Quando analisamos cada lance da Paixão, seja física ou espiritual, notamos não ter sido poupado nada de Nosso Senhor. Ele entrou no abismo mais profundo da dor com passo de herói, assumiu todos os padecimentos possíveis e Se apresentou resplandecente de sofrimento ante a justiça do Padre Eterno. E assim salvou o gênero humano.
É interessante examinar, ponto por ponto, o anoitecer, o “Ofício de Trevas” dentro de Nosso Senhor, considerado no plano da sua humanidade santíssima.
O clamor das multidões, primeiro passo rumo ao patíbulo
Jesus teve no primeiro ano de sua vida pública a alegria, o bom êxito, a correspondência de amor das multidões do povo eleito afluindo a Ele. Entretanto, sabia que isso tudo – aqui entra a amargura – daria um número pequeno de conversões e excitaria os fariseus a determinarem a sua morte.
Se Nosso Senhor tivesse muito menos adeptos, poderia não ter sido morto. Mataram-No por causa do sucesso desse primeiro ano. E nas multidões que O adoravam, Ele via o êxito como o primeiro passo do degrau que ia levá-Lo ao alto do patíbulo. Os Apóstolos e as outras pessoas não percebiam; Ele sim.
Mais ainda. O Redentor via esse, aquele, aquele outro na plenitude momentânea da vocação, da alegria, cuja beleza de alma O encantava. Entretanto, Ele sabia que um deles ia apedrejá-Lo, outro havia de abandoná-Lo, outro ainda caluniá-Lo, dar risada ao denegri-Lo, insinuando ser verdadeira aquela calúnia. Nosso Senhor tinha tudo isso presente e, portanto, carregava a enormidade desses tormentos.
Ao longo da vida pública Nosso Senhor já sofria, no íntimo de seu Coração, com a previsão de tudo o que haveria de padecer na Paixão
Tenho a impressão de que as calúnias só começaram a se espalhar depois de um certo trabalho do Sinédrio junto aos que O seguiam, entibiando alguns e pondo outros contra Ele, de maneira àquela multidão se apresentar frouxa e desunida. E Jesus viu o crepúsculo da frouxidão baixando, à medida que aumentava o número dos milagres.
A ressurreição de Lázaro: auge das maravilhas e sentença de morte
No segundo ano, quando Nosso Senhor tinha acumulado o castelo das suas maravilhas, Ele entra numa espécie de duelo com a frouxidão, porque a multidão procura escapar das suas mãos. Ele busca retê-la fazendo maravilhas maiores. E fica diante dessa situação humanamente insolúvel: quanto mais Ele faz maravilhas, tanto mais a multidão se torna insensível e indiferente.
Alguém do povo poderia comentar: “Ele ressuscitou um morto; essa foi a última que fez?” E riria como quem diz: “Estou farto disso, desejo voltar para minha vidinha. Maravilhas, afastai-vos de mim; quero a banalidade!” E quando Jesus levou ao auge seus milagres, na ressurreição de Lázaro, Ele teve conhecimento da sentença de morte, soube que resolveram matá-Lo. Ele conhecia tudo e, quando foi para a casa de Lázaro festejar a ressurreição, de fato comemorava a morte, porque a ressurreição de Lázaro foi o começo da morte d’Ele.
Não sei se notam o quanto tudo isso é pungente do ponto de vista da tristeza. Para usar uma expressão errada, mas que significa um pouco o que eu quero dizer, envenenava, introduzia o sabor amargo nas mais legítimas e esplendorosas alegrias.
Imaginem o ambiente da casa de Lázaro, na qual Ele gostava de estar, logo após sua ressurreição. Os Apóstolos, a família de Lázaro, pessoas do lugar que vinham, O adoravam. Nosso Senhor sabia que a maior parte daquelas manifestações todas ia dar em nada. E Ele, para o bem daquelas almas, comia o festim e Se alegrava. Entretanto, no íntimo do seu Coração, Ele chorava porque compreendia o que estava acontecendo. Só esse episódio daria um drama do outro mundo.
