Iludido, busca o homem a felicidade nas sendas do egoísmo, julgando ser tão mais feliz quanto mais pensar em si. Ignora ele que a verdadeira alegria de alma se encontra somente na admiração, no voltar-se enlevado ao que é superior.

Evangelho do XIV Domingo do Tempo Comum

“Naquele tempo, 1 Jesus foi a Nazaré, sua terra, e seus discípulos O acompanharam. 2 Quando chegou o sábado, começou a ensinar na sinagoga. Muitos que O escutavam ficavam admirados e diziam: ‘De onde recebeu Ele tudo isto? Como conseguiu tanta sabedoria? E esses grandes milagres que são realizados por suas mãos? 3 Este homem não é o carpinteiro, filho de Maria e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? Suas irmãs não moram aqui conosco?’. E ficaram escandalizados por causa d’Ele. 4 Jesus lhes dizia: ‘Um profeta só não é estimado em sua pátria, entre seus parentes e familiares’. 5 E ali não pôde fazer milagre algum. Apenas curou alguns doentes, impondo-lhes as mãos. 6 E admirou-Se com a falta de fé deles. Jesus percorria os povoados das redondezas, ensinando” (Mc 6, 1-6).

I – O profeta, homem que comove as consciências

Ao nos criar, Deus teve em vista nossa participação em sua felicidade eterna. E para esse fim, em nenhum instante nos abandona, sempre velando sobre cada um como se fosse seu filho único. O cuidado da zelosa mãe em relação à criança, por exemplo, que a todos comove, não passa de um belo, mas pálido símbolo do amor divino.

Assim, criados para uma eternidade bem-aventurada, temos gravada em nossa alma a Lei Natural — que nos ordena fazer o bem e evitar o mal — e estamos à procura constante de Deus, como as plantas, pelo heliotropismo, sempre buscam a luz do Sol. Para nos auxiliar neste “teotropismo”, Deus, através de uma pessoa ou de alguma circunstância, nos estimula a procurá-Lo com mais zelo e amor. Tal papel desempenharam desde a Antiga Lei os profetas.

“Profeta Abdias” – por Aleijadinho, Congonhas do Campo (MG)

A voz do profeta, auxílio de Deus para atingirmos nossa finalidade

A noção corrente de profeta limita-se à de alguém com capacidade de prever o futuro. Entretanto, é importantíssimo frisar que, embora com frequência seja este um dos seus traços distintivos, contudo não é o principal e nem constitui a essência da sua missão. O principal múnus profético consiste em ser o guia do povo de Deus, indicando os caminhos para a salvação.

Historicamente, tendo quase toda a classe sacerdotal judaica sido infiel à sua missão, “tornou-se necessária a irrupção, na sociedade israelita, desses colossos da espiritualidade denominados profetas — procedentes, em sua maioria, do elemento secular da nação — para sanear religiosamente Israel. […] Os valores espiritualistas da Lei adquirem então seu verdadeiro relevo, e foi tal a altura moral da pregação profética que só o ideal evangélico a superou”.1

É o que vemos na primeira leitura deste domingo: Deus envia Ezequiel como profeta para alertar aqueles homens de cerviz dura e coração empedernido que se desviaram do reto caminho: “Filho do homem, Eu te envio aos israelitas, nação de rebeldes, que se afastaram de Mim. A esses filhos de cabeça dura e coração de pedra. Quer te escutem, quer não — pois são um bando de rebeldes —, ficarão sabendo que houve entre eles um profeta” (Ez 2, 3-5).

Ou seja, Israel rebelara-se contra Deus. E, em vez de castigo, por misericórdia, a esse povo é enviado um profeta, porta-voz que transmite a vontade divina advertindo contra os desvios cometidos e chamando à penitência. Por isso, não poderão os israelitas alegar a atenuante do desconhecimento, da inadvertência, pois “houve entre eles um profeta”.

