No dia em que a Liturgia católica oferece ao fiel uma pausa jubilosa em meio à penitência do período de Advento, o Precursor nos indica o “que devemos fazer” para encontrar a verdadeira alegria, tão ansiada por toda criatura.

 

Evangelho do III Domingo do Advento (Domingo Gaudete)

Naquele tempo, 10 as multidões perguntavam a João: “Que devemos fazer?” 11 João respondia: “Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo!”

12 Foram também para o batismo cobradores de impostos, e perguntaram a João: “Mestre, que devemos fazer?” 13 João respondeu: “Não cobreis mais do que foi estabelecido”. 14 Havia também soldados que perguntavam: “E nós, que devemos fazer?” João respondia: “Não tomeis à força dinheiro de ninguém, nem façais falsas acusações; ficai satisfeitos com o vosso salário!”

15 O povo estava na expectativa e todos perguntavam no seu íntimo se João não seria o Messias. 16 Por isso, João declarou a todos: “Eu vos batizo com água, mas virá Aquele que é mais forte do que eu. Eu não sou digno de desamarrar a correia de suas sandálias. Ele vos batizará no Espírito Santo e no fogo. 17 Ele virá com a pá na mão: vai limpar sua eira e recolher o trigo no celeiro; mas a palha Ele a queimará no fogo que não se apaga”. 18 E ainda de muitos outros modos, João anunciava ao povo a Boa-nova (Lc 3, 10-18).

I – Um remanso de alegria em meio à penitência

A Liturgia da Igreja reúne sucessivamente, ao longo do ano, os mais variados sentimentos: a tristeza na Semana Santa; o gáudio transbordante, porém cheio de temperança, na Ressurreição; a esperança durante o período do Tempo Comum; o júbilo festivo nas grandes solenidades. Em certo momento ainda, nos deparamos com uma manifestação — quiçá uma das mais acentuadas dentro da Liturgia — de conforto e felicidade em meio à penitência. Essa é a nota característica de dois domingos únicos no ano: o 4º Domingo da Quaresma, que leva o título de Lætare, e o 3º Domingo do Advento, designado pelo nome de Gaudete. Neste último, sobre o qual refletiremos, a Igreja abre um parêntese na ascese e na preocupação constante de uma conversão — atitudes próprias à época do Advento e preparativas para a vinda de Nosso Senhor — para tratar da alegria, infundindo-nos novo ânimo.

“Alegrai-vos sempre no Senhor!”

Gaudete, primeira palavra da Antífona da entrada da Missa do dia, significa alegrai-vos, e é extraída da Epístola de São Paulo aos Filipenses: “Alegrai-vos sempre no Senhor; eu repito: alegrai-vos. […] O Senhor está próximo!” (4, 4-5). Com efeito, a esperança no nascimento de Jesus deve ser acompanhada de sinceros desejos de mudança de vida. Estas moções interiores precisam, no entanto, de um estímulo, e é justamente o que recebemos neste 3º Domingo do Advento: as flores voltam a ornar os altares, os instrumentos tornam a tocar durante a Celebração Eucarística e os paramentos se tingem de suave róseo para simbolizar a exultação e a ideia de um descanso. Toda a Liturgia, inclusive as leituras e orações, está centrada no gáudio, porque nossa Santa Religião não caminha para a tristeza nem nos conduz para uma vida de eternos sofrimentos, mas, pelo contrário, nos abre a perspectiva de um futuro feito de júbilo e consolação.

Só em vista dessa felicidade tem sentido estarmos dispostos a sofrer, conforme nos explica o mesmo Apóstolo: se não fosse a Ressurreição de Nosso Senhor, vã seria nossa fé (cf. I Cor 15, 14). A Ressurreição de Cristo é a promessa da nossa própria ressurreição e, portanto, do nosso gozo eterno. Qual seria o valor de todo o esforço feito durante a vida, se não houvesse a garantia final de um prêmio, de uma eternidade feliz? Sem este incentivo nós desanimaríamos. Assim sendo, toda a nossa atenção deve-se concentrar num só ponto: em determinado momento estaremos no convívio com Deus!

Tal é o empenho da Liturgia deste domingo: encher-nos de gáudio em vista do futuro. Devemos, então, considerar o Evangelho partindo da perspectiva desse júbilo sobrenatural, fundado no fato de sermos filhos de Deus e de termos a promessa de uma eternidade junto a Ele, se perseverarmos nas vias do bem, até o fim.

