Três dias haviam passado desde que o Divino Mestre fora injustamente condenado à morte. Os poucos seguidores que ficaram fiéis refugiavam-se no interior do Cenáculo, temendo pela própria segurança. Nesse ambiente de fracasso, medo e consternação iniciava-se um novo dia quando algo veio lhes aumentar a turbação: Maria Madalena, uma das mulheres que permanecera aos pés de Jesus junto à Cruz, acorrera ao túmulo ao raiar da aurora e o achara vazio.
Voltou e comunicou aos Apóstolos a espantosa notícia: “Tiraram o Senhor do sepulcro, e não sabemos onde O puseram!” (Jo 20, 2). Pedro e João correram até lá e observaram no chão os tecidos que haviam envolvido os restos mortais de Jesus. São João “viu e acreditou” (Jo 20, 8): o Senhor ressuscitara!
Presença viva do Salvador na Liturgia
Dois milênios depois daquele acontecimento, o Divino Mestre ainda permanece conosco. Ele entregou sua vida na Cruz e subiu aos Céus, mas não se ausentou desta Terra. Sua presença entre os homens se prolonga constantemente de diversas formas, conforme prometera: “Eis que estou convosco todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28, 20).
Cristo se encontra presente na sua Igreja e, de um modo todo especial, na Sagrada Liturgia. O mesmo Jesus que percorrera as estradas da Palestina “está presente no sacrifício da Missa […]. Está presente com o seu dinamismo nos Sacramentos […]. Está presente na sua Palavra, pois é Ele que fala ao ser lida na Igreja a Sagrada Escritura. Está presente, enfim, quando a Igreja reza e canta”. 1
Assim, na mais sagrada e santa das noites, a Santa Igreja nos convida a acreditar na Ressurreição do Senhor por meio de uma belíssima celebração litúrgica, na qual cada gesto nos mostra como “o Rei da vida, morto, reina vivo”. 2
Conhecer o sentido mistagógico desta celebração nos ajudará a reviver, em união com os Apóstolos, o momento auge da História da Salvação que ela comemora, fazendo que nossa participação na “mãe de todas as santas vigílias” 3 — segundo a conhecida expressão de Santo Agostinho — sirva para crescer no conhecimento e no amor de Cristo Ressuscitado. Pois, como afirma o Papa Bento XVI, “a Liturgia não é a recordação de acontecimentos passados, mas a presença viva do Mistério pascal de Cristo, que transcende e une os tempos e os espaços”. 4
Bênção do fogo e preparação do Círio Pascal
Em harmonia com a importância central e única do episódio da História da Salvação nela rememorado, a cerimônia desse dia tem início de uma forma completamente diferente do habitual. Na véspera do Domingo de Páscoa, quando o Sol já se pôs, o povo reúne-se fora da igreja, relembrando que os Apóstolos e as Santas Mulheres tiveram de sair do Cenáculo para constatar a Ressurreição do Senhor.
A ausência de luz lembra o regime anterior à graça em que vivia a humanidade do Antigo Testamento. Só uma fogueira rasga as sombras, lembrando que foi por meio de Jesus, a “Luz do mundo” (Jo 8, 12), que o Pai deu aos homens a graça e instaurou a nova aliança. “Passou o que era velho; eis que tudo se fez novo!” (II Cor 5, 17) — exclama o Apóstolo.
Aproximando-se em silêncio, o sacerdote benze o fogo novo, dando início à celebração. Logo depois, grava no Círio Pascal vários sinais que nos recordam ser ele figura do Salvador Ressuscitado: a Cruz de nossa Redenção, o “alfa” e o “ômega” — primeira e última letras do alfabeto grego — e os algarismos do ano corrente, pois sendo Nosso Senhor o Princípio e o Fim de todas as coisas, o tempo é computado em função d’Ele. A seguir, crava no centro e nos extremos da cruz cinco grãos de incenso, em memória dos cuidados proporcionados por Santa Maria Madalena e pelas outras Santas Mulheres ao Sagrado Corpo do Salvador, por cujas cinco chagas nós fomos curados (cf. Is 53, 5).
