Para compreender a arquitetonia do magnífico plano divino da criação, devemos ver a Redenção operada na Cruz como o centro da História, em torno do qual tudo se conjuga para a glória de Deus, até mesmo o pecado.
Evangelho da Festa da Exaltação da Santa Cruz
“Naquele tempo, disse Jesus a Nicodemos: 13 ‘Ninguém subiu ao Céu, a não ser Aquele que desceu do Céu, o Filho do Homem. 14 Do mesmo modo como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado, 15 para que todos os que n’Ele crerem tenham a vida eterna.
16 Pois Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho Unigênito, para que não morra todo o que n’Ele crer, mas tenha a vida eterna. 17 De fato, Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele’” (Jo 3, 13-17).
I – A Cruz nos abriu as portas do Céu
Quando Adão e Eva, por causa do pecado, foram expulsos do Paraíso, as portas do Céu se fecharam para o homem, e assim teriam permanecido até hoje se não fosse a Redenção. Poderíamos chorar nossa culpa, mas as lamentações de nada adiantariam para nos alcançar o convívio eterno com Deus, pois só uma iniciativa d’Ele o poderia fazer. E foi o que aconteceu quando Se encarnou e morreu por nós na Cruz.
É por isso que a Igreja quer concentrar a atenção dos fiéis nesse augusto Madeiro, celebrando a festa da Exaltação da Santa Cruz, e no dia seguinte a comemoração de Nossa Senhora das Dores, que une à Cruz as lágrimas de Maria Santíssima, Corredentora do gênero humano. Em ambas as celebrações, a Liturgia nos permite venerar de modo especial o instrumento de nossa salvação, o qual passou a ser objeto de adoração a partir do momento em que Jesus Cristo foi nele crucificado, com terríveis cravos que transpassaram sua Carne sagrada. Tal é o poder do preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo! Devemos adorar a Cruz com a mesma latria que tributamos ao Homem-Deus, tanto por ser imagem d’Ele quanto por ter sido tocada por seus membros divinos e inundada por seu Sangue.1 Por este motivo, recomenda-se manter duas velas acesas durante a exposição de uma relíquia do Santo Lenho.
Diante do panorama apresentado pela Igreja nesta ocasião, é preciso considerarmos de maneira apropriada o mistério de um Deus crucificado.
O universo é ótimo no seu conjunto
Como ensina a teologia, tudo quanto Deus criou poderia ser mais perfeito, à exceção de três criaturas: a humanidade santíssima de Jesus Cristo, a visão beatífica e a Mãe de Deus.2 No entanto, é importante lembrar, no seu conjunto o universo não poderia ser melhor, pois sua ordem é insuperável.3 O Gênesis descreve como, ao longo dos dias da criação, Deus deitou seu olhar sobre cada uma das partes de sua obra e viu que eram boas; no sexto dia, porém, quando a contemplou inteira, viu que era ótima (cf. Gn 1, 31).
Contudo, parece difícil conciliar essa ideia de perfeição do universo com a existência do pecado. Seria bem mais do nosso agrado um mundo livre de qualquer entrave, problema ou complicação, em que todas as criaturas fossem excelentes, os Anjos e os homens correspondessem plenamente à graça, sem cometer uma só falta, e não houvesse inferno. Ora, nessas condições a Redenção seria desnecessária, e é provável que o Verbo também não Se encarnasse, do que se infere que Deus não escolheria uma Mãe para Si. Das três criaturas perfeitíssimas existentes agora — Jesus, Maria e a visão beatífica —, só ficaria esta última. O universo seria menos belo e daria ao Criador uma glória menor do que o nosso, maculado pela culpa original e por todas as suas consequências.
Passemos, então, a analisar a Liturgia de hoje de dentro dessa perspectiva, para entendermos com profundidade o problema da Cruz.
II – Uma pré-figura de Cristo crucificado
A primeira leitura, extraída do Livro dos Números (21, 4-9), aborda um episódio da travessia do deserto rumo à Terra Prometida: “Os filhos de Israel partiram do Monte Hor, pelo caminho que leva ao Mar Vermelho, para contornarem o país de Edom” (Nm 21, 4). Era uma marcha penosa, por ser um terreno árido, inóspito e sem água.4 Além disso, o povo se enfastiara com o maná, o “pão vindo do céu” (Sl 104, 40) que Deus lhes concedia para sustento, fazendo-o chover junto com o orvalho (cf. Nm 11, 9). Como os israelitas, por terem saído de um ambiente impregnado de tremenda volúpia, deviam adquirir gostos temperantes, o maná, que era uma comida leve, da qual só se podia recolher uma determinada medida, embora satisfizesse o apetite deixava-os com a sensação de que lhes faltava algo. Eles queriam alimentos fortes, como as cebolas e os alhos do Egito, de cuja privação já se haviam lamentado pouco antes (cf. Nm 11, 5).