Uma Liturgia pervadida pela alegria

A primeira leitura proclama o fim da profecia de Sofonias: “Canta de alegria, cidade de Sião; rejubila, povo de Israel! Alegra-te e exulta de todo o coração, cidade de Jerusalém! O Senhor revogou a sentença contra ti, afastou teus inimigos; o Rei de Israel é o Senhor, Ele está no meio de ti, nunca mais temerás o mal. Naquele dia, se dirá a Jerusalém: ‘Não temas, Sião, não te deixes levar pelo desânimo! O Senhor, teu Deus, está no meio de ti, o valente guerreiro que te salva; Ele exultará de alegria por ti, movido por amor; exultará por ti, entre louvores, como nos dias de festa’” (3, 14-18a).

“Ecce Agnus Dei”, por Jaume Huguet – Museu Episcopal de Vic (Espanha)

Embora seja este um profeta de tragédias e denúncias, esta passagem é um prenúncio de contentamento e consolo, pois quem seriamente considera as maravilhas do futuro, mesmo enfrentando grandes sofrimentos, está sempre cheio de alegria. Por isso, quando um bom católico é atingido por uma doença ou passa por algum desastre, sabe mostrar uma resistência e uma resignação fora do comum, pois conhece Alguém acima dele — Nosso Senhor Jesus Cristo —, que sofreu incomparavelmente mais, a fim de proporcionar-lhe a felicidade extraordinária de viver na eternidade junto d’Ele.

Também a segunda leitura — a mencionada carta de São Paulo — confirma esta exultação, ao dizer: “Alegrai-vos sempre no Senhor; eu repito, alegrai-vos. Que a vossa bondade seja conhecida de todos os homens! O Senhor está próximo!” (Fl 4, 4-5).

O Apóstolo das gentes escreveu esta epístola quando se encontrava na lúgubre prisão onde fora encarcerado, em Roma (cf. Fl 1, 7.13.17). A História nos mostra quão inumanos eram os cárceres de então. Segundo Holzner, “a Antiguidade Cristã está cheia de protestos acerca dos maus tratos e das péssimas condições de vida a que se submetiam os prisioneiros, bem como do terrível estado em que se encontravam as prisões romanas. […] Os próprios romanos consideravam a pena de prisão como um terrível sofrimento, cruciatus immensus, e as queixas relativas à elevada mortalidade dos prisioneiros não tinham fim”.1 Entretanto, mesmo nessa situação Paulo exorta: “alegrai-vos”. Seu coração está transbordante de júbilo e, em circunstâncias tão adversas, tal contentamento não pode ser natural, de caráter mundano ou carnal, mas divino, oriundo do alto, penetrando até o fundo do coração e capaz de passar por cima de qualquer sofrimento. Absolutamente nada o fazia estremecer: “Não vos inquieteis com coisa alguma” (Fl 4, 6).

Esse é o dever de todo batizado. Temos, como ninguém, a possibilidade de fazer o bem, pois no Batismo recebemos a infusão de todas as virtudes e dons do Espírito Santo, como um maravilhoso organismo sobrenatural que, movido pela graça atual, nos permite realizar atos meritórios. Por esse motivo devemos ter a compenetração de que quando praticamos uma obra boa, não o fazemos por nossa própria natureza decaída, mas pela ação da graça, tesouro depositado em nós pelo próprio Deus, razão do gáudio sobrenatural que sentimos.

Diante da aproximação do Salvador: alegria… e conversão!

Por tudo isso, ante a proximidade do nascimento de Nosso Senhor, a Igreja deseja para os fiéis a degustação — um tanto antecipada — das consolações, fervores e toques da graça própria às doçuras da festa do Natal. Neste 3º Domingo, portanto, uma nova etapa se abre no Advento: o 1º Domingo fez uma clara referência à vinda do Salvador; o 2º tornou ainda mais expresso e aberto o mesmo anúncio; e agora se afirma, pela pena de São Paulo, “O Senhor está próximo!”.

Ora, se a razão pela qual nós devemos nos alegrar é o nascimento de Jesus, temos de fundamentar esse contentamento no cumprimento da Lei de Deus, no desejo contínuo de uma transformação interior. O Evangelho desta Liturgia projeta, mais uma vez, a profética figura do Precursor, chamando todos para isso.