Obedecendo ao mandato de pregar o Evangelho a toda criatura (cf. Mc 16, 15), o pequeno grupo da Igreja nascente transmitiu a fé na Ressurreição do Senhor para todos os povos. De forma semelhante, o fogo novo é transmitido ao Círio Pascal por meio de uma pequena vela acesa no fogo abençoado, enquanto o celebrante recita: “A luz do Cristo, que ressuscita resplandecente, dissipe as trevas de nosso coração e nossa mente”. 5
Tríplice “Lumen Christi”
Tal como a chama do Círio rasga a noite, Jesus Ressuscitado vence a morte e abre à humanidade decaída as portas da eterna Bem-aventurança: “Cristo ressuscitou dos mortos como primícias dos que morreram” (I Cor 15, 20). Ele é a verdadeira coluna de fogo (cf. Ex 13, 21) a guiar na noite o Novo Israel pelo deserto desta Terra de exílio rumo à Terra da Promissão. Por isso, com a alma jubilosa forma-se a procissão de entrada na igreja, imagem terrena da Jerusalém Celeste, da qual nos tornamos herdeiros.
Todavia, o cortejo detém-se em três momentos, para a Luz de Cristo ser aclamada por todos, realçando assim o mistério da Santíssima Trindade que o Filho Encarnado nos revelou. Na primeira parada, quando o diácono canta “Lumen Christi!”, proclamamos a divindade do Pai, que Se manifestou por meio do seu Filho: “Ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o Filho quiser revelá-Lo” (Mt 11, 27). Na segunda, proclamamos a divindade de Deus Filho, a verdadeira Luz que veio ao mundo e ilumina todos os homens, tornando filhos de Deus aqueles que O recebem (cf. Jo 1, 9.12). E na terceira proclamamos a divindade do Espírito Paráclito, enviado por Jesus aos seus discípulos, o qual nos santifica e nos conduz à Verdade (cf. Jo 14, 16-17.26).
Por fim, o Círio Pascal é depositado no presbitério onde, a seguir, faz-se o solene anúncio da Páscoa do Senhor.
Solene proclamação da Páscoa
Nos primeiros séculos da Igreja, esse anúncio incumbia ao diácono mais jovem presente à celebração, e ele o fazia de improviso, segundo a inspiração do momento, num transbordamento de entusiasmo pela Ressurreição do Salvador. Na atualidade é feito através do Precônio Pascal, um belíssimo cântico cuja letra é atribuída por alguns autores à pena de Santo Ambrósio ou à de Santo Agostinho.
Esse majestoso hino, cujo conteúdo vale por uma verdadeira meditação, nos convida a elevarmos os nossos corações na contemplação das belezas da nossa Redenção e dignamente louvarmos a Deus pelo excesso de amor manifestado na entrega de seu Unigênito para salvação dos homens. Ele prepara o nosso espírito para um dos principais elementos desta vigília, a Liturgia da Palavra, que mais uma vez toma uma forma diferente do habitual nas demais celebrações ao longo do ano. “No recolhimento dessa noite”, 6 ela nos apresenta uma síntese magnífica da História da Salvação através de nove leituras — sete do Antigo e duas do Novo Testamento — que mostram como Deus “salvou outrora seu povo e nestes últimos tempos enviou seu Filho como Redentor”. 7
Cristo leva à perfeição a Antiga Aliança
Cada uma das perícopes do Antigo Testamento nesta noite proclamadas é acompanhada por um salmo responsorial, ao qual se segue uma oração que as esclarece cada uma à luz da Revelação de Jesus Cristo. Assim, por exemplo, a posterior à primeira leitura (Gn 1, 1–2,2) sublinha que o ato da Criação é ultrapassado em grandeza pelo “sacrifício de Cristo, nossa Páscoa, na plenitude dos tempos”. 8 E na correspondente à sétima leitura (Ez 36, 16-28) sublinha-se que a nova e definitiva purificação dos espíritos e dos corações anunciada pelo Profeta Ezequiel foi realizada por “Aquele que é princípio de todas as coisas”, 9 Jesus Cristo, Senhor nosso.