Essa situação do povo hebreu nos sugere uma analogia com a vida espiritual. Todos nós, batizados, somos convocados a entrar na “Terra Prometida” da santidade e, a certa altura do percurso, temos de atravessar o deserto da aridez. A sensibilidade do sobrenatural se retira, desaparece de nosso panorama interior qualquer consolo ou amparo palpável e, se não soubermos sofrer a ausência desses estímulos, choramos pelas “cebolas do Egito”, que são os elementos do passado aos quais renunciamos para trilhar as vias da virtude. Em tais fases de provação, só temos para a caminhada um maná vindo do Céu: a graça cooperante, que Deus nunca deixa de conceder, mas exige de nós o esforço e o sacrifício.5
O povo eleito se revolta contra Deus e contra seu profeta
Humanamente falando, a revolta seria uma reação compreensível na conjuntura em que os israelitas se encontravam. Entretanto, o texto relata que o povo não manifestou apenas inconformidade com a precariedade material, mas “se pôs a falar contra Deus e contra Moisés” (Nm 21, 5a). Dirigindo-se ao profeta, cobravam-lhe aquilo que exigiriam do próprio Deus, caso O encontrassem: “Por que nos fizestes sair do Egito para morrermos no deserto? Não há pão, falta água e já estamos com nojo desse alimento miserável” (Nm 21, 5b). Ora, o maná era um milagre renovado por Deus todos os dias! Imaginemos essas palavras sendo ditas pelo convidado de um banquete ao seu anfitrião… Não deve ter sido muito diferente a vociferação que Lúcifer lançou contra Deus quando se rebelou no Céu, tal é a falta de generosidade e de amor que esta queixa encerra! Foi um pecado contra o Primeiro Mandamento: “amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todas as tuas forças” (Dt 6, 5).
O povo é castigado
Deus, porém, não tolera que haja revolta contra seus mediadores, a ponto de tomar as murmurações do povo como reclamações feitas a Si próprio. Também nós O provocamos de forma análoga quando não aceitamos os reveses, provações e dores da vida, pois essa atitude é, no fundo, um protesto contra Deus.
Para castigar os filhos de Israel, o Senhor mandou terríveis serpentes — “ardentes”,6 segundo o original hebraico —, que infestaram o acampamento. Não está dito que Deus as tenha criado naquele instante; decerto Ele as reuniu, em grande quantidade, e soltou-as ali. Sua venenosa picada causava febre altíssima que matava em pouco tempo, tendo sido grande o número de vítimas.
Depois de ter morrido “muita gente em Israel” (Nm 21, 6), o povo reconheceu nessa calamidade um castigo divino e, afinal, o medo, que nem sempre propicia a conversão, os levou ao arrependimento. E era este o objetivo de Deus. Foram eles pedir a intercessão de Moisés, admitindo que o pecado cometido tinha duplo alcance, pois ofendera o Altíssimo e seu representante: “Pecamos, falando contra o Senhor e contra ti” (Nm 21, 7).
A serpente de bronze
Deus respondeu aos rogos de Moisés com a seguinte recomendação: “Faze uma serpente de bronze e coloca-a como sinal sobre uma haste; aquele que for mordido e olhar para ela, viverá” (Nm 21, 8). E não eliminou as serpentes, permitindo que elas continuassem suas investidas contra os hebreus. Já perdoados por Deus — livres, portanto, da pena eterna daquele pecado —, os israelitas expiavam desse modo a pena temporal, à qual o pecador fica sujeito em virtude do apego desordenado aos bens terrenos, que todo pecado, seja mortal ou venial, acarreta.7
Moisés cumpriu a determinação divina, estabelecendo-se a partir de então uma situação de milagre permanente e incontestável diante de quantos haviam assistido a inúmeras mortes produzidas pelas abrasadoras serpentes. Quem era picado sabia que não existia remédio para o seu mal, e a única chance de sobrevivência estava junto a Moisés, pois o profeta sempre levava consigo o cajado em cuja extremidade fixara a serpente de bronze. Assim, Deus manifestava empenho em manter o princípio de mediação e fazia os israelitas comprovarem não só sua onipotência e bondade, como também os benefícios de ter um profeta que os guiasse e interviesse em favor deles.
