Depois de ser perseguida e calcada aos pés, a Igreja sai das catacumbas com uma organização perfeita e acabada. Como isso foi possível?
Poucos há que não tenham ouvido falar das catacumbas de Roma, e muitos já as percorreram. Trilhadas diariamente por milhares de visitantes, essas galerias subterrâneas exercem misteriosa atração e produzem nos peregrinos uma impressão profunda e inesquecível.
Em meio à penumbra desses estreitos labirintos, escavados alguns com mais de 20 m de profundidade, o observador atento é surpreendido a cada passo pelas cavidades retangulares abertas ao longo das paredes, sobre as quais, por vezes, encontram-se inscrições, nomes ou desenhos: são as sepulturas dos cristãos, muitos deles mártires, dando eloquente testemunho de um passado heroico, selado com o sangue daqueles que nos antecederam na Fé.
Em diversos pontos os corredores dilatam-se, dando lugar a exíguos aposentos, decorados com rudimentares afrescos, e em cujo centro vê-se um altar. Reina no ambiente um imponderável de piedade e recolhimento, cortado apenas pela voz do guia: “Esta sala servia de capela e sobre este altar os Papas celebravam a Missa!”.
Refúgio seguro para celebrar os sagrados mistérios
É-nos fácil imaginar as sombras furtivas daqueles fervorosos cristãos se esgueirando, ao cair da noite, pela entrada da catacumba, constituída apenas por um orifício no chão. E enquanto na superfície da capital dos césares a corrompida sociedade romana se entregava a seus libertinos prazeres, debaixo dos pés dos tiranos, pequenas comunidades se reuniam para ouvir a Palavra de Deus e participar da liturgia eucarística…
Normalmente as residências dos nobres convertidos serviam de lugar de encontro dos primitivos cristãos; porém, quando a perseguição se tornava mais violenta e a polícia imperial mais assanhada, viam-se eles forçados a procurar refúgio seguro para a realização de suas santas cerimônias: encontraram-no, sem dúvida, nas catacumbas.
Tais abrigos eram cedidos à Igreja pela generosidade dos fiéis mais abastados que, proprietários de vastas necrópoles da gen à qual pertenciam, colocavam-nas à disposição para nelas se celebrarem os sagrados mistérios e dar digna sepultura aos corpos daqueles que caíam sob os golpes da crueldade pagã.
Assim, no primeiro século, Flávia Domitila mandou abrir para os integrantes de sua família que haviam abraçado a Fé uma câmara mortuária conhecida como o Hipogeu dos Flávios, e doou, depois, longas galerias funerárias a seus ex-escravos, tornados seus irmãos na ordem da graça. No mesmo século, a dama Comodila ofereceu uma de suas quintas, situada na Via Ostiense, para acolher os restos dos mártires, entre os quais repousou durante muito tempo o corpo do Apóstolo Paulo. Pouco mais tarde, no século II, Pretextato, da estirpe dos Cecílios, cedeu um terreno onde existia uma antiga sepultura, a fim de servir de cemitério cristão.
Uma realidade nova, de carismático poder
Na Cidade Eterna o núcleo dos fiéis formava uma minoria que, entretanto, não fazia senão crescer ao longo dos anos. A invencível Roma, sob cujo despótico poderio haviam-se curvado todos os povos circundantes, via surgir em seu seio uma realidade nova, dotada de carismático poder, que atraía pessoas de todas as classes, idades e condições: crianças inocentes, frágeis virgens, míseros escravos, nobres matronas, valentes soldados, magistrados e intelectuais de fama… Todos eles, movidos pela mesma fé, não temiam enfrentar o paganismo dominante e chegavam a desafiar a idolatria ao pé de seus repugnantes altares.
