O mundo atual tornou-se uma imensa Nazaré. Para salvá-lo, é necessário apresentar a Palavra de Deus em toda a sua força e fazê-lo experimentar a felicidade que só a graça pode nos dar.
Evangelho do III Domingo do Tempo Comum
1,1 Muitas pessoas já tentaram escrever a história dos acontecimentos que se realizaram entre nós, 2 como nos foram transmitidos por aqueles que, desde o princípio, foram testemunhas oculares e ministros da Palavra. 3 Assim sendo, após fazer um estudo cuidadoso de tudo o que aconteceu desde o princípio, também eu decidi escrever de modo ordenado para ti, excelentíssimo Teófilo. 4 Deste modo, poderás verificar a solidez dos ensinamentos que recebeste.
Naquele tempo, 4,14 Jesus voltou para a Galileia, com a força do Espírito, e sua fama espalhou-se por toda a redondeza. 15 Ele ensinava nas suas sinagogas e todos O elogiavam. 16 E veio à cidade de Nazaré, onde Se tinha criado. Conforme seu costume, entrou na sinagoga no sábado, e levantou-Se para fazer a leitura. 17 Deram-Lhe o livro do profeta Isaías. Abrindo o livro, Jesus achou a passagem em que está escrito: 18 “O Espírito do Senhor está sobre Mim, porque Ele Me consagrou com a unção para anunciar a Boa-nova aos pobres; enviou-Me para proclamar a libertação aos cativos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos 19 e para proclamar um ano da graça do Senhor”. 20 Depois fechou o livro, entregou-o ao ajudante, e sentou-Se. Todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos n’Ele. 21 Então começou a dizer-lhes: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir” (Lc 1, 1-4; 4, 14-21).
I – O papel da palavra no relacionamento dos homens entre si e com Deus
Em seu infinito amor por nós, Deus tem enorme desejo de entrar em contato conosco e fazer-nos partícipes de sua alegria eterna. Para facilitar ao máximo esse relacionamento, quis Ele deixar na própria natureza reflexos de seu anseio de comunicar-Se. Analisando, por exemplo, as formigas, vemos como, ao descobrir algum alimento, elas rapidamente se organizam num verdadeiro cortejo a fim de levá-lo até o formigueiro. Embora não conversem entre si, transmitem informações umas às outras ao se “cumprimentarem” com as antenas, tornando possível o trabalho em conjunto.
Aos homens, porém, o Criador reservou um meio mais perfeito para se comunicarem: a palavra. De fato, se não tivéssemos essa capacidade de nos expressar, como transmitiríamos aos demais nossos pensamentos, juízos e experiências? A palavra é um elemento essencial no convívio humano, a ponto de, em muitas ocasiões, se constituir num critério para indicar com quem queremos ou não nos relacionar. Cortar a palavra com alguém significa um rompimento, chegando às vezes a criar graves indisposições até entre familiares. Do mesmo modo, negar a outro o uso da palavra no ambiente social pode feri-lo profundamente. E não menos trágica é a situação de quem precisa de uma palavra de orientação, mas não encontra quem a diga.
Pois bem, a palavra humana, tão importante para a boa convivência, não é senão pálida imagem de uma realidade muito mais alta: a Palavra de Deus manifestada aos homens, temática central da Liturgia deste III Domingo do Tempo Comum.
Deus comunica-Se com os homens através da Palavra
Na primeira leitura (cf. Ne 8,2-4a.5-6.8-10) encontramos a figura de Neemias, um dos israelitas exilados entre os persas, que servia na corte do Rei Artaxerxes (465-424 a.C.). Ali ele recebe o relato da triste situação da Cidade Santa, reduzida praticamente a ruínas. Entre lágrimas, Neemias faz uma belíssima oração pedindo perdão pelos pecados de Israel e rogando o restabelecimento do povo em Jerusalém. Deus o atende, e ele obtém o favor do monarca a fim de reconstruir a cidade.
