A questão apresentada pelo fariseu a Jesus sai de lábios trabalhados pela sabedoria humana para ouvidos plenos de Sabedoria divina. O doutor da Lei não pergunta para conhecer a verdade, mas sim para tentá-Lo. A resposta de Jesus é simples e ao mesmo tempo grandiosa: o amor a Deus!
Evangelho do XXX Domingo do Tempo Comum
“Mas os fariseus, tendo sabido que Jesus reduzira ao silêncio os saduceus, reuniram-se, e um deles, doutor da Lei, tentando-O, perguntou-Lhe: ‘Mestre, qual é o grande Mandamento da Lei?’ Jesus disse-lhe: ‘Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu espírito. Este é o máximo e o primeiro Mandamento. E o segundo é semelhante a este: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois Mandamentos dependem toda a Lei e os profetas’” (Mt 22, 34-40).
I – A virtude do amor
Os fundamentos do amor são muito mais profundos do que geralmente se imagina. Sendo ele um peso que arrasta aqueles que se amam — segundo afirma Santo Agostinho1 — produz um vigoroso desejo de presença e união, exteriorizado no abraço como melhor símbolo.
Ora, tudo quanto existe tem sua fonte na onipotência divina, inclusive o amor, cujo princípio é eterno e procede do Pai e do Filho. Ambos, ao Se amarem, originam essa tendência com tão extraordinária força que dela procede uma Terceira Pessoa. Assim como o amor produz em nós uma inclinação em relação ao ser amado, Pai e Filho, seres infinitamente amáveis, amam Seu próprio Ser Divino. Aí está a origem do Amor, enquanto Pessoa procedente da união entre Pai e Filho.
O Gênesis, ao narrar a grande obra da Criação, descreve como Deus contemplava a realização de cada dia e atribuía um valor respectivo à obra saída de Seu poder, pois o grau de perfeição de cada ser sempre é infundido por Seu amor, e na proporção deste.
A virtude mais importante para a salvação
Já no Evangelho, verifica-se quanto o Filho de Deus louva a fé do centurião (cf. Lc 7, 9) e da cananéia (cf. Mt 15, 28), premiando-a com milagres. Mais adiante, Cristo exalta a fé de Pedro, declarando proceder esta de uma revelação feita pelo Pai, e por isso proclama-o bem-aventurado (cf. Mt 16, 17).
Entretanto, Jesus nos fala também de uma virtude que é, por si só, capaz de perdoar um enorme número de pecados, chegando a defender publicamente uma pecadora contra aqueles que a acusavam: “Porque muito amou” (Lc 7, 47). Ora, não podemos nos esquecer de como o Senhor conhece o valor e o prêmio de cada ato de virtude. Devemos, portanto, face à salvação eterna, compreender como é mais importante amar do que praticar a fé.
Jesus, supremo modelo de amor
Para se atingir o mais alto grau de perfeição dessa virtude é indispensável admirá-la em Cristo Jesus e imitá-Lo.
O amor do Filho de Deus, é todo especial, por se desenvolver dentro de um prisma sobrenatural e ter por objeto o Ser Supremo. Há, portanto, uma notável diferença entre Ele e nós. No Verbo Encarnado, o amor divino e o humano, pela união hipostática, se reúnem numa só Pessoa. Quanto a nós, “o amor de Deus se derramou em nossos corações por virtude do Espírito Santo” (Rm 5, 5); ou seja, ele nos é dado. Para poder alcançá-lo, devemos pedi-lo.
Apesar desta diferença, Jesus é o nosso insuperável modelo, pois é impossível encontrar nEle qualquer sombra de interesse que não seja a glória do Pai. Assim também deve ser o nosso amor. E, se bem que em Jesus nunca tenha havido fé — pois, desde o primeiro instante de Sua existência, a alma dEle esteve na visão beatífica — em nós, essa virtude deve estar sempre acompanhada de um caloroso amor, o mais semelhante possível ao de Jesus.