Obrigados a viver no meio daquela sociedade permeada de injustiça e imoralidade, eles passavam por situações difíceis nas quais eram alvo — se não de denúncia formal às autoridades, com o consequente martírio — do desprezo, das caçoadas e das calúnias até mesmo de amigos e parentes. Muitas profissões, enumeradas por Santo Hipólito1 em uma de suas obras, eram consideradas então incompatíveis com os princípios assumidos no Batismo: escultor, pintor, ator de teatro, professor, gladiador, guardião de ídolos, entre outras. Recusar-se a exercê-las equivalia a expor-se ao perigo…
Com frequência o risco se apresentava na intimidade do lar. Por exemplo, algum membro da família manifestava sua adesão ao Cristianismo e, por isso, era deserdado ou mesmo traído pelos seus. Portanto, até nas circunstâncias mais comuns da vida era cobrada dos cristãos uma árdua fidelidade.
Varões de profunda virtude e sabedoria
Embora perseguida de todos os modos pelos inimigos da Fé, e devendo muitas vezes ocultar-se na escuridão das catacumbas, a Igreja dos primeiros tempos florescia e produzia esplendorosos frutos nos costumes, nas instituições e na arte. Este ponto, que talvez não tenha sido ainda suficientemente frisado pelos estudiosos e historiadores, parece, entretanto, não merecer menor atenção do que a gesta de heroísmo dos mártires.
Inspirados pelo Espírito Santo, os dignos pastores que governaram a Igreja de Roma — já então considerada a mãe de todas as igrejas —fortaleceram a disciplina eclesiástica e contribuíram eficazmente para enriquecer a liturgia. Eram eles varões de profunda virtude e sabedoria, bem como de pulso forte, capazes de conservar a serenidade necessária para, em meio à tormenta que rugia no exterior, assentar as pedras do formoso edifício espiritual fundado por Jesus Cristo no alto da Cruz.
Assim, numa remota antecipação das futuras paróquias, Santo Evaristo (c. 96-c. 105), quarto sucessor de São Pedro, organizou as comunidades da cidade em mais de vinte igrejas domésticas, confiando aos presbíteros a assistência sacramental delas. De outro lado, investiu sete diáconos na função de velar junto ao Bispo pela conservação da sã doutrina durante a pregação, dando origem ao que mais tarde viria a ser o Colégio Cardinalício.2
Santo Alexandre (c. 105-c. 115) introduziu na Missa a menção à Paixão de Cristo, com as palavras “Qui pridie quam pateretur” que antecedem a Consagração. Deve-se a ele o costume de aspergir com água benta as residências dos cristãos.3 Numa exortação que lhe é atribuída, assim se lê: “Nós abençoamos água misturada com sal, a fim de que, pela aspersão desta água, todos sejam santificados e purificados: o que nós ordenamos a todos os sacerdotes que façam igualmente. […] Com efeito, se o contato com as vestes do Salvador bastava, como disso não podemos duvidar, para curar as doenças, que virtude bem maior não tiram, de suas próprias palavras, os elementos, para curar o corpo e a alma da pobre humanidade!”.4
São Sisto (c. 115-c. 128), seu sucessor, estabeleceu certas regras canônicas como, por exemplo, que os vasos sagrados só podiam ser tocados pelos clérigos. Deve-se a ele também a instituição do cântico do Sanctus no início do Cânon da Missa.5
São Telésforo (c. 128-c. 136), o seguinte a ocupar o Sólio Pontifício, aliava à sua vasta cultura uma piedade terna e profunda. Com efeito, o Liber Pontificalis narra que antes de ascender ao Papado fora anacoreta na Grécia ou na Palestina. Sua especial devoção ao mistério da Encarnação do Verbo levou-o a instituir a celebração da Missa na noite de Natal, e a ordenar que nessa ocasião se cantasse o hino Gloria in excelsis Deo. Ele também institucionalizou em nível litúrgico o costume herdado dos Apóstolos de observar jejum e abstinência durante o período da Quaresma.6
Santo Higino (136-140) empregou os quatro anos de seu curto pontificado em restaurar alguns pontos da disciplina que haviam caído em relaxamento ou desuso. Reorganizou as funções na Hierarquia Eclesiástica, instituiu as ordens menores e estabeleceu a ordem de precedência entre os membros do clero.7
São Pio I (141-154) preocupou-se em combater a negligência na celebração do Santo Sacrifício, decretando “rigorosas penas para os sacerdotes que tratassem com qualquer negligência o Corpo adorável ou o Sangue precioso de Jesus Cristo”.8 Seu zelo apostólico levou-o a escrever várias cartas de exortação aos fiéis, das quais duas ainda se conservam. Foi ele, finalmente, quem marcou o dia em que devia ser celebrada a Páscoa: no primeiro domingo após o plenilúnio de março.