A consequência de não aceitar o sofrimento
A narração presente no Livro dos Números chama a atenção para algo muito importante: a atitude dos homens perante a dor. O povo eleito, livre da escravidão dos egípcios e conduzido à Terra Prometida, já presenciara portentosos milagres realizados por Deus através de Moisés, como, por exemplo, a abertura do Mar Vermelho. Não obstante, quando se viram obrigados a enfrentar uma situação difícil, imediatamente culparam o profeta, seu libertador — e também o próprio Deus, por ter posto aquele varão no seu caminho —, acusando-o de ser a causa do infortúnio deles. Pretendendo suprimir todo e qualquer sofrimento, revoltaram-se eles contra Deus e caíram numa atribulação muito maior: o Senhor Se retraiu e castigou-os com as serpentes.
Cabe a nós extrair daí uma lição: nunca procurarmos fugir da cruz, pois, além de ser uma tentativa inútil, ela se tornará maior e mais pesada, como aconteceu aos hebreus no deserto.
III – A verdadeira serpente levantada na haste
Á luz do Evangelho de São João proposto pela Liturgia desta festa, a imagem da serpente de bronze se reveste de novo colorido, apresentando-se como pré-figura da ação redentora de Jesus Cristo na Cruz. Deus quis que este mesmo animal, por cuja sugestão o pecado e a morte se introduziram no mundo, se transformasse em sinal de cura para os filhos de Israel, representando o Divino Redentor, que nos traria a verdadeira vida, como se lê no Livro da Sabedoria: “Quem se voltava para ele era salvo, não em vista do objeto que olhava, mas por Vós, Senhor, que sois o Salvador de todos” (16, 7). Explicando essa pré-figura, São Justino assevera que nela “Deus anunciava um mistério, por meio do qual haveria de destruir o poder da serpente, autora da transgressão de Adão, e, ao mesmo tempo, a salvação para os que cressem em quem era simbolizado por este sinal, ou seja, n’Aquele que haveria de ser crucificado e de livrá-los das picadas da serpente, que são as más ações, as idolatrias e demais iniquidades”.8
Apesar de nos causar certo choque, essa imagem da serpente é rica em simbolismo. Com efeito, trata-se de um animal perigoso e que, curiosamente, sempre esteve relacionado à medicina, sendo emblemático do poder curativo. Seu veneno é letal, mas também possui propriedades terapêuticas que, uma vez trabalhadas, são utilizadas como remédio. Eis a vida e a morte sintetizadas num mesmo animal, qual pedra de escândalo: quem sabe aproveitá-lo, obtém elementos para a restauração da saúde; quem se descuida, é picado e morre.
Ao contrastarmos a figura com a realidade, veremos que Deus também poderia ter operado a Redenção eliminando para sempre o pecado e seus efeitos, por uma simples deliberação, sem o concurso de nenhum intercessor. Todavia, permitiu que os homens continuassem pecáveis, deixando à disposição de todos a possibilidade de encontrar o perdão junto ao “mediador da Nova Aliança” (Hb 12, 24), Nosso Senhor Jesus Cristo. Por aí se entende porque Simeão, quando recebeu nos braços o Menino Jesus, proclamou que Ele seria pedra de escândalo, pois serviria para a salvação ou condenação de muitos (cf. Lc 2, 34). Ele é, de fato, divisor. Quem é tocado pelo pecado e O olha, encontra o remédio para seus males. Mas, ai de quem procura a solução fora d’Ele!
Um fariseu simpático ao Messias
Toda essa doutrina está bastante vincada na conversa noturna de Nosso Senhor com Nicodemos, da qual este Evangelho recolhe um curto trecho que se conjuga de maneira extraordinária com a primeira leitura. Além de suculentíssima em conteúdo, essa conversa deve ter durado várias horas. Infelizmente São João a sintetiza em escassos parágrafos, de per si repletos de maravilhas.