Diante do profeta, submissão ou revolta

Ensina-nos a doutrina católica que, pelo Batismo, todos participamos do sacerdócio de Cristo e de sua missão profética e régia. 2 Assim, enquanto batizados, somos profetas perante a sociedade, pois devemos, pelo exemplo de vida, testemunhar a verdadeira Fé, indicando o caminho para a salvação eterna e, se preciso, alertando contra os erros. Se isto se aplica a todo fiel leigo, a fortiori, o sacerdote que fala do púlpito, lembrando as verdades eternas, exerce a missão profética.

Ora, assim como, muitas vezes, por nossas misérias não somos dóceis à voz da consciência — que atua dentro de nós, como um profeta a nos lembrar o dever — e criamos sofismas para sufocá-la, também pode ser que nos irritemos com quem em relação a nós exerce o papel profético e nos invectiva justamente. Pois salvo uma graça, a tendência em geral do homem ao ser admoestado é a revolta interior.

É o que ocorre quando ao ouvir um sermão ou fazer uma leitura espiritual sentimos o aguilhão da consciência contra algum vício ou defeito e, por apego a este, não queremos dar ouvidos nem assentimento à voz da graça.

Esta triste situação de alma, mais comum do que se pode pensar, encontra sua arquetipia no Evangelho recolhido pela liturgia deste domingo: é o Profeta por excelência, Jesus Cristo, o qual veio anunciar a Boa Nova e indicar o Caminho que é Ele mesmo, “causa de queda e elevação de muitos em Israel” e “um sinal de contradição” para serem “revelados os pensamentos de muitos corações” (Lc 2, 34-35).

II – Reação do espírito humano diante da superioridade

“Naquele tempo, 1 Jesus foi a Nazaré, sua terra, e seus discípulos O acompanharam. 2 Quando chegou o sábado, começou a ensinar na sinagoga”.

Em Nazaré, Nosso Senhor viveu por cerca de trinta anos, desde a volta do Egito, após a morte de Herodes (cf. Mt 2, 15.23), até o início de sua vida pública com o Batismo no Jordão (cf. Mt 3, 13-17). Nessa cidade, nunca Se manifestara enquanto Deus, mas apenas como o filho de José e de Maria; uma pessoa comum, portanto.

Ora, em certo momento, Ele desapareceu e nessa Nazaré apenas chegavam os ecos de seus grandiosos milagres. A Galileia estava certamente em alvoroço pelas repercussões relativas aos feitos de Jesus, como a ressurreição da filha de Jairo e a cura da hemorroíssa, realizadas havia pouco conforme relata São Marcos (5, 22-42), e tantas outras ações extraordinárias. E deveriam também ouvir falar das maravilhosas doutrinas inéditas pregadas pelo Divino Mestre, bem como das encantadoras parábolas que tanto entusiasmavam os homens de boa fé.

Entretanto, podemos supor, por um lado, ser o ceticismo uma reação não incomum diante desses relatos, pois à natureza humana custa a dar crédito a algo de notável relacionado com quem participa de nosso convívio diário. Mas, por outro lado, os habitantes de Nazaré sentiam um certo orgulho, porque sua cidadezinha ia adquirindo celebridade em razão do Nazareno.

Nessas circunstâncias, chega Jesus à sua terra. Podemos imaginar o burburinho provocado ao verem-No entrar na sinagoga, onde nunca havia pregado, e começar a comentar a Escritura de um modo jamais ouvido.

Admiração, primeiro movimento diante da superioridade

2b “Muitos que O escutavam ficavam admirados…”.

São Lucas acrescenta importantes pormenores relativos a este episódio. Convidado a falar, Jesus abriu o livro do profeta Isaías onde está escrito: “O Espírito do Senhor está sobre Mim, pois Ele Me ungiu, para anunciar a Boa Nova aos pobres”. A seguir, afirmou: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir”. E o Evangelista conclui: “Todos testemunharam a favor d’Ele, maravilhados com as palavras cheias de graça que saíam de sua boca” (cf. Lc 4, 18-22).