Ele devia sentir também a reação dos que lá estavam: já não era a mesma de outrora, com exceção de Nossa Senhora e de algumas Santas Mulheres.
Os acontecimentos se sucederam e Jesus alcançou um triunfo no Domingo de Ramos; contudo, percebia o bafo desse triunfo. Quer dizer, o povinho queria aclamá-Lo; porém, não em termos de romper com os fariseus. Esperava que estes O entronizassem e, se não o fizessem, o povinho seguiria a eles. E prepararam para Nosso Senhor aquela comemoração – a festa da ingenuidade, não do inocente, mas do mole, tão diferente da do inocente. E Ele, passando no meio daqueles hosanas, sabia perfeitamente o que vinha depois.
Losango da dor
Em todos esses passos – é preciso dizer desde já – impressiona notar Nosso Senhor, por desígnio do Padre Eterno, sofrendo aquela dor e não consentindo apenas que o sofrimento caísse sobre Si, mas indo de encontro a ele. Jesus Se afundava no vértice baixo, mais terrível, do losango da dor.
Nosso Senhor Jesus Cristo não só consentiu que o sofrimento caísse sobre Si, mas foi de encontro à dor com a cabeça erguida
A vida humana pode ser comparada a um losango com duas pontas: a de baixo, a dor; a do alto, o gáudio. Nosso Senhor desceu ao mais fundo do losango da dor, em cada um desses casos concretos, com uma probidade, uma integridade e uma obediência que lembram o “Ecce ancilla Domini, fiat mihi secundum verbum tuum” (Lc 1, 38).1 Ele foi até o fim, de cabeça alta, na atitude que nós O vemos no Santo Sudário. Assim Jesus caminhou.
Isso se torna mais pungente na Quinta-Feira Santa, em que se festeja o ápice da obra d’Ele. O Divino Salvador institui a Missa, a Eucaristia, o Sacramento da Penitência, e com isso o edifício da Igreja fica, em certo sentido da palavra, concluído.
O povo judaico estava todo em festa, comemorando a passagem do Mar Vermelho, a Páscoa. E Nosso Senhor, nesse ambiente de gáudio geral, via com certeza os Apóstolos participarem daquela alegria. Ele faz a festa e completa a sua obra sem desfalecer. Podemos conjecturar o misto de sua alegria e tristeza, pois sabia que dali a algumas horas a grande tragédia deveria começar.
Imaginemos a tristeza do Redentor lavando os pés de Judas, São Pedro, São João, pensando no que fariam em seguida. Depois distribuindo a Eucaristia e passando a ter Presença Real dentro de cada um deles, tão pífios, tão abaixo da tarefa… São Pedro, o Príncipe da Igreja d’Ele, haveria de fazer o que fez!
Inflexibilidades do Pai Celeste
Terminado o festim, todas as dores grandes e pequenas confluíram. Começou a agonia terrível, na qual Ele teve a representação de tudo o que sucederia e, na sua inteligência, na sua Alma santíssima, o quis com uma tal integridade que sofreu a desproporção entre a dor que vinha e as forças que possuía. Ele sentiu-Se esmagado. Apesar disso, fez um ato de submissão. Ele suou sangue e pediu ao Padre Eterno: “Faça-se a vossa vontade e não a minha!” (cf. Lc 22, 42).
Nosso Senhor possuía uma força divina que não tem nada de comum com a fraqueza; porém, teve a aparência da fraqueza. Ele disse “Faça-se a vossa vontade e não a minha”, como quem intuía ou conhecia que a vontade do Pai Celeste tinha inflexibilidades. Jesus estava esbarrando numa delas, na qual Ele Se esmagaria. Vem um Anjo e Lhe dá uma força que não era um consolo para sofrer menos, mas uma capacidade para padecer mais. Há, então, o abandono dos Apóstolos e tudo o que conhecemos.