A fé do cristão e a fé dos demônios
Comentando a primeira epístola de São João, assim se exprime Santo Agostinho: “‘Porque também os demônios crêem e tremem’, como diz a Escritura (Tg 2, 19). Que mais puderam os demônios crer do que dizer: ‘Sabemos quem és, o Filho de Deus’ (Mc 1, 24)? O que disseram os demônios, disse-o também Pedro. […] Assim, pois, Pedro diz: ‘Tu és Cristo, o Filho de Deus vivo’ (Mt 16, 16). Dizem também os demônios: ‘Sabemos que és o Filho de Deus e o Santo de Deus’. Pedro diz o mesmo que dizem os demônios. O mesmo quanto às palavras, muito diferente quanto ao espírito.
“E como consta que Pedro dizia isso por amor? Porque a fé do cristão está sempre acompanhada de amor, mas a fé do demônio não tem amor. De que modo é sem amor? Pedro dizia isso para abraçar Cristo, enquanto os demônios o diziam para Cristo afastar-Se deles. Porque antes de dizer ‘sabemos quem és, o Filho de Deus’, haviam dito: ‘Que tens Tu conosco, Jesus de Nazaré? Vieste perder-nos antes do tempo?’ (Mc 1, 24). Uma coisa, pois, é confessar Cristo com intenção de abraçá-Lo, e outra muito diferente é confessar Cristo com propósito de apartá-Lo de si.
“Logo, claro está que quando, nesta passagem, João diz: ‘Aquele que crê’, quer dizer uma fé peculiar, não aquela que muitos têm. Portanto, irmãos, que nenhum herege venha dizer-nos: ‘Nós também cremos’. Pois justamente por este motivo vos apresentei o exemplo dos demônios, a fim de que não vos alegreis com as palavras dos que crêem, mas examineis as obras dos que vivem”.2
Aquele que ama o Pai, ama o Filho
O grande Bispo de Hipona confere tanta importância a que à fé se una o amor, que não se intimida em continuar com seus comentários a esse respeito, levando suas afirmações a ponto de talvez chocar certas mentalidades mais relativistas dos dias de hoje:
“E todo aquele que ama quem gera, ama o que por ele é gerado (I Jo 5, 1). Juntou em seguida o amor com a fé, pois a fé sem amor é vã. Com amor, é a fé do cristão; sem amor, a fé do demônio. Ora, os que não crêem são piores do que os demônios, mais empedernidos que os próprios demônios. Há por aí alguém que não quer crer em Cristo: esse tal não imita nem sequer os demônios. Há outros, porém que não crêem em Cristo, mas O odeiam… São como os demônios, que temiam ser castigados e diziam: ‘Que tens Tu conosco, Jesus de Nazaré? Vieste perder-nos antes do tempo?’ (Mc 1, 24). Acrescenta a essa fé o amor, a fim de que se converta naquela fé da qual fala o Apóstolo: ‘A fé que opera pelo amor’ (Gl 5, 6).
“Se encontraste essa fé, encontraste um cristão, encontraste um cidadão de Jerusalém, encontraste um peregrino que suspira pelo caminho. Une-te a ele, seja ele teu companheiro, corre junto com ele, caso também tu sejas isso. Todo aquele que ama quem gerou, ama o que por Ele foi gerado. Quem gerou? O Pai. Quem foi gerado? O Filho. Portanto, o que diz João? Todo aquele que ama o Pai, ama o Filho”.3
No amor encontramos a tão procurada felicidade
Tão vastas são as considerações sobre a virtude do amor, que não haverá enciclopédia capaz de abarcar os tesouros emanados da oratória e da pluma dos Santos, Padres, Doutores, teólogos, exegetas, etc. a respeito da mesma.
É justamente em função do amor que devemos contemplar a temática levantada pela Liturgia deste XXX Domingo do Tempo Comum, em suas três leituras. Nessa virtude encontramos a tão procurada felicidade, como nos ensina São Tomás de Aquino: “Sendo amor a Deus, faz-nos desprezar as coisas terrenas e unir-nos a Ele. Por isso afasta de nós a dor e a tristeza, e dá-nos a alegria do divino: ‘o fruto do Espírito Santo é caridade, alegria, paz’ (Gl 5, 22)”.4 E com razão, pois Ele é o dulcis Hospes animæ, o Amigo por excelência que habita nas almas em estado de Graça.
II – O amor é a plenitude da Lei
Tramas dos fariseus contra Jesus
“Mas os fariseus, tendo sabido que Jesus reduzira ao silêncio os saduceus, reuniram-se, e um deles, doutor da Lei, tentando-O, perguntou-Lhe: ‘Mestre, qual é o grande Mandamento da Lei?’”.