Sinagoga de Nazaré (Israel) – Edifício medieval construído no mesmo local onde pregou Nosso Senhor

A primeira reação, portanto, foi de admiração geral, tão ricas, densas e originais devem ter sido as palavras proferidas pelo Salvador, certamente não registradas em sua totalidade pelo Evangelista. De fato, é este o primeiro movimento de toda criatura humana no seu relacionamento social, ao encontrar alguém que se sobressai a algum título. Em seguida, contudo, em razão do instinto de sociabilidade que nos impele a entrarmos em contato com os demais, a inevitável tendência natural é a comparação: “Seríamos também capazes de realizar o mesmo?”. O teor afirmativo ou negativo da resposta determinará como consequência imediata uma reação interna de alegria ou de tristeza.

No caso afirmativo, ficamos satisfeitos por nos julgarmos aptos para igualar, ou até superar, o outro. E podemos tomar duas atitudes. Uma boa, de compreender que se trata de dom gratuito de Deus — pois o Espírito Santo “distribui a cada um seus dons conforme quer” (I Cor 12, 11) —, e temos o dever de utilizá-lo para ajudar os outros a se santificarem, conforme ensina o Apóstolo: “A cada um é dada a manifestação do Espírito em vista do bem de todos” (I Cor 12, 7). E uma outra ruim, de orgulho, desprezando aquilo que os outros possuem.

No caso negativo, sentiremos tristeza ao constatar nossa inferioridade. E aqui também são possíveis duas atitudes. A primeira, boa, consiste em passar por cima dessa instintiva tristeza e admirar a qualidade do outro, nos encantando com a sua superioridade. A segunda, má, de ter um certo ressentimento, consequência da inveja perante o valor alheio.

As duas atitudes boas nos trazem paz de alma, pois propiciam reconhecer a grandeza do Criador através de seus reflexos nas pessoas. Assim procede quem se habitua a considerar os aspectos da vida cotidiana elevando-se a partir deles a superiores cogitações. São aqueles que, no passo seguinte à admiração, sempre estão desejosos de louvar, estimar e servir aquilo que é bom, verdadeiro e belo.

Ora, dada a natureza humana decaída, sem auxílio da graça, as reações posteriores à comparação são ordinariamente ruins. Arquetípico exemplo disto, encontramos nos versículos seguintes, nos quais o Evangelista resume a reação dos nazarenos diante da pregação de Jesus.

A consequência do egoísmo

2b “… e diziam: ‘De onde recebeu Ele tudo isto? Como conseguiu tanta sabedoria? E esses grandes milagres que são realizados por suas mãos? 3 Este homem não é o carpinteiro, filho de Maria e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? Suas irmãs não moram aqui conosco?’. E ficaram escandalizados por causa d’Ele”.

Na cidade de Nazaré, excetuando Nossa Senhora, não houve provavelmente quem tomasse a atitude correta de admirar a superioridade de Jesus. Depois da primeira reação boa, passaram eles a considerar apenas os aspectos humanos, e logo surgiram as dúvidas de má fé, seguidas de inveja.

Uns se perguntavam de onde vinha tanto conhecimento, uma vez que o Pregador não estudara com nenhum dos mestres conhecidos na região. Dentre estes, alguns até poderiam estar presentes na sinagoga naquele momento, e considerassem intolerável Jesus sobrepujá-los no saber, justamente eles que tanto haviam estudado.

E, quiçá, se perguntavam quais as artimanhas empregadas pelo jovem Mestre para adquirir tão grande conhecimento em tão breve espaço de tempo.

Misturava-se neles a inveja com um fundo de falta de fé, ao quererem julgar as coisas pelas suas aparências primeiras. Não souberam transcender a figura do filho do carpinteiro, que ali havia vivido tantos anos exercendo um trabalho artesanal, numa situação inteiramente ordinária e que, de repente, surge como Sábio, Taumaturgo e Exorcista.

Ao mesmo tempo, não podiam negar serem verdadeiros os retumbantes milagres atribuídos ao Redentor, mas, em sua cegueira espiritual, preferiam fechar os olhos para a realidade superior, e se refugiar numa explicação natural, que não lhes cobrava uma mudança de vida.