No trecho recolhido na leitura deste domingo (Ne 8, 2-4a.5-6.8-10), Neemias reúne os israelitas repatriados numa esplanada próxima à Porta das Águas em Jerusalém, e pede a Esdras, sacerdote e escriba, que leia diante de todos o livro da Lei de Moisés.
Ao ouvir a leitura e explicação desses preceitos, desde o nascer do sol até o meio-dia, eles percebem o quanto haviam traído a aliança feita com o Senhor, seguindo as vias do pecado. Compungidos até as lágrimas, dão-se conta de que a felicidade não está no rompimento da Lei, mas sim em seguir a Palavra de Deus.
Vê-se nessa cena a sabedoria divina em deixar por escrito a Lei. Com efeito, o homem sempre cria razões erradas para justificar seus desvios e facilmente se esquece dos preceitos que o levam à salvação. Naquela quadra histórica era preciso relembrá-los, e o Senhor usou da Palavra escrita por Moisés para entrar em comunicação com o seu povo.
Eis a importância da Palavra de Deus que, uma vez dita e recolhida pelos hagiógrafos, serve de elemento para recordar nossa aliança com o Altíssimo.
Contudo, aprouve ao Pai das misericórdias conceder aos seus eleitos ainda mais: após o nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, temos não apenas a Lei posta em palavras escritas, como os judeus no tempo de Neemias, mas o próprio Criador da Lei, a Palavra Encarnada para a salvação da humanidade, a Lei em Pessoa.
II – A Palavra Eterna e Encarnada
A Igreja escolhe para este domingo a abertura do Evangelho de São Lucas, iniciando assim o percurso pela vida pública de Nosso Senhor segundo este Evangelista, que será seguido ao longo da Liturgia dominical do Ano C.
Escrivão do testemunho de Maria Santíssima
1,1 Muitas pessoas já tentaram escrever a história dos acontecimentos que se realizaram entre nós, 2 como nos foram transmitidos por aqueles que, desde o princípio, foram testemunhas oculares e ministros da Palavra. 3 Assim sendo, após fazer um estudo cuidadoso de tudo o que aconteceu desde o princípio, também eu decidi escrever de modo ordenado para ti, excelentíssimo Teófilo. 4 Deste modo, poderás verificar a solidez dos ensinamentos que recebeste.
Escritor exímio, São Lucas reúne em si qualidades diversas que revelam ter ele sido um homem muito culto. Enquanto médico, preocupou-se em incluir nos seus relatos aspectos muito precisos sobre a vida de Nosso Senhor. Isso, porém, não lhe tirou o estro poético, sendo de sua lavra algumas das mais belas passagens dos Evangelhos.
Conforme ele afirma nesses primeiros versículos, já em sua época muitos haviam tentado escrever a história de Jesus Cristo. Ora, quem se atirava a esta empresa sem a inspiração do Espírito Santo, fundamentando-se apenas naquilo que vira sem entender ou ouvira dizer, facilmente adulterava a realidade. Daí terem surgido diversos Evangelhos apócrifos, que a Igreja não acolheu como parte da Revelação, tanto mais que vários deles continham heresias, especialmente de caráter gnóstico. Com o tempo, estas deturpações da figura do Salvador caíram em descrédito ou esquecimento, pois Deus só permite que permaneça a Palavra provinda d’Ele.
Inspirado pelo Alto, São Lucas resolveu relatar também a vida de Nosso Senhor, com base naquilo que ouvira diretamente ou lhe contaram testemunhas oculares. Quem foram estes seus depoentes? Certamente os próprios Apóstolos e discípulos. Há, porém, outra informante pouco mencionada, mas sem dúvida muito relacionada com ele: Maria Santíssima. Pelas descrições tão minuciosas, embora sintéticas, de episódios sublimes como a Anunciação e Encarnação do Verbo, a Visitação ou a Natividade, vê-se que São Lucas conversou longamente com Nossa Senhora e d’Ela ouviu maravilhas.