Tendo, assim, uma visão geral das maravilhas operadas na Antiga Aliança, e do modo como em Cristo tudo foi levado à perfeição (cf. Mt 5, 17), os fiéis estão preparados para unir suas vozes à do celebrante quando, após as sete leituras veterotestamentárias, ele solenemente entoar o “Glória a Deus nas alturas”, em ação de graças por tantos benefícios.
Nesse momento os sinos, emudecidos desde a Quinta-Feira Santa, enchem o ar com suas festivas badaladas, enquanto as vozes do coro atestam com as notas do hino de louvor a alegria pela Ressurreição do Senhor. Tudo no templo reflete o sentimento de júbilo: as luzes se acendem, descobrem-se os retábulos enfeitados de flores e candeias ardentes, exultam os corações dos fiéis.
Terminado o Hino, uma nova oração, seguida pela leitura da Epístola aos Romanos, sublinha e resume o significado dos ritos anteriores: inteiramente renovados pela glória da Ressurreição do Senhor, devemos servi-Lo de todo o coração, pois, assim como Cristo ressuscitado dos mortos não morre mais, precisamos considerar-nos “mortos para o pecado, porém vivos para Deus, em Cristo Jesus” (Rm 6, 9-11).
Uma palavra que resume a nossa alegria
Se a nota predominante da Quaresma foi a penitência preparatória para as festas pascais que se aproximavam, agora, vencidas as trevas do pecado, os homens redimidos pelo Sangue do Redentor podem entoar um cântico novo, como fizeram Moisés e os israelitas após a passagem do Mar Vermelho: “Ao Senhor quero cantar, pois fez brilhar a sua glória” (Ex 15, 1).
No período pascal, este cântico resume-se numa só palavra rica em significado, que nos convida a louvar a Deus: “Aleluia!”. 10 Omitida durante quarenta dias, ela retorna à Liturgia na Noite Santa, quando é cantada três vezes antes da leitura do Evangelho. E para expressar com mais eloquência a alegria transbordante de toda a Igreja, o cantor usa um tom mais alto a cada vez.
Porém, um detalhe do cerimonial faz contraponto à alegria dominante: as duas velas que, nas Missas solenes, acompanham o Evangelho até o ambão e ali permanecem enquanto é lido pelo Evangelho são omitidas na Vigília Pascal. A ausência desses pavios ardentes lembra-nos a falta de fé dos discípulos na Ressurreição de Jesus e nos adverte contra os perigos da incredulidade.
Liturgia Batismal: Cristo é luz do mundo e água viva
Em íntima relação com a Celebração da Luz que abriu a Vigília Pascal na Noite Santa chega o momento da Liturgia Batismal, durante a qual os catecúmenos, após terem sido devidamente preparados no período quaresmal, converter-se-ão em “luz” e “filhos da Luz”. 11 Regenerados nas águas batismais, seu nascimento para a vida sobrenatural ficará assim especialmente vinculado à definitiva vitória de Cristo sobre a morte. 12
Esta terceira parte da cerimônia inicia-se com a Ladainha de todos os Santos, através da qual a Igreja roga a intercessão dos Bem-aventurados habitantes da Jerusalém Celeste em favor daqueles que vão nascer para a vida em Cristo. Demonstra-se assim a comunhão entre o Céu e a Terra, realizada por Aquele que é o “Mediador da Nova Aliança” (Hb 12, 24) e cujo Nome sagrado é, por esta razão, invocado no início e no fim do cântico.
A seguir, o celebrante mergulha na água o Círio Pascal, dizendo: “Nós Vos pedimos, ó Pai, que por vosso Filho desça sobre toda esta água a força do Espírito Santo”. 13 Assim, Cristo, luz do mundo e água viva, santifica o líquido elemento que será a matéria do Sacramento pórtico de todos os demais, como o fez por ocasião do seu Batismo no Rio Jordão.