Assim, “ficaram escandalizados por causa d’Ele”. É o desprezo a consequência necessária da falta de amor e da inveja. Com severidade, São Basílio invectiva esse defeito de alma: “A inveja é um gênero de ódio, o mais feroz, porque os benefícios aplacam quem por alguma outra causa é inimigo nosso, mas o bem que se faz ao invejoso irrita-o mais; e quanto mais ele recebe, mais se indigna, se entristece e se exacerba. Isso porque o desgosto que sente pelo poder do benfeitor é maior que a gratidão pelos bens que dele recebe. […] Os cães tornam-se mansos se alguém lhes dá de comer; os leões se domesticam, quando se cuida deles; mas os invejosos se enfurecem mais com os benefícios”. 3

“A família de Nazaré”, por Juan del Castillo – Museu de Belas Artes, Sevilha (Espanha)

O perigo de não ver o sublime

4 “Jesus lhes dizia: ‘Um profeta só não é estimado em sua pátria, entre seus parentes e familiares’”.

Anteriormente, relata São Marcos estarem alguns parentes de Jesus envergonhados d’Ele, a ponto de, em certa ocasião, irem à sua procura “para detê-Lo, pois diziam: ‘Está ficando louco’” (Mc 3, 21).

Sem dúvida, encontravam-se na assembleia vários de seus familiares, máxime considerando ser pequenina a cidade. E talvez eles próprios se comparassem com Jesus, imaginando serem a Ele equivalentes dada a consanguinidade. Constatando, porém, sua evidente inferioridade, nascia a inveja e o desejo de destruir o bem visto no outro, por julgar que este lhes fazia sombra. Tal é a natureza humana que, em geral, a pessoa não tem inveja de um desconhecido, mas sim do amigo, daquele com quem convive.

Por isso, à semelhança de Nosso Senhor, quem abraça as vias da virtude pode ser muito bem considerado em alguns ambientes, mas nem sempre o será entre os seus íntimos.

A divindade de Nosso Senhor deveria transparecer

Assueta vilescunt — a rotina pode acabar envilecendo até as coisas mais grandiosas. Ora, Jesus, Deus e Homem verdadeiro, encontrava-Se onde vivera tanto tempo como pessoa comum, desejoso de fazer bem a seus mais próximos.

Não podemos crer, entretanto, que o convívio com Ele não tivesse dado margem a transparecer algo de incomum em incontáveis ocasiões. Em virtude da íntima união entre a natureza humana e a divina em Cristo, por debaixo dos véus de sua Perfeitíssima Humanidade, deveria com frequência transluzir de alguma forma a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, ultrapassando em tudo qualquer capacidade humana de perfeição, de modo a ficar patente tratar-Se Jesus de um Ente completamente fora do comum. “Enquanto em seu puríssimo Corpo a natureza evoluía devagar para a plenitude, ‘a sabedoria divina enchia sua santa alma e a graça aí esgotava todos os seus dons’. […] Ele temperava as manifestações exteriores de suas perfeições ocultas, como a árvore nova que desdobra pouco a pouco seus brotos, suas folhas e flores antes de formar seus frutos; como o Sol que, depois de clarear ligeiramente o horizonte, colore-o com os vermelhos crescentes da aurora antes de inundar o espaço com seus raios vitoriosos e mostrar sua face resplandecente” 4, comenta Monsabré.

Nosso Senhor deveria ser a perfeição nos gestos, nas atitudes e até no caminhar. E o que dizer de sua voz incomparável? A beleza de sua alma espelhava-se maravilhosamente em sua face e, sobretudo, em seu olhar. Dotado de todas as qualidades humanas possíveis, Ele era belo, nobre e distinto no mais alto grau. Tudo n’Ele transluzia uma misteriosa e inefável superioridade.

Por que não viram: egoísmo e mediocridade

Entretanto, quando Ele foi anunciar a salvação aos parentes e aos conhecidos, estes não creram. Vemos nisto quanto é terrível a tendência da natureza humana de julgar as coisas pela aparência, e não aceitar o que é superior.

Essa cegueira espiritual é fruto da mediocridade. O medíocre nunca reconhece os valores que não lhe dizem respeito; ele é arquiegoísta. E todo egoísta é medíocre, porque são defeitos recíprocos e inseparáveis. A mediocridade leva a pessoa a não querer prestar atenção em nada mais elevado. E a logo procurar denegrir. Por isso, com intuito de humilhá-Lo, os nazarenos chamam Jesus de “o carpinteiro”. Não há referência a São José, pois este, segundo alguns comentaristas, já deveria ter falecido.