Segundo São João Crisóstomo, Nicodemos “estava já bem disposto em relação a Cristo, se bem que sua fé fosse ainda débil e tão rude como a de todos os judeus”.9 Sendo fariseu e membro do Sinédrio, ele sabia do mau conceito que este tinha acerca de Jesus, e não queria manifestar sua adesão a Ele para não ter de enfrentar o próprio ambiente. E por tal razão “foi ter com Jesus, de noite” (Jo 3, 2), deslocando-se de modo sorrateiro pelas ruas, as quais, naquela época, eram iluminadas somente pelo brilho da Lua e das estrelas. Talvez ele tenha esperado uma noite de Lua nova ou de céu enevoado, a fim de evitar que sua silhueta se projetasse nos caminhos e, aproveitando-se da queda noturna da temperatura, tenha se acobertado bem, até a cabeça.
Este bom fariseu vai à procura de Nosso Senhor não só pela curiosidade de ver de perto aquele Mestre, cuja fama se espalhava por todos os recantos de Israel, como também porque desejava descobrir de onde vinha o poder de operar milagres, a força de expressividade de Jesus e a capacidade de penetração de seus ensinamentos, e se perguntava se não seria Ele um profeta precursor do Messias. Nicodemos tinha a mente repleta de interrogações, pois era um homem de espírito lógico, de princípios doutrinários muito sólidos e exímio conhecedor da Lei e das Escrituras, constante objeto de seu estudo. E ele queria conferir seu saber com a novidade trazida por Cristo. Aos poucos, no decorrer da conversa, o Divino Mestre irá trabalhando sua alma e abrindo-lhe os olhos para a Fé.
Uma alusão à união hipostática
“Naquele tempo, disse Jesus a Nicodemos: 13 ‘Ninguém subiu ao Céu, a não ser Aquele que desceu do Céu, o Filho do Homem’”.
Como Nicodemos era fariseu convicto, o Divino Mestre usa um método muito didático e prudente para lhe falar da Encarnação. Se Ele lhe revelasse o mistério da união hipostática, dizendo: “Eu sou Deus, sou a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade e assumi a natureza humana”, seu interlocutor não entenderia e até julgaria tal afirmação uma blasfêmia. É por meio de uma linguagem figurada que Jesus conversa a esse respeito, de forma a permitir que a graça, criada por Ele próprio, atue na alma de Nicodemos. Eis um princípio para o apostolado: quando nos encontramos num ambiente hostil à Fé ou despreparado para receber a Boa-nova, o melhor modo de evangelizar é a través de figuras. Por isso, a arte, toda feita de símbolos, é um estupendo meio de tirar do pecado as gerações mais pervertidas e levá-las à santidade.
De início, Nosso Senhor diz que “ninguém subiu ao Céu”, referindo-Se à situação dos homens depois do pecado original, que ali estavam impedidos de entrar. Todos os justos do Antigo Testamento se encontravam no Limbo, onde não havia fogo, nem escuridão ou tormentos, mas o anseio de felicidade eterna, inerente a toda criatura humana, permanecia insaciado.10 Entretanto, quando o Filho “desceu do Céu”, encarnando-Se, Ele não abandonou o Céu, pois é Deus. E como sua Alma humana foi criada na visão beatífica desde o primeiro instante de sua existência, Jesus podia dizer com propriedade que “subiu ao Céu”. Logo, “ninguém” subiu ao Céu antes da Redenção, a não ser Nosso Senhor Jesus Cristo. Esta afirmação levanta uma interrogação na cabeça de Nicodemos, enquanto Nosso Senhor prosseguia o discurso, remontando ao episódio das serpentes no deserto.
A realização da pré-figura
14 “Do mesmo modo como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado, 15 para que todos os que n’Ele crerem tenham a vida eterna”.
Assim como aqueles animais peçonhentos se propagaram pelo acampamento dos hebreus, o mal penetrou na face da Terra com o pecado de Adão. E não há outra salvação para os homens senão olhar para a verdadeira serpente de bronze, Nosso Senhor Jesus Cristo crucificado.
