhes escolhidos sem maior atenção são elementos que indicam as filigranas do pensamento de alguém.

Assim, biógrafos e hagiógrafos se debruçam com empenho sobre esses preciosos documentos que lhes manifestam, com riqueza de detalhes, traços da alma das personagens por eles analisadas.

Correspondência entre duas santas

Nesta perspectiva, revela-se de especial interesse a leitura e contemplação das cartas de Santa Clara de Assis, humilde e obediente filha espiritual de São Francisco.

No ano de 1234 recebeu ela uma consoladora notícia, que logo se espalhou pela Europa: uma jovem de sangue real, a princesa Inês, filha do Rei da Boêmia, havia decidido abandonar as riquezas e comodidades próprias de sua elevada categoria e tomar o hábito entre as filhas de Santa Clara.

Como a ordem ainda não possuía nenhum mosteiro em Praga foi preciso enviar para ali um grupo de religiosas formadas diretamente pela fundadora, a fim de erigi-lo. E foi preciso também um volumoso carteio, por meio do qual a santa procurava transmitir à nobre discípula, mais do que as simples constituições, o espírito da seráfica Ordem.

Escritas sob influência de uma grande graça mística

As cartas enviadas por Santa Clara para sua filha espiritual dão testemunho de um relacionamento celestial e, por sua elevação, parecem ter sido escritas sob a influência de alguma grande graça mística… ou quiçá fosse essa a clave habitual em que vivia a santa. A maneira nobre, poética, elegante, sobretudo admirativa e caridosa, com a qual Santa Clara se dirige à sua discípula, mostra bem a retidão de sua alma e o trato cheio de respeito e ternura por suas subordinadas. E a linguagem revela, ao lado de um despretensioso despojamento, um espírito cultivado, habituado à consideração das verdades eternas.

Sua autora as redigiu no estilo cerimonioso daqueles felizes tempos em que, segundo a expressão cunhada por Leão XIII, “a filosofia do Evangelho governava os Estados”. Estilo revelador de uma mentalidade que via em cada ser humano um reflexo único das qualidades divinas. Levam-nos essas cartas a considerar não só a dignidade principesca da futura Santa Inês de Praga, mas sobretudo as insignes virtudes que a tornavam merecedora dos elogios de sua fundadora.

Linguagem pervadida de humildade e pureza

Julgue o leitor por si mesmo a beleza das palavras de Santa Clara, nas quais transparece não apenas sua humildade, mas também sua alma admirativa e poética. E diga depois se, ao lê-las, não sentiu o perfume da santidade desses antigos tempos.

Assim inicia ela sua primeira missiva: “À venerável e santa virgem, Dona Inês, filha do excelentíssimo e ilustríssimo rei da Boêmia, Clara, indigna ancila de Jesus Cristo e ­serva inútil das Damas enclausuradas do mosteiro de São Damião, sua súdita e serva se recomenda inteiramente com especial respeito e lhe deseja que obtenha a glória da felicidade eterna”.

A linguagem, pervadida de humildade e pureza, respeita a condição principesca da destinatária e ao mesmo tempo a faz voltar os olhos para os títulos eternos que deve almejar.

Encerra a carta com um pedido: “Suplico-vos ainda no Senhor, tanto quanto posso, de incluir em vossas santíssimas orações esta vossa inútil serva e as outras irmãs deste mosteiro, que tanto vos veneram, para podermos, com esse auxílio, merecer a misericórdia de Jesus Cristo e convosco nos rejubilarmos na eterna contemplação. Saudações no Senhor. Rezai por mim”.

Convívio epistolar que preludia o convívio no Céu

Dois anos depois, escreve-lhe novamente e assim se exprime: “À filha do Rei dos reis, à serva do Senhor dos senhores, à digníssima esposa de Jesus Cristo e por isso nobilíssima rainha Dona Inês, Clara, indigna e inútil servidora das Damas Pobres, envia saudações e votos de que viva sempre na perfeita pobreza”.

É admirável o modo sutil como Santa Clara ressalta à filha do rei da Boêmia sua condição de filha do Rei dos reis, título mais elevado que qualquer outro. E como, chamando-a de “nobilíssima rainha”, recorda-lhe sua união com Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo. A ideia de manifestar-lhe “saudações e votos de que viva sempre na perfeita pobreza” faz resplandecer aos olhos de sua filha espiritual, entre tantas outras virtudes, a do desapego dos bens terrenos e total despretensão de espírito. Essa carta prossegue toda repassada de angelicais conselhos para que as irmãs perseverem na prática da santa pobreza constitutiva de seu carisma.

“Lembra-te de tua mãe pobrezinha”

Outros dois anos haviam decorrido quando Santa Inês recebeu da fundadora mais uma carta, em cujo início se lê: “À senhora veneradíssima em Cristo, irmã digna de amor mais que todas as criaturas mortais, Inês, irmã do ilustre rei da Boêmia, mas agora sobretudo irmã e esposa do supremo Rei dos Céus, Clara, humílima e indigna ancila de Cristo, e servidora das Damas Pobres, almeja salutar alegria no Autor da salvação e tudo quanto de melhor ela possa desejar”.

Finalmente, em 1253, poucos meses antes de falecer, Santa Clara assim se dirige à sua filha espiritual: “Àquela que é a metade de sua alma e santuário de um singular e cordialíssimo amor, à ilustre rainha, esposa do Cordeiro e Rei eterno, a Dona Inês, sua queridíssima mãe e filha entre todas preferida, Clara, indigna serva de Cristo e inútil servidora das servas do Senhor residentes no mosteiro de São Damião, em Assis, envia saudações e votos de que possa entoar, em companhia das outras santas virgens, o cântico novo diante do trono de Deus e do Cordeiro, e acompanhar o Cordeiro por todos os lugares aonde Ele vá”.

Pressentindo o fim de sua existência, assim se exprime Santa Clara a Santa Inês: “Lembra-te de tua mãe pobrezinha, sabendo bem que conservo de ti uma cara recordação indelevelmente impressa em meu coração, pois para mim és de todas a mais querida. Que mais poderia ainda dizer-te? É melhor renunciar à palavra humana, incapaz de manifestar meu afeto; somente a alma, com sua linguagem silenciosa, conseguiria fazer-te senti-lo”.

*     *     *

A leitura dessas cartas enche-nos de consolação e leva-nos a desejar uma convivência semelhante entre todos os nossos irmãos na Fé. E esse relacionamento transbordante de caridade fraterna, nesta Terra, já é uma parte de “todo o bem digno de ser desejado”. A diversidade de caracteres e a imaginação humana, assistida pela graça, hão de encontrar expressões de afeto e de amor mútuo entre os irmãos quando seus olhos interiores estiverem voltados para o sobrenatural, como nos dá exemplo a grande Santa Clara. Cada um manifestará a vida de Deus em sua alma e seu divino eco repercutirá entre todos, fortalecendo-os no combate e tornando-os reconhecíveis como discípulos de Jesus.

 

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