Em cada passo, vemos o horror alcançando o inimaginável. Ele entra nesse horror, reveste-Se dele e bebe o cálice da dor. E isso a cada minuto. Por exemplo, tiram-Lhe a túnica, toda empapada de Sangue já seco em alguns lugares e, portanto, colada às feridas. Na hora de puxá-la, uma dilaceração sem nome! Estou certo de que um homem, sem as forças que Ele teve, ficaria louco, morreria de dor.
Essa túnica presumivelmente foi jogada no chão e o Sangue Precioso começou a secar ali. Deram pontapés, cuspiram, pisaram na túnica. Deve ter sucedido o inimaginável. Ora, dentro do conjunto de tormentos pelos quais Ele passou, isso é uma bagatela.
Em cada um desses passos aconteceu o pior previsível. Ele os tomou por inteiro, sem um minuto de adiamento. Em nenhum instante da Paixão o Redentor pede para terem pena d’Ele e adiarem um pouco para poder respirar.
Até o Padre Eterno e o Espírito Santo O abandonaram
Quando Ele cai debaixo da Cruz é porque as forças falham. Logo que pôde levantou-Se e continuou, sofrendo tudo com serenidade única, como se não estivesse padecendo nada.
A natureza humana do Redentor permaneceu na noite mais completa e escura até o gemido final, privando-o de qualquer consolação
Nosso Senhor é obrigado a esta ação atroz de caminhar carregando a sua própria Cruz para o lugar onde o tormento chegaria ao auge. Quer dizer, cada passo dado não era para a própria libertação. Porque, se Lhe dissessem “Se subires esse morro, no alto estarás liberto”, teria um alívio. Ao contrário, os algozes como que afirmavam: “Sobes esse morro e quando chegares ao cume terás o pior. Agora anda!” Ele sobe e em seguida começa a crucifixão.
Tem-se a impressão de isso não ser nada em comparação com o que veio depois, ou seja, todo o demorado processo mortal da crucifixão. Ele podia morrer de uma apoplexia, de um momento para outro. Não. Jesus não bebeu o cálice da morte de um trago só, mas gotinha por gotinha, tomando-lhe todo o sabor. Ele sentiu-Se morrer aos milímetros, sendo cada um deles uma pequena morte.
Nosso Senhor transpôs cada milímetro até o fim, e quis que o mundo soubesse que não teve Ele consolação alguma no gemido final. Até o Padre Eterno e o Divino Espírito Santo O abandonaram.
A humanidade santíssima de Jesus ficou abandonada. A divindade – unida hipostaticamente à humanidade – tornou-se fechada para Ele. E a natureza humana do Redentor permaneceu na noite mais completa e escura, a ponto de arrancar aquele brado indicativo de duas realidades lindas, a pungência tremenda da dor e tudo quanto de força restava ainda naquele Homem: “Iesus autem iterum clamans voce magna”, e depois “emisit spiritum” (Mt 27, 50).2
É o auge da dor, previsto e aceito de longe por uma preparação da Alma para isso.
O paradoxismo da dor
Para fazer uma meditação sobre Nosso Senhor Jesus Cristo é preciso tomar em consideração todos esses aspectos.
Concretamente, consiste em compreender algo paradoxal: esta vida é a mais terrível que se possa imaginar, é duríssima, mas a pessoa tem forças, tranquilidade, estabilidade, limpezas de alma que já são, nesta terra, pelo menos algo do cêntuplo do que ela irá receber na outra.
A dor de encontro à qual a pessoa caminha com passo firme de algum modo diminui. Quando nos esquivamos, ela vai crescendo à medida que fugimos. Com isso vamos minguando e, na hora de ela nos estraçalhar, não somos nada.
Quanto mais o indivíduo previr de longe a dor, tanto menos ela lhe doerá. E a verdadeira ascese consiste na longa previsão, colocando-se nas mãos da Providência. Não tem outro remédio. E, paradoxalmente falando, nós temos aí o nosso cálice do Horto das Oliveiras, quer dizer, o líquido que nos dá força. Isso supõe não dizer “Na hora do drama serei um herói”, mas “Na hora do draminha serei um herói”. Nas pequenas coisas da vida cotidiana deverei ser um herói também.