No contexto da Liturgia deste domingo, a introdução de seu Evangelho ressalta mais uma vez a importância da Palavra e o enorme empenho de Deus em entrar em contato conosco para nos formar e mostrar o seu amor. Esse divino anseio se manifestará em plenitude na cena descrita no capítulo quatro, na qual encontramos Nosso Senhor Jesus Cristo em Nazaré.
Início da vida pública com a força do Espírito
Naquele tempo: 4,14 Jesus voltou para a Galileia, com a força do Espírito, e sua fama espalhou-se por toda a redondeza. 15 Ele ensinava nas suas sinagogas e todos O elogiavam.
Concluída sua vida oculta, no momento determinado pelo Pai, Nosso Senhor deixou Nazaré, onde passara mais de vinte anos preparando-Se para sua missão pública, e começou a percorrer diversas cidades de Israel.
Pouco tempo depois de iniciada a pregação da Boa-nova, Ele retornou à Galileia “com a força do Espírito”. Esta sempre O acompanhou, mas aqui a expressão do Evangelista diz respeito à sua manifestação diante da opinião pública. O Espírito Santo havia preparado as almas, de forma que a fama de Jesus se espalhou com ímpeto por toda aquela região, tanto mais que Ele continuava o caminho aberto por São João Batista, multiplicando os efeitos de sua pregação.
Todos os sábados, Nosso Senhor dirigia-Se à sinagoga do local onde Se encontrava e ali ensinava por meio de palavras e sinais. Multidões cada vez maiores O estimavam e seguiam, pois aquela poderosa força predispunha seus ouvintes para compreenderem a beleza do que Ele falava. Sua atuação produzia forte comoção e “todos O elogiavam”. O Reino de Deus havia começado!
Como é natural, os comentários a respeito d’Ele borbulhavam nas cidadezinhas daquele tempo e percorriam grandes distâncias, chegando logo a Nazaré. Assim, Jesus determinou visitar também sua cidade.
As origens do Nazareno
16a E veio à cidade de Nazaré, onde Se tinha criado.
O Evangelista escreve com precisão, pois não afirma que Nosso Senhor nasceu em Nazaré, mas sim que ali foi criado. Com exceção do período do nascimento em Belém e da fuga para o Egito, sua vida transcorrera em Nazaré, onde era conhecidíssimo. Agora, essa cidade assistia ao retorno de Jesus já aureolado pela fama de profeta e taumaturgo.
Reza o ditado que “a caridade começa da própria casa”. Ele, de fato, quis voltar a Nazaré para beneficiar aqueles com os quais tinha convivido, porque os amava. Desejava dizer-lhes uma palavra, mas desta vez “com a força do Espírito”. Antes o Consolador não tocava as almas como o faria nesta nova visita, apresentando-O enquanto Filho de Deus e não mais como um simples Homem.
Era o momento da graça, o momento ideal. Se a respeito do nascimento de Cristo, São Tomás de Aquino1 ensina que ele se deu no tempo preciso, porque Deus tudo faz com perfeição, o mesmo se pode asseverar sobre a oportunidade dessa visita.
Nosso Senhor já havia convertido a água em vinho em Caná, manifestado um miraculoso discernimento dos espíritos em relação a Natanael e convertido a Samaritana, entre outras obras admiráveis. Ora, em Nazaré todos O conheciam como o Filho do carpinteiro e, portanto, estavam muito curiosos em saber, sempre por um prisma humano, onde Ele tinha aprendido o que ensinava e como operava aqueles milagres. No fundo, ansiavam por comprovar a veracidade daquilo que ouviam e, pragmáticos e interesseiros como eram, esperavam aproveitar-se d’Ele para elevar o conceito da cidade em toda a nação judaica.