O Evangelho de hoje se insere num encadeamento de fatos que se inicia com a pregação de Jesus por meio da parábola dos vinhateiros homicidas (Mt 21, 33-45) que levou os adversários de Cristo — na sua totalidade, segundo São Marcos (12, 13), ou somente os fariseus, de acordo com São Mateus — a se exacerbarem em cólera, pois interpretaram-na como dirigida a eles (Mt 21, 45) e, por essa razão, reuniram-se em conselho (Mt 22, 15). Nessa linha de acontecimentos, São Marcos é muito explícito ao afirmar: “Procuravam prendê-Lo, mas temiam o povo […] E deixando-O, retiraram-se. Enviaram-Lhe alguns fariseus e herodianos, para que O apanhassem em alguma palavra” (Mc 12, 12-13).
Na realidade, havia-se criado um verdadeiro impasse. De um lado, estava um grande número de pessoas simples do povo, arrebatadas pelas palavras e milagres de Jesus que, por isso, não O abandonavam; de outro, os chefes que desejavam silenciá-Lo em vida, ou, causando-Lhe a morte. Impossível se tornava para estes executarem tal crime enquanto Ele estivesse cercado pelas multidões. Também a noite não lhes facilitava a tarefa, pois o Divino Mestre abraçava o isolamento sem que ninguém soubesse para onde se retirava. Tornava-se, portanto, indispensável para os “filhos de Belial” manobrar a opinião pública a fim de separar os entusiastas dAquele que julgavam ser João Batista ressuscitado, ou talvez Elias, ou um grande Profeta.
A pergunta do doutor da Lei
Pertence a essa seqüência de investidas a famosa resposta de Jesus: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22, 21), como também a explicação sapiencial com a qual fizera calarem-se os saduceus (cf. Mt 22, 29-32), confundindo-os pela grosseira questão relacionada com a ressurreição dos mortos. É na esteira dessa polêmica que se acrescenta a pergunta do tal doutor da Lei.
Não é inteiramente claro se esse homem propõe essa questão ao Mestre por autêntica curiosidade ou por desejo de aparecer como sábio, ou até mesmo por fazer parte do complô contra Ele. Os três sinópticos relatam o episódio em sua integridade. São Mateus opta pela hipótese de ser ele cúmplice e malicioso. São Marcos o vê como um homem sincero, pelo fato de Nosso Senhor ter afirmado não estar ele longe do Reino do Céu (cf. Mc 12, 34). Não seria descabida, entretanto, a suposição de somarem-se todas essas interpretações, pois era possível tratar-se de um fariseu de boa fé, trabalhado pela maldade dos outros fariseus, a fim de lançá-lo sobre o Messias, para colocá-Lo em situação difícil.
Sobre o personagem em foco, o famoso Maldonado assim se exprime:
“Diz-nos Lucas que, quando Cristo acabou de refutar os saduceus, um escriba exclamou: ‘Mestre, falaste bem’. Acrescenta o Evangelista: ‘E já não se atreviam a fazer-Lhe pergunta alguma’ (Lc 20, 39-40); isso deve ser entendido com relação aos saduceus, pois precisamente por essa resposta, como indica Mateus, os escribas e fariseus tomaram ocasião de tentá-Lo outra vez, para mostrarem-se mais sábios que os saduceus. Aquele que aqui Mateus chama de ‘doutor da Lei’, Marcos diz que era ‘escriba’ (cf. Mc 12, 28); por onde se vê que, embora os escribas tivessem diversos ofícios, em algumas ocasiões podia-se ser escriba e fariseu ao mesmo tempo. Pois esse doutor da Lei era fariseu, segundo se vê pelo versículo 34”.5
Já o Arcebispo de Toledo, Cardeal Isidro Gomá y Tomás, assim avaliou esta passagem: “Os fariseus se mancomunaram quando ouviram dizer que Ele havia reduzido ao silêncio os saduceus, fechando-lhes o caminho a qualquer réplica, não sem uma íntima satisfação de sua parte, pois tinham os saduceus como seus mais formidáveis adversários doutrinários. A inveja e a malevolência são mães da audácia despudorada; a derrota dos adversários deveria tê-los tornado mais cautos. E um deles — doutor da Lei, do partido dos fariseus, que tinha ouvido o debate e visto como Nosso Senhor respondera bem — foi escolhido para propor a Jesus a questão tramada por eles naquele conventículo. Aproximou-se e Lhe fez a pergunta, tentando-O, com má intenção, embora a resposta de Jesus o tenha impressionado, elogiando Jesus e, por sua vez, chegando a merecer o elogio do Senhor”.6
Lei humana e Lei divina
Conforme nos ensina o Doutor Angélico, sabemos ser a lei, “uma ordenação da razão para o bem comum, promulgada por aquele que tem o cuidado da comunidade”.7 Evidentemente, esta é uma definição que tem em vista a natureza humana no seu relacionamento social. Entretanto — continua o próprio São Tomás — “além da lei natural e da lei humana, foi necessário, para direção da vida humana, ter a Lei divina”.8 E entre quatro claríssimos argumentos a favor de sua tese, o Doutor Angélico demonstra essa necessidade em função de um fim ao qual se ordena o homem, que é superior à faculdade humana, ou seja, sua bem-aventurança eterna.