Como seus antecessores, Santo Aniceto (154-166) e São Sotero (166-174) contribuíram na obra de edificação da Igreja, quer acertando pontos da liturgia ou dos costumes, quer com a humildade, mansidão e caridade de que deram mostras. Sobre o segundo, merece especial menção o elogio que lhe dedicou Dionísio, então Bispo de Corinto, em carta dirigida aos fiéis de Roma: “Desde o princípio tendes o costume de fazer de múltiplas maneiras o bem a todos os irmãos e de enviar provisões a muitas igrejas; […] costume que vosso bem-aventurado Bispo Sotero não só manteve, mas inclusive incrementou, subministrando, de um lado, abundantes socorros para enviar aos santos, e, de outro, como pai que ama ternamente aos seus, consolando com acertadas palavras os irmãos que dele se aproximam”.9
Uma organização perfeita e acabada
Por isso, comenta o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, quando em 313 o imperador Constantino proclamou o Edito de Milão, fazendo cessar a perseguição aos cristãos, “a Igreja perseguida, pisada, calcada aos pés, deitando sangue por todos os poros, sai das catacumbas e passa a viver em liberdade, já com uma organização perfeita e acabada: ela tem uma hierarquia, tem um direito próprio, tem todas as estruturas feitas, tem uma liturgia definida e tem um depósito de doutrina estabelecido”.10
A Igreja Católica se afirma, assim, como a primeira entidade de caráter universal até então existente, porque todas as religiões e todas as organizações se circunscreviam às fronteiras do próprio estado.
Pastores e vigias da Casa de Deus
Contudo, além das violentas perseguições por parte dos imperadores, esses sábios pastores enfrentaram outro inimigo, talvez ainda mais nocivo para sua grei, justamente por ter surgido no próprio seio da Igreja: a heresia. Já no período apostólico este terrível adversário começara a se infiltrar sorrateiramente, por meio de falsas doutrinas ou desvios ideológicos, como as da gnose e do nicolaísmo, combatidas, sobretudo, por São João Evangelista (cf. I Jo 2, 18-20; 4, 1-6; Ap 2, 6.15).
O verdadeiro pai dos hereges foi Simão, o Mago, cuja ação reuniu as doutrinas mais mirabolantes às teorias gnósticas, arrastando por seus sortilégios muitos sequazes que se denominavam simonianos, levando-os a adorá-lo como um semideus. Este pioneiro do gnosticismo encontrou no próprio Apóstolo São Pedro seu principal contendor, segundo relatam os Atos dos Apóstolos (cf. At 8, 9-13.18-24).
A seguir levantou-se Cerinto, que começou a espalhar entre os fiéis uma ideologia dualista, inspirada na filosofia grega, segundo a qual Jesus, homem verdadeiro, juntara-se, no instante do Batismo, ao mediador entre Deus e o mundo, Cristo, que mais tarde o abandonou no momento da Paixão. Pouco tempo depois, Saturnino e Cerdão, na Síria, levaram mais longe as teorias gnósticas, pretendendo que Cristo era um éon divino vindo para remir os homens, ensinando-lhes o verdadeiro conhecimento e a abstenção do matrimônio e da geração de filhos.
Mais perigosos ainda foram os gnósticos provenientes de Alexandria: Basílides e Valentim. Ambos, de modos um tanto diversos, baseavam-se no panteísmo, na existência do princípio do bem e do mal, e defendiam a tese de que Jesus era um espírito que viera em forma aparente para restabelecer a ordem no mundo dos éons e livrá-los do poder do mal. Enquanto os basilidianos realizavam sessões de magia e costumavam usar amuletos, os valentinianos diziam-se homens espirituais, sem necessidade de redenção e, portanto, autorizados a levar uma conduta imoral.
