Havia em remotas eras, entre os pastores nômades do Oriente Próximo, a prática de um rito sacrifical relacionado com uma crença comum aos povos asiáticos: a “ressurreição” de Baal por ocasião da primavera.
Nessa época do ano, antes de partir em busca de pastagens para o gado, eles imolavam um tenro cordeiro com o objetivo de garantir a fecundidade de todo o rebanho e, por conseguinte, a prosperidade do povo. E derramavam o sangue da vítima nas traves da tenda, para afastar dela os maus espíritos.1
A páscoa judaica: memorial de uma predileção
Encontramos no capítulo 12 do Êxodo uma série de instruções dadas por Deus a Moisés, nas quais se notam traços em comum com os costumes acima mencionados, mas com substância e significado totalmente diferentes. Não se trata de um ato supersticioso destinado a aplacar a cólera de um espírito vingativo, mas sim de um rito que simboliza a predileção do Deus verdadeiro para com o seu povo e o início de uma nova aliança.
Celebrada pela primeira vez antes da saída do Egito, a páscoa judia ocorre também na primavera boreal, no 14º dia do mês de Abib, posteriormente chamado Nissan, o qual corresponde ao nosso atual março-abril. Ela deve ser celebrada em família, sacrificando ao entardecer um cordeiro ou um cabrito macho, de um ano, sem defeito, que tenha sido separado quatro dias antes. Sua carne, assada no fogo, será comida com pães ázimos e ervas amargas. Com o sangue da vítima se untarão os dois batentes e a travessa da porta de entrada das casas.
No relato do Êxodo aparece pela primeira vez na Sagrada Escritura o termo חַסֶּפ (pesaḥ): “É a Páscoa do Senhor” (Ex 12, 11). Embora seja muito discutida a etimologia desta palavra, a maioria dos exegetas a relaciona com a raiz hebraica psh, que significa “saltar”.2 Deve, portanto, ser interpretada num sentido salvífico: o Senhor “saltou” as casas habitadas pelos israelitas, livrando-os do extermínio dos primogênitos.
Interpretação alegórica no judaísmo helenístico
O vocábulo hebreu pesaḥ foi transliterado pelos Setenta para o grego, utilizando o termo πάσχα (pásja), de onde derivam a palavra latina pascha e seus equivalentes em outros idiomas: Pascua, Páscoa, Pâques, etc.
Entretanto, nos primeiros anos de nossa era, o filósofo judeu Filão de Alexandria, em seus comentários ao Êxodo, preferia usar os termos διάβασις (diábasis): “passagem” e διαβατήρια (diabatéria): “travessia”, em lugar de πάσχα, para traduzir o conceito hebreu pesaḥ. Ao mesmo tempo, porém, por uma semelhança meramente fonética, relacionava essa palavra com o termo grego πάσχειν (pásjein), cujo significado é “padecer”.
Assim, entre os alexandrinos de origem judaica, seguindo uma interpretação alegórica, a Páscoa começou a ser considerada como a passagem do estado de sofrimento para o de perfeição; abandonam-se as paixões e se adquire a sabedoria. A exegese de Filão mostra qual é sua intenção ao fazer uma interpretação alegórica da Páscoa: para comportar-se sabiamente, é necessário celebrá-la num sentido espiritual, com uma atitude moral e mística, deixando de lado o mal e adquirindo um estilo de vida melhor.3
Embora esse modo de interpretação resulte espúrio diante da identificação da verdadeira Páscoa com a Paixão e Morte de Jesus, essa dimensão espiritual suscitada pelo judaísmo helênico acabou por ser incorporada de algum modo no conceito cristão.
A antiga páscoa, prefigura da verdadeira
Como não podia deixar de ser, há nos Evangelhos várias referências à celebração da Páscoa, sobretudo nos relatos da Paixão de Cristo (Mt 26; Mc 14; Lc 22; Jo 13).