Detalhe de “Jesus diante de Caifás”, por Maestro de Rubió – Museu Episcopal de Vic (Espanha)

A admiração justifica

Muito diversa teria sido a história do início da Igreja se os nazarenos tivessem admirado e seguido Nosso Senhor.

O papel da admiração e do amor é ressaltado por São Tomás ao afirmar que quem, mesmo não batizado, orienta a sua vida segundo o seu verdadeiro fim, amando um bem honesto mais do que a si mesmo, obtém pela graça a remissão do pecado original. 5 E comenta sobre este particular Garrigou-Lagrange: “Está justificado pelo batismo de desejo, porque esse amor, que já é o amor eficaz a Deus, não é possível no estado atual da humanidade sem a graça regeneradora”. 6 Poderíamos então inverter a afirmação do Doutor Angélico e dizer que quando uma pessoa ama a si mesma mais do que a um bem, torna-se medíocre e egoísta, e, portanto, abre-se a toda forma de mal, passando a ser cega de Deus. Assim como une-se a Deus aquele que ama um bem superior mais do que a si mesmo, quem ama-se a si mesmo acima de todas as coisas e mais do que a Deus, liga-se ao demônio.

Portanto, neste sentido, o limite que separa o Céu do inferno é traçado por uma palavra: admiração. A admiração por algo mais elevado me aproxima do Céu; e a admiração a mim mesmo, me aproxima do inferno.

As consequências da cegueira de Deus

5a “E ali não pôde fazer milagre algum”.

Mostra-se muito cuidadoso o Evangelista ao precisar, neste versículo, que Jesus não Se negou a fazer milagres, mas sim que “não pôde”, ou seja, não houve condições de fazê-los. Ele, cuja simples sombra ou manto tantas vezes haviam curado, em Nazaré, nenhum milagre operou. Ou os fez poucos, conforme relata São Mateus (cf. Mt 13, 58).

Por quê? Para que se realize um milagre são requeridas duas condições: em primeiro lugar a fé dos beneficiários e, em segundo, a intercessão daquele por meio do qual Deus exercerá o seu poder. Ora, o Divino Mestre não precisava de intercessão, pois o poder é d’Ele; mas era necessária a fé dos outros. 7 A inveja dos nazarenos impedia que Jesus fosse aceito, e tudo o que Ele fizesse seria analisado por um prisma meramente humano.

Ademais, se Ele realizasse algum milagre grandioso, muito provavelmente, os nazarenos iriam se revoltar e com isso agravariam o seu pecado, ofendendo ainda mais ao Pai. Portanto, uma manifestação do poder de Jesus poderia condená-los irremissivelmente. E Ele não queria perdê-los, mas sim salvá-los.

Colhe-se aqui um importante ensinamento para o nosso apostolado: devemos fazer o possível para que os outros não pequem e com isso não ofendam ao Pai, pois, antes de tudo, é a glória de Deus o nosso objetivo. Então, algumas vezes poderemos mostrar os dons que a Providência nos deu para fazer bem ao próximo; em outras, pelo contrário, será necessário velá-los se forem causa de condenação para alguns.

5b “Apenas curou alguns doentes, impondo-lhes as mãos. 6 E admirou-Se com a falta de fé deles. Jesus percorria os povoados das redondezas, ensinando”.

Tais curas não tinham o caráter estrondoso de um milagre que subverte as leis da natureza. Com efeito, era frequente entre os sacerdotes hebreus a prática da imposição das mãos para curar algumas doenças ou expulsar demônios. Deste modo, Nosso Senhor ali desempenhou apenas o papel de um simples sacerdote.

Enquanto nas povoações vizinhas Ele ensinava e operava todo tipo de milagres, de sua própria terra foi expulso pelos seus! (cf. Lc 4, 29).