Após o Rito do Batismo, o ritual sabiamente prevê que todos os presentes, unindo-se aos neobatizados, realizem a renovação das promessas batismais e recebam a aspersão da água benta, a fim de que a recordação do próprio Batismo os cumule da alegria de serem cristãos e os alerte sobre a necessidade de manterem sempre limpa a alva túnica batismal.
“Ressuscitando dos mortos, ressuscitou também a humanidade”
A última parte da Vigília Pascal é composta pela Liturgia Eucarística, renovação incruenta do Sacrifício do Cordeiro imaculado, Cristo, que a Igreja interrompera por dois dias, para permanecer “junto ao sepulcro do Senhor, meditando sua Paixão e Morte”. 14 Nesse momento os neófitos aproximam-se pela primeira vez do Banquete Eucarístico, e todos recebem Aquele que “retirado do rebanho, foi levado ao matadouro, imolado à tarde e sepultado à noite; ao ser crucificado, não Lhe quebraram osso algum, e ao ser sepultado, não experimentou a corrupção; mas ressuscitando dos mortos, ressuscitou também a humanidade das profundezas do sepulcro”. 15
Um convite para a nossa Fé
Ao entrar no sepulcro, São João “viu e acreditou” (Jo 20, 8). Mais felizes serão também “os que acreditaram sem ter visto” (Jo 20, 29).
Nestes tempos em que a omnipresença do pecado torna especialmente opaco o fino véu que nos separa das realidades eternas, a Igreja nos convida a fortalecer nossa Fé participando piedosa e ativamente nas cerimônias litúrgicas.
Cristo ressuscitou, vencendo o pecado e a morte. E os esplendores da Liturgia Pascal nos atestam que junto a Nosso Senhor não há nada a temer. Por muito longa que nos pareça a noite, por muito densas que se apresentem as trevas, Cristo vence, Cristo reina, Cristo impera! ◊
Notas
1 CONCÍLIO VATICANO II. Sacrosanctum concilium, n.7.
2 SEQUÊNCIA. Domingo da Páscoa na Ressurreição do Senhor. In: MISSAL ROMANO. PALAVRA DO SENHOR I. Lecionário Dominical A-B-C. Trad. Portuguesa da 2a. edição típica para o Brasil realizada e publicada pela CNBB com acréscimos aprovados pela Sé Apostólica. São Paulo: Paulus, 2004, p.818.
3 SANTO AGOSTINHO. Sermo CCXIX, 1: ML 38, 1088.
4 BENTO XVI. Audiência Geral, de 3/10/2012.
5 VIGÍLIA PASCAL. Celebração da Luz. In: MISSAL ROMANO. Trad. Portuguesa da 2a. edição típica para o Brasil realizada e publicada pela CNBB com acréscimos aprovados pela Sé Apostólica. 9.ed. São Paulo: Paulus, 2004, p.272.
6 VIGÍLIA PASCAL. Liturgia da Palavra. In: MISSAL ROMANO, op. cit., p.279.
7 Idem, ibidem.
8 VIGÍLIA PASCAL. Oração depois da primeira leitura. In: MISSAL ROMANO, op. cit., p.279.
9 VIGÍLIA PASCAL. Oração depois da sétima leitura. In: MISSAL ROMANO, op. cit., p.282.
10 A expressão hebraica הַלְּלוּיָהּ, transcrita para o grego como ἀλληλούϊα, significa literalmente “Louvor ao Senhor”.
11 Cf. CCE 1216.
12 Embora não seja obrigatório administrar o Sacramento do Batismo durante a Vigília Pascal, ela “é vivida em plenitude quando a comunidade pode apresentar crianças ou adultos para o renascimento batismal” (VIGÍLIA PASCAL. Liturgia Batismal. In: MISSAL DOMINICAL. Missal da Assembleia Cristã. São Paulo: Paulus, 1995, p.345).
13 VIGÍLIA PASCAL. Liturgia Batismal. In: MISSAL ROMANO, op.cit., p.287.
14 CELEBRAÇÃO DA PAIXÃO DO SENHOR. Rubrica do Sábado Santo. In: MISSAL ROMANO, op.cit., p.269.
15 MELITÃO DE SARDES. Homilia sobre a Páscoa, n.71.