A pré-figura da serpente, porém, é nada em comparação com o que se verificou de fato, porque a realidade sempre é muito mais rica do que o símbolo. Nosso Senhor poderia perdoar apenas nossa culpa, de maneira que, com a alma em ordem, tivéssemos uma eternidade feliz do ponto de vista natural. Mas Ele, além de nos curar do pecado, oferece a possibilidade de participarmos de sua própria vida divina, que jamais obteríamos pelos nossos esforços. Somos convidados a crer n’Ele, acolhendo tudo quanto nos trouxe ao vir ao mundo, quer sua doutrina, quer sua graça, recebida, sobretudo, através dos Sacramentos. Numa palavra, aceitar a Igreja e viver em união com ela. Para isso, era necessário que o Filho do Homem fosse levantado no Madeiro, como Jesus revela aqui a Nicodemos. Nesta afirmação também transparece a divina didática de Nosso Senhor, que toma o cuidado de não usar o termo crucifixão, mas emprega a expressão “ser levantado”, que poderia significar também sua Ascensão aos Céus, dependendo de como Nicodemos a interpretasse. No apostolado, muitas vezes, devemos agir desta forma, de proche en proche, a fim de predispor as almas a aceitar a verdade plena, sem lhe pôr obstáculos.
O infinito amor do Pai pelos homens
16 “Pois Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho Unigênito, para que não morra todo o que n’Ele crer, mas tenha a vida eterna”.
Para aproveitarmos a imensa riqueza teológica deste versículo, pensemos, em primeiro lugar, que o Pai celeste não pode Se esquecer de nenhuma de suas criaturas. Se, por absurdo, isso acontecesse, elas voltariam ao nada no mesmo instante, pois é Ele quem tudo sustenta no ser. Lembremo-nos também de que Deus não pode criar algo que não seja para Si, para seu proveito e sua glória. Sendo assim, Ele nunca deixará de ter apreço pelos seres aos quais deu a existência. E tão grande é esse amor que Ele dá ao mundo seu Filho Unigênito, para que todos tenham vida e “a tenham em abundância” (Jo 10, 10).
Sem essa oblação, nós — na melhor das hipóteses — estaríamos destinados a passar a eternidade no Limbo, à luz de nossa própria inteligência, o que não pode ser chamado de verdadeira vida. Nosso Senhor Jesus Cristo nos oferece a vida eterna no Céu, onde receberemos a luz do próprio Deus para contemplá-Lo por todo o sempre, como diz o Salmo: “in lumine tuo videbimus lumen — na vossa luz veremos a luz” (35, 10), a luz da visão beatífica.
O Filho desceu do Céu para abraçar a Cruz
Qual foi a via escolhida por Deus para consumar a entrega de seu Filho ao mundo? A mais perfeita de todas — pois Ele não pode desejar para Si nada que seja inferior — mas causa espanto: a morte de Cruz! Nós preferiríamos que Ele triunfasse sobre o mal desde o início e não sofresse os tormentos da Paixão. Na verdade, se Jesus oferecesse ao Pai um simples fechar de olhos, um gesto, uma palavra ou um ato de vontade, seria suficiente para reparar nosso pecado. Contudo, segundo ensina São Paulo na segunda leitura de hoje (Fl 2, 6-11), “Jesus Cristo, existindo em condição divina, não fez do ser igual a Deus uma usurpação, mas Ele esvaziou-Se a Si mesmo, assumindo a condição de escravo e tornando-Se igual aos homens. Encontrado com aspecto humano, humilhou-Se a Si mesmo, fazendo-Se obediente até a morte, e morte de Cruz” (Fl 2, 6-8). Sendo Deus, o Filho possui a alegria eterna e poderia ter dado à sua natureza humana uma vida terrena cheia de deleites. Não obstante, a natureza divina comunicou a Cristo-Homem o gozo de abraçar a Cruz, ser nela pregado e morrer, cumprindo a vontade d’Aquele que O enviara (cf. Jo 5, 30), para salvar os homens da morte eterna.
Símbolo da perfeição do universo
17 “De fato, Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele”.
Ao ouvir estas palavras, Nicodemos entendeu, decerto — ainda que de modo um tanto nebuloso —, que se iniciava um novo regime na história do povo eleito: a era da justiça inclemente estava terminada e começava a era da misericórdia. E esta, tão mais forte do que aquela! A tal ponto, que o irretorquível ímpeto da justiça, capaz de levar suas determinações até as últimas consequências, se rende quando encontra a misericórdia. Porque a misericórdia é como a água, e a justiça, como o fogo. Este queima, destrói e consome, mas no contato com a água, ele se extingue, desaparecendo as chamas, as brasas e todo o ardor. À humanidade que gemia sob a ameaça de um castigo, a Providência mandou o oxigênio da misericórdia, do qual vivemos há mais de dois milênios.