Afirma ainda: “Porque, em razão da incerteza do juízo humano, principalmente sobre as coisas contingentes e particulares, aconteceu haver a respeito dos diversos atos humanos juízos diversos, dos quais também procedem leis diversas e contrárias. Para que o homem, pois, sem qualquer dúvida possa conhecer o que lhe cabe agir e o que evitar, foi necessário que, nos atos próprios, ele fosse dirigido por lei divinamente dada, a respeito da qual consta que não pode errar”.9
Porém, não devemos nos esquecer que o Céu nos torna iluminado o caminho a seguir, mas o auxílio para abraçá-lo nos vem da Graça: “O princípio que move exteriormente ao bem é Deus, que nos instrui pela Lei e ajuda pela Graça”.10 Hoje, pela força do Espírito Santo, temos muito explícita essa doutrina, mas assim não se apresentava para os doutores da Lei e nem mesmo para os fariseus. Os rabinos viviam emaranhados em complicadas casuísticas de 613 preceitos. Destes, 365 (à imagem dos dias do ano) eram negativos, e 248 (à semelhança numérica dos ossos do corpo humano) eram positivos. Dos primeiros, alguns eram tão graves que só podiam ser reparados com a pena capital, e os outros, por uma penitência proporcionada. A miríade de outras obrigações menores proporcionava-lhes discussões intermináveis em suas escolas. Por essas razões, não era fácil formular com toda segurança uma resposta categórica e clara a essas questões, sobretudo se fosse para não colidir com opiniões subjetivas destes ou daqueles rabinos.
Sabedoria de Cristo e insuficiência dos que O invejavam
“Jesus disse-lhe: ‘Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu espírito. Este é o máximo e o primeiro Mandamento’”.
A pergunta que foi dirigida a Jesus sai de lábios talvez trabalhados pela sabedoria humana, para ouvidos plenos de Sabedoria divina. O doutor da Lei não pergunta para conhecer a verdade, mas sim para tentar a Deus. O Evangelho é pervadido dessa polêmica entre a Sabedoria de Cristo e a pobre insuficiência dos que O invejavam. Num determinado momento, será um problema judaico de teor religioso-moral, o da adúltera apanhada em flagrante (Jo 8, 3-11); em outra ocasião virão os saduceus com o episódio dos sete irmãos que se casaram sucessivamente com a viúva do primeiro deles (Mt 22, 23-32); ou então o famoso dilema do pagamento do tributo (Mt 22, 15-22); e assim por diante.
Está diante deles, porém, um Homem-Deus que penetra o mais fundo dos corações, como o pôde comprovar Natanael que chegou a concluir ser Jesus “o Filho de Deus, o Rei de Israel” (Jo 1, 45-50). Na mesma linha, a samaritana, tomada de surpresa pelo conhecimento minucioso de sua vida, revelado por Jesus, não hesitou em considerá-Lo um grande Profeta. Ou então, Cristo deixa transparecer como sabia qual era o pensamento dos Apóstolos quando ardia em seus corações o desejo de serem os maiores no Reino dEle (Lc 9, 46-48). E ainda muito mais.