Ainda outros grupos de menor importância pregavam doutrinas semelhantes e entregavam-se a verdadeiros escândalos morais, sob pretexto de gozarem da liberdade dos perfeitos. Estes foram os ofitas, os naasenos, os setitas, os peratas, os cainitas e os discípulos de Carpócrates.
Posteriormente chegou a Roma um cristão oriundo das regiões do Ponto, chamado Marcião, trazendo uma doutrina “reformadora”. Ele julgava que a Igreja se desviara do verdadeiro espírito de Cristo e criara sua própria igreja, com bispos e sacerdotes, revoltando-se contra a legítima Hierarquia. Sua ideologia centrava-se na oposição do Deus justiceiro do Antigo Testamento, a Cristo, o Deus do amor, do Novo Testamento, que viera para ensinar aos homens a verdadeira doutrina, mas fora crucificado por ordem do Deus colérico.
Um novo inimigo, que haveria de fazer grandes estragos e provocar muitas divisões entre os fiéis, surgiu de forma inesperada na pessoa do neófito Montano. Começou este homem a pregar um rigorismo exagerado, pelo qual obrigava seus seguidores a abster-se do uso do matrimônio, a observar o mais austero jejum e a não só desejar com ardor o martírio, mas expor-se voluntariamente a ele. Proclamava, ademais, não haver perdão para certos pecados mais graves como a apostasia, o adultério e o homicídio.
A tantos heresiarcas que representavam uma ameaça para a ortodoxia e a unidade da jovem Igreja dos séculos I e II, souberam se contrapor os Bispos de Roma, como verdadeiros vigias da Casa de Deus, rebatendo vigorosamente aquelas infindas aberrações doutrinárias e expulsando da comunidade os recalcitrantes.
Cerinto, por exemplo, foi banido da Igreja pelos próprios Apóstolos; Santo Higino excomungou Cerdão, que supostamente abjurara seus erros, mas continuava a ensiná-los em segredo; e Santo Aniceto condenou Montano.
“A primeira medida foi excluir da comunidade dos fiéis os chefes gnósticos e seus principais seguidores. […] A segunda tinha um caráter positivo: tomaram-se disposições radicais para a instrução sólida e completa. […] O terceiro meio consistiu em fazer o elenco definitivo dos livros inspirados por Deus, que começou a ser chamado cânon da Sagrada Escritura”.11
“Eu venci o mundo!”
Ante o espetáculo desses varões que — mesmo sob o risco de cair de um momento para outro nas mãos dos carrascos ou nas garras das feras — continuavam estruturando a doutrina e organizando a vida interna da Igreja, torna-se patente o quanto, para além dos elementos humanos, a ação do Espírito Santo se fazia sentir forte, vigorosa, e dir-se-ia quase avassaladora, sobre a Igreja nascente, soprando nas almas dos fiéis, e sobretudo de seus guias, a inabalável confiança no triunfo final.
Aquele mesmo Consolador que inspirara São Paulo a exclamar: “Graças sejam dadas a Deus, que nos concede sempre triunfar em Cristo!” (II Cor 2, 14), e dirigira a pluma do Discípulo Amado para escrever: “Esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé” (I Jo 5, 4), levava os primeiros cristãos a atravessarem impertérritos todos os apuros e borrascas que sobre eles se abatessem, certos de serem membros de um Corpo Místico cuja Cabeça, pouco antes de ser coroada de espinhos, havia declarado diante da autoridade pública: “Tu o dizes: Eu sou Rei!” (Jo 18, 37).
Para eles — e também para nós hoje, dois mil anos depois, bem como para todos aqueles que ainda haverão de acreditar em Jesus pela palavra dos discípulos — a mensagem era clara, contundente, irrevogável: “No mundo haveis de ter aflições. Coragem! Eu venci o mundo” (Jo 16, 33). ◊
Notas