A despeito dessa visualização errada, podemos supor que Nosso Senhor encontrou-Se familiarmente com aquela gente, em especial com seus amigos de infância, tratando-os com indizível afeto e recordando episódios antigos. Ao ser-Lhe pedido para prolongar a conversa, talvez Ele tenha anunciado que no sábado estaria na sinagoga, e a informação correu como rastilho de pólvora…
Suspense na sinagoga de Nazaré
16b Conforme seu costume, entrou na sinagoga no sábado, e levantou-Se para fazer a leitura. 17 Deram-Lhe o livro do profeta Isaías. Abrindo o livro, Jesus achou a passagem em que está escrito:
Não é difícil imaginar a pequena sinagoga repleta e crepitando de expectativa. Até mesmo alguns que, por razões de força maior, costumavam faltar, não deixaram de comparecer naquele dia… Todos estavam na ponta dos pés!
Provavelmente os presentes insistiram com o ministro da sinagoga para que Jesus fosse o assistente convocado para fazer a leitura, segundo o costume no culto sabático. Como Ele já pregara em vários lugares, esperavam que comentasse longamente o trecho da Escritura escolhido.
A leitura era feita do alto de um estrado. Ao vê-Lo subir, os nazarenos começaram a analisá-Lo, comparando-O com o jovem que tinham conhecido. O Espírito trabalhava aquelas almas levando-as a perceber que, de fato, alguma coisa mudara. Sua elegância e distinção os encantavam. Até os mínimos gestos, como uma virada de cabeça ou um levantar da mão, apareciam-lhes revestidos de algo inteiramente diferente e superior.
Naquele tempo em que não existiam obras impressas, a Escritura era conservada em rolos manuscritos, cada qual contendo um dos Livros Sagrados ou parte dele. Costumava-se guardá-los num armário próprio, que constituía uma peça fundamental em toda sinagoga. A leitura não era combinada antes com a pessoa escolhida, mas separada no momento pelo ministro da sinagoga. Nessa ocasião, porém, provavelmente deram a Nosso Senhor o rolo do profeta Isaías por considerarem-no um dos mais difíceis de comentar. Assim, expunham Jesus a uma prova, a fim de verificar se sua fama correspondia à realidade.
Em meio ao suspense geral, o Divino Mestre desenrolou um pouco o livro. Já nesse descerrar, todos os presentes devem ter estremecido. Enquanto Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, Ele inspirara Isaías a escrever aquelas palavras e agora, enquanto Homem, as proclamaria. De forma aparentemente casual, Ele abriu o rolo em versículos muito bem escolhidos e começou a ler.
Uma profecia lida pelo profetizado
18 “O Espírito do Senhor está sobre Mim, porque Ele Me consagrou com a unção para anunciar a Boa-nova aos pobres; enviou-Me para proclamar a libertação aos cativos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos 19 e para proclamar um ano da graça do Senhor”.
Poder-se-ia pensar que o fato de os olhos de Nosso Senhor caírem exatamente em um trecho da profecia que Lhe dizia respeito foi ocasional… uma coincidência, um golpe de sorte! Mas o que muitas vezes julgamos ser mera coincidência, constitui na verdade um desígnio de Deus. Por sua ciência divina, Jesus conhecia as Escrituras desde toda a eternidade, e esse “acaso” havia sido preparado pela Providência.
A profecia indicava características essenciais do Messias. Ora, era o próprio Messias, o Salvador, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, quem abria aquele rolo. Tratava-se, portanto, de uma proclamação cujo eco ressoaria não só na minúscula sinagoga de Nazaré, mas atravessaria o universo inteiro e os séculos futuros. As estrelas, por assim dizer, dobraram os joelhos para ouvir Aquele que é, declarar: “O Espírito do Senhor está sobre Mim, porque Ele Me consagrou com a unção…”
De fato, ao ser batizado no Jordão pelo Precursor, já escolhido desde toda a eternidade para a missão de Redentor, Jesus foi consagrado pelo Espírito Santo em sua humanidade santíssima e tornou-Se o Ungido por excelência. A partir de então, Ele estava pronto para anunciar a Boa-nova aos pobres.
