Almejais a paz, procurais insistentemente a paz, mas não a encontrais. Por quê? Porque a procurais onde ela não está nem pode estar. Ninguém pode fruir a verdadeira paz se não se reconciliar com o Autor da paz, consigo mesmo e com o próximo.
Aquele que anunciou a paz ao nascer; Aquele que, na véspera da Paixão, nola deixou; Aquele que, invocando-a, exalou seu espírito, também hoje, ressuscitado, anuncia-a novamente. E esta é a primeira palavra com a qual Ele induz os discípulos a reconhecê-Lo: […] “A paz esteja convosco” (Jo 20, 19). […]
Almejais a paz, mas não a encontrais
Também a nós é oferecida hoje a felicidade dada aos Apóstolos, pois a paz foi prometida tanto aos próximos quanto aos longínquos, e Aquele que é nossa paz, Jesus Cristo, exorta também a nós, hoje, com essa saudação.
Haverá quem se recuse a encontrar no Senhor aquilo que procurou longa e inutilmente, perambulando distante d’Ele? Então, não queirais perambular, ó diletíssimos. Almejais a paz e a procurais insistentemente, mas não a encontrais. Por quê? Porque a procurais onde ela não está nem pode estar.
“Há nos seus caminhos infelicidades e aflições, e não conheceram a via da paz” (Is 59, 78). Esta é, conforme afirma o próprio Deus, a situação daqueles que esperam encontrar no pecado a paz e a tranquilidade. Esperam a calma e desembocam na tempestade; em vez da alegria prometida, encontram apenas tédio, angústia e terror: na verdade, sentem sobretudo crescer em si mesmos uma tétrica amargura precisamente lá onde, enganados por uma falsa imagem de bem, lhes tinha sido prometida a máxima felicidade.
“Aprendei de Mim e achareis a paz”
Isso não surpreende. Ninguém pode fruir a verdadeira paz se não se reconciliar com seu Autor, consigo mesmo e com o próximo. A carne brame contra o espírito, o espírito contra a carne: é este nosso incessante conflito interior. Quando cedemos à concupiscência para aplacar o inimigo, mais o excitamos, armando-o contra Deus e o espírito, que é nossa parte essencial, o valor supremo de nós mesmos.
Quando cedemos à concupiscência para aplacar o inimigo, mais o excitamos, armando-o contra Deus e o espírito
Queremos, em alguma oportunidade, obter finalmente aquela paz tão almejada, tanto quanto nos seja possível neste vale de lágrimas? Esforcemo-nos por debilitar aquele inimigo que não podemos extirpar de nossas vísceras, subjugando-o ao espírito e à razão. Com a ajuda de Deus, podemos fazer isto. Daí se seguirá também, como ensina o Apóstolo, que “toda amargura, ira, indignação, gritaria e calúnia serão removidas do meio de nós, bem como toda malícia” (Ef 4, 31).
Sejamos, pois, “benévolos, misericordiosos e generosos uns com os outros, como Deus que Se deu a nós em Cristo” (Ef 4, 32), e com alegria sentiremos confirmada por nossa própria experiência a confiança nesta divina promessa: “Aprendei de Mim que sou manso e humilde de coração, e achareis a paz para vossas almas” (Mt 11, 29).
Se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa fé
Especial atenção requerem deveras, ó diletíssimos, estas outras palavras: “Censurou-lhes a incredulidade e dureza de coração, por não acreditarem naqueles que O viram ressuscitado” (Mc 16, 14).
Mais de uma vez haviam pecado os Apóstolos, com maior ou menor gravidade; entretanto, só uma vez Cristo os censurou. Que significa isto senão seu desejo de que lhes desagradasse especialmente o que a Ele também desagradava de modo especial?
Queria, com efeito, que removessem o principal obstáculo para a paz antes que, oferecendo-a em primeiro lugar com as palavras “a paz esteja convosco”, logo a seguir repetidas, esta lhes fosse efetivamente entregue como dádiva. Pois, que lugar pode restar para a paz e a tranquilidade numa alma em que, banida a fé, há um perpétuo conflito de opiniões, um desmesurado domínio da ganância desenfreada?
Ó miseráveis se, circundados por tão límpida luz, não a veem! Mais miseráveis ainda se, vendo-a, não creem nela
Reconheçamos: se Cristo não ressuscitou, vã é nossa fé; mas se ressuscitou, Ele é Deus. Então, seus ensinamentos e revelações são divinos. Uma só é a fé capaz de satisfazer as mentes desviadas cá e lá por diferentes ventos da doutrina, e de apaziguar os espíritos inquietos. Se alguém duvida que Cristo ressuscitou, esse deve ser considerado verdadeiramente cego pela sua malícia, como quem não vê aquilo que é mais claro que a própria luz. […]
Os incrédulos não terão repouso
Refletindo sobre isso e ouvindo em sua consciência a reprovação do Senhor, o que sentirão na alma os incrédulos?
Oh, miseráveis se, circundados por tão límpida luz, não a veem! Mais miseráveis ainda se, vendoa, não creem nela, pois com isso ofendem sumamente a Deus. Inimigos de si mesmos, persistem em recusar a paz que Ele benignamente lhes oferece.
Entretanto, crerão por fim quando O virem em sua majestade, quando O ouvirem reprová-los, já não para sua salvação, como agora, mas para sua confusão, sua punição, seu desespero. Recusaram a bênção e Ele Se afastará deles: não terão repouso nem de dia nem de noite.
Compadecei-vos de tão grande desgraça e rezai por eles, veneráveis irmãos, filhos diletíssimos. Regozijai-vos em vosso interior, considerando quão razoáveis, quão gloriosas e alegres são as coisas nas quais crestes; e com quanto direito podemos dizer a Deus com o rei profeta: “Vossos testemunhos são por demais dignos de fé” (Sl 92, 5).
“Meu povo se estabelecerá na beleza da paz”
Portanto, arrependei-vos em prantos diante do Senhor quando reconhecerdes que vosso comportamento se afastou da santidade da fé que professais; quando, fascinados pelas falazes lisonjas da cobiça, vos entregardes à avareza, à luxúria ou ao orgulho; quando, enfim, tiverdes transgredido aquele preceito que o Senhor, desejoso de trazer para os homens a paz, chama de “seu mandamento”, dizendo: “Este é meu mandamento: amaivos uns aos outros” (Jo 15, 12).
Assim, depois de removerdes todos os obstáculos à divina benevolência, também para vós se realizará o que se realizou para os Apóstolos: ouvireis o Senhor pronunciar duas vezes “a paz esteja convosco”, ou seja, com a primeira saudação Ele vos prometerá, e com a segunda vos dará a paz.
Com essa sua paz que supera toda experiência interior, superabundando em vosso coração, exclamareis jubilosamente em união com a Igreja: “Alegremo-nos e exultemos neste dia que o Senhor fez para nós” (Sl 117, 24). Prestes a repetir isso com alegria infinitamente maior no dia em que, guardando até o último suspiro a paz, o coração e a vossa inteligência em Cristo Jesus, sereis incluídos na beatíssima categoria daqueles dos quais está escrito: “Meu povo se estabelecerá na beleza da paz, nos tabernáculos da fé, num esplêndido repouso” (Is 32, 18).
Excertos de: LEÃO XII.
Homilia Qui pacem, 26/3/1826