III – Admiração, antídoto contra a mediocridade

Se não formos cuidadosos em combater a tendência ao egoísmo e à mediocridade, manifestada pelos nazarenos nessa ocasião, teremos dificuldade em admitir e admirar os valores alheios. Por isso, devemos nos exercitar na virtude do desprendimento de nós mesmos. E o melhor meio para tal consiste em sempre reconhecer os pontos pelos quais o próximo é superior a nós, desejando admirá-lo e estimulá-lo. A admiração deve ser para nós um hábito permanente. E, se notarmos em nós alguma superioridade real, devemos, sem jamais nos vangloriar, utilizá-la para ajudar os demais. É o convite sempre atual à virtude da humildade.

Bem a propósito, diz a Igreja, na Oração do dia: “Ó Deus, que pela humilhação do vosso Filho, reerguestes o mundo decaído…”.

Assim como Deus agiu em relação ao mundo, devemos nós proceder em relação a todos quantos nos são inferiores a algum título. Cristo tomou-Se de compaixão pela humanidade e, tendo sempre a alma na Visão Beatífica, assumiu uma carne padecente por amor aos homens.

“Assunção de Nossa Senhora” – Afresco da Abadia Beneditina de Subiaco (Itália)

O plano de Deus com o instinto de sociabilidade

Este é o grande plano de Deus para a sociedade humana: ao criar os homens com o instinto de sociabilidade tão arraigado, teve em vista proporcionar-lhes a possibilidade de uns ajudarem os outros, na admiração recíproca dos dons recebidos, de maneira que, sobrepujando comparações e invejas, cada qual culmine no desejo de servir e louvar aquilo que lhe é superior.

Dessas verdades deflui uma importante consequência: o perdão, fruto da caridade. Caso alguém nos faça ofensa, deve logo brotar do fundo de nosso coração um perdão multiplicado pelo perdão. Assim agindo, daremos nossa contribuição para termos uma sociedade na qual todos se perdoam mutuamente, pois sem cessar uns querem elevar os outros.

Este é um dos modos mais sapienciais de praticarmos o amor a Deus em relação ao nosso próximo: querendo que este se eleve sempre mais na virtude e rendendo nossa admiração e louvor às suas qualidades.

Uma sociedade constituída com base neste princípio extraído do Evangelho eliminaria tantos horrores que grassam hoje, e tornar-se-ia a mais feliz que possa existir neste vale de lágrimas ao fazer com que todos se unam em função do amor a Deus.

Quando essa sociedade se tornar realidade, bem poderá ser denominada Reino de Maria, pois estará pervadida pela bondade do Sapiencial e Imaculado Coração da Mãe de Deus. Reino no qual a Santíssima Virgem comunicará a todos uma participação no supremo instinto materno que Ela tem por cada um de nós. 8 E aí compreenderemos inteiramente o que Ela mesma disse em Fátima: “Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará!”. 

 

Notas

1 GARCIA CORDERO, OP, Maximiliano. Biblia comentada. Libros proféticos. Madrid: BAC, 1961, t.III, p.4.
2 Cf. CCE 1268.
3 SÃO BASÍLIO, O GRANDE. De envidia. Homil.11: MG 31, 371.
4 MONSABRÉ, OP, Jacques-Marie-Louis. Exposition du Dogme Catholique. Vie de Jésus-Christ. 9.ed. Paris: P. Lethielleux, 1903, p.71.
5 Ensina São Tomás que, “começando a ter o uso da razão”, a primeira coisa que ocorre ao homem pensar é “deliberar sobre si mesmo”. E afirma: “Se ele se ordenar ao fim devido, conseguirá pela graça a remissão do pecado original” (SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I-II, q.89, a.6).
6 GARRIGOU-LAGRANGE, OP, Reginald. El Salvador y su amor por nosotros. Madrid: Rialp, 1977, p.34.
7 Ensina São Tomás que “não era conveniente fazer milagres entre incrédulos” (SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.43, a.2, ad.1).
8 Cf. SÃO LUÍS MARIA GRIGNION DE MONTFORT. Traité de la vraie dévotion à la Sainte Vierge, n.144. In: Œuvres complètes. Paris: Seuil, 1966.
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Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP
Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP, é fundador dos Arautos do Evangelho.

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