No preceito da caridade estão concernidas as demais virtudes
Por isso, a resposta de Jesus é simples e ao mesmo tempo grandiosa: o amor a Deus! São Tomás de Aquino nos ensina que o fim da vida espiritual é a união com Deus, a qual se torna efetiva pela caridade, ou seja, pelo amor a Ele. Assim, toda vida espiritual deve estar submetida a este último fim. Daí afirmar o Apóstolo: “O fim do preceito é a caridade que procede de um coração puro, de uma boa consciência e de uma fé sincera” (I Tim 1, 5).
Em vista disso, todas as virtudes se conjugam para purificar a caridade dos males e das desordens oriundas das más inclinações. Ademais, ela auxilia cada um a proceder com boa consciência e, dessa forma, agir com fé reta e sincera, no relacionamento com Deus. Portanto, no preceito da caridade encontram-se concernidas as demais virtudes.11
“Amarás o Senhor teu Deus com todas as tuas forças”
Sobre esta passagem, comenta Maldonado:
“Marcos diz primeiro: ‘Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor’ (12, 29). […] Os dois mandamentos estão na mesma passagem, em Moisés. O primeiro é que creiamos num só Deus; o segundo, que O amemos de todo o coração, pois é claro que quem cresce em muitos dividiria o amor e não amaria nenhum com todo o seu coração, porque ninguém pode amar a dois senhores (cf. Mt 6, 24).
“‘De todo o teu coração e com toda a tua alma’. Alguns intérpretes fazem aqui distinções por demais sutis, a meu juízo. Parece-me que isso significa que amemos a Deus o quanto possamos e empreguemos em seu serviço as nossas posses. Assim o ensina Santo Agostinho: ‘Ao dizer com todo o coração, com toda a alma, com toda a inteligência, não deixa parte alguma do homem livre e desocupada para amar outra coisa segundo o seu capricho: qualquer objeto que se nos apresente digno de amor deve ser arrastado pela corrente de nosso único afeto’.
“Finalmente, o que em diversas passagens ou com diferentes palavras se diz no Deuteronômio (6, 5), aqui está resumido numa só, consignada por Lucas: ‘Amarás o Senhor teu Deus com todas as tuas forças’ (Lc 10, 27)”.12
Alma e espírito
Pareceria, à primeira vista, haver uma certa redundância didática na repetição: “de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu espírito”, contida no versículo 37. Entretanto, explicam-nos certos autores a diferença existente entre alma e espírito e, assim, podemos compreender a razão mais profunda da afirmação de Nosso Senhor.
“Melhor se deve entender por ‘alma’ a parte inferior da alma, a que olha a vida natural. E por ‘espírito’ a parte superior, a que considera as coisas espirituais e divinas. A alma indica, pois, a natureza da alma. O espírito, a mente imbuída da graça e o impulso comunicado à mente pelo Espírito Santo.
“Portanto, a alma é natural e considera as coisas naturais. O espírito, as coisas sobrenaturais e celestes. Assim, pois, o espírito significa: em primeiro lugar, a mente; em segundo lugar, o veemente impulso da mente e o fervor do gozo e do júbilo; em terceiro lugar, o fato de que esse impulso da mente é comunicado e infundido pelo próprio Espírito Santo”.13
Portanto, a “alma”, subjetivamente falando — em si mesma — é una e simples. O que varia é o objeto sobre o qual ela atuará. Ora, o Divino Mestre nos recomenda que até na própria vida natural tudo façamos em função de Deus que nos criou.
Quanto ao “espírito”, seguindo a linguagem da Escritura, é movimento do ânimo, impulso, etc. É nesse sentido que poderá haver um bom ou um mau espírito: “Não sabeis de que espírito sois animados” (Lc 9, 55), disse Jesus aos Apóstolos irmãos, Tiago e João, que desejavam, por pura vingança, mandar descer fogo do céu para consumir as cidades que lhes negavam hospedagem. Neles, não havia um espírito sobrenatural, mas puramente humano, de cólera má e vingança, contrário ao espírito dAquele que viera para salvar e não para perder.