Em suma, foi com o intuito de nos salvar que a Santíssima Trindade promoveu a vinda do Filho ao mundo. Desde toda a eternidade a Cruz esteve na mente de Deus, com um papel central na História, como instrumento para a realização da perfeição das perfeições do universo, sua maior honra e sua excelsa beleza: a Redenção. Diante deste panorama é possível, inclusive, entender porque Deus permitiu o pecado. No plano da criação, a suprema glória não é a inexistência deste mal, mas o Homem-Deus, que Se deixou prender e crucificar, por amor a nós.
IV – A Cruz, fonte de glória
À primeira vista, então, pareceria contraditório o que comemoramos nesta festa: a Exaltação da Santa Cruz. No entanto, a Cruz, outrora considerada como o pior dos desastres na vida de alguém, um símbolo de ignomínia que serviu para a execução de tantos criminosos, é hoje exaltada pela Igreja porque Nosso Senhor Jesus Cristo veio ao mundo mostrando o quanto ela Lhe é própria. É “o sinal do Filho do Homem” (Mt 24, 30) e Ele a transformou em sinal de triunfo! Por isso, a Cruz triunfa no alto das catedrais, na ponta das coroas e no centro das mais importantes medalhas.
A Cruz é a via da glória. Com quanta razão se diz: “Per crucem ad lucem — É pela cruz que se chega à luz”. E é este o princípio que a Liturgia de hoje oferece para nosso benefício espiritual: se queremos atingir a santidade, nada é tão central quanto saber sofrer. O traço comum de todos os Santos é justamente sua atitude diante da Cruz. De fato, o momento decisivo de nossa perseverança não é aquele em que a graça sensível nos toca e damos passos vigorosos na virtude, mas, sim, a hora da provação, quando as tentações nos assaltam e experimentamos nossa debilidade. Não foi sem motivo que, ao ensinar o Pai Nosso, o Divino Mestre disse “livrai-nos do mal”; mas Ele não empregou o mesmo verbo no pedido referente às tentações: “não nos deixeis cair em tentação”. Ser tentado é algo inevitável e necessário depois do pecado original. Nessa hora, devemos resistir abraçados à cruz, certos de que nela se encontra nossa única esperança: “Ave Crux, spes unica!”. E quando cometemos uma falta ou nossa vida interior parecer encalhada, dando-nos a impressão de não sermos amados por Deus, lembremo-nos de que esta sensação é contrária à revelação feita por Nosso Senhor no Evangelho que acabamos de considerar; pensemos que Deus nos ama tanto, que o Filho teria Se encarnado e sofrido a Paixão de Cruz para salvar a cada um de nós, individualmente.
Glorifiquemos transbordantes de júbilo, nesta festa, o sinal de nossa salvação e o penhor da ressurreição futura, e saibamos carregar sempre a própria cruz com amor e veneração, tal como o fez nosso Salvador antes de começar a Via-Sacra. ◊
Notas
1 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.25, a.4. Tal adoração não se presta só à Cruz na qual Nosso Senhor foi crucificado, mas também às imagens desta, como explica o Doutor Angélico neste mesmo artigo: “Se falamos da imagem da Cruz de Cristo, feita de qualquer outra matéria, por exemplo, de pedra, madeira, prata ou ouro, a Cruz é venerada só como imagem de Cristo, com uma adoração de latria”.
2 Cf. Idem, I, q.25, a.6, ad 4.
3 Cf. Idem, ad 3.
4 Cf. COLUNGA, OP, Alberto; GARCÍA CORDERO, OP, Maximiliano. Biblia Comentada. Pentateuco. Madrid: BAC, 1960, v.I, p.847.
5 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., I-II, q.111, a.2.
6 COLUNGA; GARCIA CORDERO, op. cit., p.847.
7 Cf. CCE 1472-1473.
8 SÃO JUSTINO. Diálogo con Trifón, 94, 2. In: RUIZ BUENO, Daniel (Org.). Padres Apologetas Griegos (s.II). 2.ed. Madrid: BAC, 1979, p.470.
9 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO. Homilía XXIV, n.1. In: Homilías sobre el Evangelio de San Juan (1-29). 2.ed. Madrid: Ciudad Nueva, 2001, v.I, p.289.
10 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., III, q.52, a.5, ad 1.