É interessante notar, entretanto, que São João não faz menção explícita à Ceia Pascal, provavelmente para realçar o fato de ser a morte do Senhor a autêntica Páscoa e Cristo o verdadeiro Cordeiro.4 Talvez com idêntica intenção, ele registra um testemunho do Precursor que não consta nos sinópticos: “Eis o Cordeiro de Deus” (Jo 1, 29).
É nesse mesmo sentido que o Cristianismo dos primeiros tempos interpretará a morte de Jesus. A Nova Aliança no sangue do Cordeiro de Deus, cuja eficácia atinge sua plenitude com a vinda do Espírito Santo em Pentecostes, se configura como realização perfeita daquilo que os antigos Padres denominavam “figura da Páscoa do Senhor”.
Isto se reflete, com notável beleza, na conhecida homilia de Melitão de Sardes, como se vê por um de seus trechos mais significativos: “Agora, pois, caríssimos, compreendei quão novo e quão antigo, quão eterno e temporal, quão perecedouro e imperecedouro é o mistério da Páscoa. Antigo segundo a Lei, mas novo segundo o Logos; temporal enquanto prefiguração, mas eterno enquanto graça; perecedouro pela imolação do cordeiro, mas imperecedouro pela vida do Senhor; mortal pela sepultura em terra, mas imortal pela ressurreição dentre os mortos. Com efeito, antiga é a Lei, mas novo o Logos; temporal é a figura, mas eterna a graça; perecedouro é o cordeiro, mas imperecedouro é o Senhor que foi imolado enquanto cordeiro e ressuscitou enquanto Deus”.5
Abertura para um mundo novo e transcendental
Meditando estas palavras pronunciadas na segunda metade do século II, os cristãos hodiernos sentem-se transportados para aquela época, mas sem deixar de olhar para o futuro. Porque, naquele tempo como hoje, a Páscoa de Jesus abre diante de nós um mundo novo e transcendental.
“O que é o advento de Cristo? A libertação da escravidão e a recusa da antiga sujeição, o começo da liberdade e a honra da adoção, a fonte da remissão dos pecados e a vida verdadeiramente imortal para todos”.6
Com seu antigo rito, os judeus recordavam a saída do Egito rumo à Terra Prometida, a passagem da escravidão para a liberdade. Segundo a interpretação alegórica no judaísmo helenístico, a Páscoa simbolizava uma emenda de vida. Para os cristãos, celebrar a Páscoa significa comemorar o oferecimento do Senhor para nos libertar da sujeição do pecado e dar-nos a oportunidade da vida eterna. Pois em Cristo a Páscoa deixa de ser um mero rito e abre nosso horizonte para a vida, que agora se torna plena na doação do Senhor. ◊
Notas
1 Cf. GARCÍA LÓPEZ, Félix. El Pentateuco. In: Introducción al estudio de la Biblia. Estella: Verbo Divino, 2003, v.III, p.165; FABRIS, Rinaldo, apud Nuevo Diccionario de Teología Bíblica. Madrid: Paulinas, 1990, p.1411.
2 Cf. ALONSO SCHÖKEL, Luis. Diccionario Bíblico hebreo-español. Madrid: Trotta, 1994, p.617; FABRIS, op. cit., ibidem; VAUX, Roland de. Instituciones del Antiguo Testamento. Barcelona: Herder, 1976, p.615.
3 Cf. RAMÍREZ ZULUAGA, Alberto. “…Él es la pascua de nuestra salvación”. Medellín: Universidad Pontificia Bolivariana, 2005, p.99-100.
4 Cf. JOSEP-ORIOL, Tuñí. Escritos joánicos y cartas católicas. In: Introducción al estudio de la Biblia. Estella: Verbo Divino, 1995, v.VIII, p.74.
5 SARDES, Melitão de, apud RAMÍREZ ZULUAGA, op. cit., p.106.
6 PSEUDO-HIPÓLITO. In Sanctam Pascha. Apud RAMÍREZ ZULUAGA, op. cit., p.163.