Esses pobres não eram simplesmente os privados de recursos financeiros, como se ouve em algumas pregações superficiais. Nosso Senhor também evangelizou famílias riquíssimas como a de Lázaro, Marta e Maria Madalena, a qual foi elogiada pelo Senhor ao derramar um perfume caríssimo sobre Ele. Pobres neste contexto eram aqueles que não punham sua esperança nos bens deste mundo, mas estavam ávidos da fé e do sobrenatural. Inteiramente desprendidos, sobretudo de si mesmos, almejavam conhecer a finalidade para a qual haviam sido criados; porém, ninguém os assistia, porque os sacerdotes da época negavam-lhes o ensinamento que deveriam dar. Eles careciam – e ainda carecem em nossos dias – de uma palavra de verdade.
Os cativos e oprimidos a serem libertados não eram, como dizem alguns, os tiranizados pelo poder político, mas sim aqueles que viviam sob a tremenda pressão preternatural promovida na sociedade pelo pecado. Eles gostariam de praticar a virtude com toda a liberdade e não conseguiam, por estarem acabrunhados pelo peso de consciência decorrente das culpas passadas. Concebidos no pecado original e prostrados pelas faltas atuais, eram escravos do demônio, pois “todo homem que se entrega ao pecado é seu escravo” (Jo 8, 34). Mas Nosso Senhor vinha libertá-los, outorgando-lhes a força para manter o estado de graça. O poder dos demônios estava sendo quebrado!
Por sua vez, aqueles judeus sabiam que em Cafarnaum Nosso Senhor havia operado diversas curas, inclusive de cegos. Era o sinal de que Ele também trazia a luz para todos os incapazes de ver a Deus. Sim, porque no Paraíso Terrestre o homem enxergava com facilidade as maravilhas divinas, mas tornou-se cego após o pecado. Jesus vinha restaurar a antiga visão.
Se isso não bastasse, Ele ainda devia “proclamar um ano da graça do Senhor”. Este, à diferença dos anos jubilares instituídos por Moisés (cf. Lv 25, 10), não mais teria fim. À saída do Paraíso, fora instituído o regime da lei natural, sucedido pelo regime da lei mosaica; tratava-se agora da abertura da era da graça.
Expectativa toda sobrenatural, criada pela graça
20 Depois fechou o livro, entregou-o ao ajudante, e sentou-Se. Todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos n’Ele.
Recolhido o rolo, Jesus passou a fita e o entregou ao ajudante. A seguir sentou-Se pois, ao contrário de nossos dias, naquele tempo o pregador tomava essa posição, enquanto os fiéis assistiam à pregação em pé. Nesse ínterim, o Salvador concedia mais graças àquelas almas e o Espírito Santo as trabalhava a fim de compreenderem bem quem tinham diante de si.
Um frêmito percorreu a assembleia. Conhecedores das repercussões da passagem de Nosso Senhor por outras cidades, os nazarenos percebiam o quanto elas se adequavam ao vaticínio de Isaías. Mais ainda, bastava-lhes ver os reflexos da personalidade divina que transluziam em sua humanidade santíssima… Era evidente que se tratava de Alguém completamente incomum. Quem, contemplando Nosso Senhor, divisando sua fisionomia, analisando seu modo de ser, seus gestos, seus cabelos, enfim, a magnificência que emanava d’Ele por todos os poros, seria capaz de negar que ali estava Deus se isto lhe fosse revelado?
Profecia cumprida diante de seus olhos
21 Então começou a dizer-lhes: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir”.
Ao usar a expressão “começou a dizer-lhes”, São Lucas indica que Nosso Senhor fez um longo sermão, do qual só registrou o início em seu manuscrito. Tanto mais que no versículo seguinte, não incluído nesta Liturgia, ele acrescenta que “todos davam testemunho a seu respeito, admirados com as palavras cheias de encanto que saíam de sua boca” (Lc 4, 22).