Contudo, essas considerações não comportam a seguinte conclusão: cada vez que se apresenta a perspectiva de uma dor para nós, não devemos pedir o afastamento dela. Pelo contrário, a oração pode distanciar sofrimentos de nós. Assim como a Providência não só permite, mas quer – e a doutrina da Igreja estimula – que diminuamos as dores das almas do Purgatório, também, como muitas pessoas recebem uma parte desse tormento na terra, é legítimo rogar que sejam livres dele. E muitas vezes a Providência de modo misericordioso as liberta.
O papel da confiança
Assim também, há no que estou dizendo um claro-obscuro. Primeiro, a ajuda de Nossa Senhora para nós conseguirmos ter força. Não acredito que algum homem, sem o auxílio da Santíssima Virgem, possa fazer isso. De outro lado, as exorabilidades adoráveis de Deus, ainda mais quando se suplica como intermediária a Mãe d’Ele, a gloriosa intercessio Beatæ Mariæ Virginis. E se podem conseguir coisas espantosas; porém, sempre fica este ponto: uma inexorabilidade poderá baixar sobre nós.
Se quisermos meditar com seriedade a Paixão, encontramos isso. E, quanto a Nossa Senhora, não se pode imaginar que a uma mera criatura seja pedido tanto quanto foi pedido d’Ela.
Imaginem o cuidado e o carinho da Virgem Maria com Jesus enquanto menino, depois enquanto mocinho, moço, com que afeto Ela bordou a túnica inconsútil! E aquele Corpo que Nossa Senhora havia amado tanto, aquela Alma que Ela procurara encher de consolações – e sabia ter enchido – encontrava-se naquele mar de tormentos. Ela estava conjugada com o inexorável de Deus e quis que Jesus morresse.
Não temos ideia do que isso representa. Se devêssemos sentir em nós uma fagulha, morreríamos de dor.
É preciso caminhar com o passo firme de encontro à cruz, confiando no auxílio da Santíssima Virgem e esperando alcançar a vitória
O papel da confiança é muito bonito nesse ponto. Ela é a virtude pela qual, de modo misterioso, discernimos o que não é inexorável e conseguimos fazer a dor recuar em algo. Por outro lado, a confiança é tão poderosa que, creio, até um pouco do próprio inexorável às vezes recua.
É uma coisa curiosa, mas confiamos que não virão sobre nós as dores as quais sentimos não estarem normalmente em nosso caminho. Cada um de nós tem uma noção confusa sobre o caminho das nossas dores. Também sentimos quando esbarramos no próprio inexorável. E aí a confiança muda de nome e se chama resignação. Contudo, o mais terrível se passa quando vem a prova axiológica,3 porque a pessoa perde a noção do exorável e do inexorável.
Esta é uma meditação sincera sobre a Semana Santa. Cabe também dizer que por trás de tudo isso estão as glórias e as esperanças da Ressurreição. Quantas coisas na nossa vida se deram à maneira de ressurreição! E virá, sobretudo, a ressurreição final de todos nós. Não se trata, portanto, de um horizonte esmagador.
As palavras de Nosso Senhor no alto da Cruz – “Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonastes?” (Mt 27, 46) – são o início de um Salmo que profetiza a Ressurreição e a vitória. ◊
Extraído, com adaptações, de:
Dr. Plinio. São Paulo. Ano XXV.
N.289 (abr., 2022); p.9-15
Notas
1 Do latim: “Eis a escrava do Senhor, faça-se em Mim segundo a tua palavra”.
2 Do latim: “Jesus clamou de novo em alta voz, e entregou a alma”.
3 Na concepção de Dr. Plinio, a palavra axiologia – originada do latim axis, eixo – e suas derivadas fazem sempre referência ao “eixo” que deve nortear a vida humana, isto é, o fim para o qual a pessoa foi criada e sua vocação específica, em torno do que devem girar todas as suas ideias, volições e atividades.