O homem há de viver somente para amar a Deus
A expressão “de todo o teu coração” encontra belíssima explicação em São Gregório Magno: “O que a morte faz nos sentidos do corpo, o amor faz nas concupiscências da alma. Alguns amam de tal maneira a Deus, que desprezam tudo quanto é sensível; e enquanto em sua intenção miram o eterno, fazem-se insensíveis para tudo quanto é temporal. Pois nesses, o amor é forte como a morte; porque, assim como a morte mata todos os sentidos exteriores do corpo e o priva de sua própria e natural apetência, assim também o amor em tais pessoas as força a menosprezar todo desejo terreno, tendo a alma ocupada em outra coisa à qual atende. A esses, mortos e vivos, dizia o Apóstolo: ‘Estais mortos e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus’ (Col 3, 3). […] Pois, morto o homem para si mesmo, há de viver somente para amar a Deus, e há de amá-Lo com todo o coração e alma… Em todas as suas potências estará o seu Amado, sem fechar-Lhe porta alguma… Quem ama a Deus não deve recebê-Lo apenas num aposento de sua alma, mas também em sua memória, em seu entendimento e em sua vontade. Em todos há de hospedar o seu Criador e Senhor do mundo. Não empregará em seu serviço somente um afeto da vontade, mas todos os seus afetos e sentidos. Porque — como dissemos — se alguém, tendo cinco ou seis criados, hospedasse um rei, não mandaria a um só criado servi-lo, mas quereria que todos se desdobrassem em seu serviço”.14
Os dois principais Mandamentos
“Ouve, ó Israel! O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor. Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças” (Dt 6, 4-5). Esta era a determinação de Deus, transmitida ao Povo Eleito pela voz e pluma de Moisés. Os doutores da Lei bem a conheciam, ou seja, era uma obrigação religiosa que esse amor a Deus penetrasse toda atividade consciente daquele povo e, assim, fosse tomado como “o máximo e primeiro Mandamento”, por sua alta dignidade e por pervadir toda a atividade do homem, sobretudo no cumprimento de seus deveres e obrigações para com Deus.
“E o segundo é semelhante a este: Amarás o teu próximo como a ti mesmo”.
Ou seja, devemos ter por nosso próximo a mesma benevolência, estima e amor que esperamos os outros tenham por nós, e um respeito proporcional ao desígnio de Deus para com cada um. Falar ao próximo, ou sobre ele, como desejamos que o façam conosco; esconder e escusar suas faltas; sofrer suas imperfeições, debilidades e defeitos; louvar tudo quanto nele deve ser elogiado; defender seus interesses e servi-lo com afeto, exatamente como ansiamos que procedam conosco, e sempre por amor a Deus: eis a verdadeira prática da inocência e da santidade. E por isso mesmo:
“Destes dois Mandamentos dependem toda a Lei e os profetas”.
A Revelação — entre outros objetivos — tem em vista colocar à disposição dos homens um claro compêndio de doutrina e comportamento de ordem moral, através da Lei e da sabedoria manifestada por Deus aos seus profetas. Ora, o fundamento e a substância de todo esse tesouro estão contidos nesses dois preceitos, tal qual demonstraria mais tarde São Paulo, afirmando que a finalidade da Lei é o amor: “o fim do preceito é a caridade” (I Tim 1, 5). Mais ainda, pode ser esse amor, sempre segundo o Apóstolo, “o pleno cumprimento da Lei” (Rm 13, 10).
III – Maria, insuperável exemplo de amor
Maria Santíssima é para toda a humanidade — e até mesmo para os próprios Anjos — um insuperável exemplo de perfeição do amor a Deus e ao próximo, que nos é recomendado por Seu Divino Filho, no Evangelho de hoje. Toda a sua existência foi penetrada de puríssimo e chamejante amor. Santo Alberto Magno chega a afirmar que Ela, mais do que qualquer outra criatura, viveu sempre morta para o mundo e para tudo o que era inferior a Deus. Sua vida sempre esteve oculta em Deus, habitando em seu Santuário e, portanto, muitíssimo mais que São Paulo, poderia Ela ter dito, desde o primeiro instante de Sua criação: “Eu vivo, mas já não sou eu, é Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20).
Que Nossa Senhora do Divino Amor obtenha a plenitude da prática desses dois preceitos para todos aqueles e aquelas que contemplarem o Evangelho deste XXX Domingo do Tempo Comum. ◊
Notas