Talvez só no dia do Juízo conheceremos essas maravilhas que, infelizmente, não constam nas Escrituras. Entretanto, à maneira de hipótese, podemos supor que o Divino Mestre transmitiu o significado dessa passagem dando uma noção histórica a respeito das circunstâncias nas quais o profeta Isaías a escreveu, e mostrando sua ligação com os fatos passados e com o que previa para o futuro, desde sua época até o fim do mundo.
A cada explicação, tornava-se mais clara a conclusão registrada em forma de síntese pelo Evangelista: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir”. Abria-se uma nova era, pois se oficializava, de certo modo, o regime de graças do Novo Testamento.
III – Nosso Senhor nos convida a fazer parte de seu Corpo
Esta lindíssima Liturgia mostra-nos a importância da palavra, tanto na primeira leitura quanto na introdução do Evangelho de São Lucas, para apresentar a seguir a própria Palavra Encarnada.
Tão forte e substancioso é o desejo do Pai de entrar em contato conosco, que o Verbo Se fez carne e manifestou-Se aos homens para que pudéssemos contemplar n’Ele a divindade, como declarou ao Apóstolo Filipe: “Aquele que Me viu, viu também o Pai” (Jo 14, 9). Sendo idênticas as Três Pessoas Divinas, quem visse a Nosso Senhor, veria não só o Filho, mas também o Pai e o Espírito Santo.
Convidados a integrar o Corpo Místico de Cristo
Pois bem, como consequência desse empenho do Redentor, somos convidados a fazer parte da família divina. E é o que nos diz São Paulo na segunda leitura deste domingo (I Cor 12, 12-30). Todos nós, batizados, nos tornamos membros do Corpo Místico de Cristo, pertencemos a Ele e em tudo d’Ele dependemos.
De onde nos vem a força para sermos membros sadios desse Corpo e não membros apodrecidos pelo pecado? Vem da graça, a qual constitui o sexto plano da criação, acima dos minerais, vegetais, animais, homens e Anjos. Ela nos dá a possibilidade de participar da natureza divina, de sermos filhos de Deus (cf. I Jo 3, 1). A partir do Batismo, a Santíssima Trindade passa a inabitar nossas almas e se estabelece um relacionamento do Pai, do Filho e do Espírito Santo conosco. Esse comércio sobrenatural vale mais do que todo o universo criado!
Ora, para viver sempre da graça é condição indispensável ter uma vida interior fervorosa. Deus concede a todos graças suficientes, mas quase sempre elas resultam insuficientes pela deficiência de nossa natureza. Para obtermos as graças de que necessitamos, devemos rezar com constância: oração, se possível em família, pois a oração em conjunto apresenta muito mais eficácia que a oração particular. Ademais, precisamos nos aproximar dos Sacramentos, pois eles são fonte infalível da graça, evitar as ocasiões próximas de pecado e estar constantemente crescendo na prática das virtudes.
Vivemos numa imensa Nazaré
O mundo de hoje tornou-se uma imensa Nazaré, porque deixou de crer como em outros tempos. Não há fé na Presença Real de Nosso Senhor no Santíssimo Sacramento; não se venera Maria Santíssima como protetora nossa e Medianeira de todas as graças; já não se pratica a Lei de Deus. A sociedade vai se constituindo com base em novas leis e nova moral, cada vez mais agressivas.
Tal como fez Nosso Senhor em Nazaré, é preciso apresentar aos nossos contemporâneos a Palavra de Deus com toda a sua força, a fim de levá-los a experimentar a felicidade que só a vida da graça nos dá. A humanidade tem apenas um caminho para salvar-se: a fé manifestada pelas obras (cf. Tg 2, 17-18), ou seja, a prática dos Mandamentos da Lei de Deus.
Que cada um de nós compreenda a grandeza do chamado que lhe foi confiado e, inteiramente fiel às inspirações do Alto, atento à Palavra de Deus e ungido pela força da graça, anuncie a Boa-nova aos pobres de espírito, rumo à vitória de Maria Santíssima profetizada em Fátima: “Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará!” ◊
Nota
1 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.35, a.8.
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