II – A conversão exige gestos concretos

São João vinha preparando os caminhos do Senhor mediante a pregação de uma mudança de vida. O impacto produzido por sua misteriosa figura e por suas palavras ardentes atraíra multidões que lhe acorriam ao encontro. Centralizar a atenção de muitos, pondo em movimento paixões religiosas e políticas era fácil. Sem embargo, o enviado de Deus possuía uma ambição mais alta. Sua pregação devia atingir o âmago das almas, movendo a vontade e despertando as consciências. Diante de sua proposta, apresentavam-se diversas situações que evidenciavam uma grande preocupação de querer segui-lo, pois seus ouvintes estavam à procura da felicidade. Para poder levar adiante essa boa disposição, todavia, era preciso uma metanoia — mudança de mentalidade —, uma renúncia aos próprios preconceitos, vícios e paixões desregradas. Como afirma Maldonado: “Um bom sinal de se ter tirado fruto do auditório é que venham ao pregador com a consciência inquieta e agitada, para consultar sobre sua salvação!”.2 Por isso, a todos esses São João haveria de mostrar como deveriam viver.

Na generosidade está a verdadeira alegria

Naquele tempo, 10 as multidões perguntavam a João: “Que devemos fazer?” 11 João respondia: “Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo!”

O austero reformador suavizava suas palavras quando pregava aos humildes sinceramente sedentos de conversão, e seus conselhos respiravam bondade, conforme vemos neste trecho. Contudo, terão aqueles judeus observado os ditames de São João Batista, limitando o seu sentido apenas a repartir vestes e comida aos que se encontravam delas desprovidos? Se esta divisão de bens fosse o único objetivo do profeta asceta, até para os fariseus teria sido fácil seguir o Precursor! Tais recomendações não devem, pois, ser tomadas tão só ao pé da letra. Segundo observa o padre Maldonado, o Precursor indicava “uma espécie de caridade em todo o seu gênero, ou seja, com todos os deveres desta virtude. […] Recomenda-se, em geral, a caridade para com o próximo, propondo-a como sendo uma síntese do caminho para a salvação”.3 Devia, então, ser subentendida por eles a necessidade de dotar suas vidas de uma nova perspectiva, saindo de si mesmos e sem nunca se apegar aos bens materiais.

Todo o necessário para cada um, para nossa família ou comunidade, pode ser usado segundo o próprio beneplácito e de forma totalmente legítima, porém nunca para satisfazermos o egoísmo. Se Deus nos concedeu o instinto de sociabilidade, e acima deste a lei moral e a graça, é preciso estar com uma preocupação primordial de fazer o bem aos outros, sem acepção de pessoas. Essa disposição de alma, de contínuo e generoso desvelo com o próximo, torna nossas almas transbordantes de alegria.

Atrás de uma profissão, egoísmo camuflado

12 Foram também para o batismo cobradores de impostos, e perguntaram a João: “Mestre, que devemos fazer?” 13 João respondeu: “Não cobreis mais do que foi estabelecido”.

Alguns ouvintes de São João quiseram esclarecer o modo de proceder em seu caso particular: os cobradores de impostos. Naqueles tempos remotos, não existia para esta classe de profissão a rigidez de uma legislação fiscal semelhante a nossos dias e, em consequência, uma avaliação exata sobre a quantidade devida ao Estado. Em grande medida isso dependia da vontade do cobrador, que podia definir a quantia a ser paga pelo contribuinte. Na realidade, ele devia reger-se por critérios prévios, embora com certa frequência fossem acrescidos à cobrança justa do imposto outros encargos, os quais acabavam por ficar em seu próprio bolso e não no tesouro público… Com isso, os cobradores de impostos prejudicavam os outros em benefício próprio.4

Tal atitude significava um egoísmo dissimulado no exercício da profissão, pois, ao invés de terem a Deus como o centro de suas vidas e de seus atos, servindo ao bem comum com honestidade, preferiam impor uma pesada carga fiscal, cobrando a mais em seu favor. O Precursor lhes ensina o mesmo princípio geral dado às multidões, referente ao dever de caridade para com os outros, aplicado ao caso concreto: não cobrar mais do que o estabelecido, pois isto constituirá uma injustiça. Como assevera o Cardeal Gomá y Tomás, “o Batista não exigia deles mais do que o cumprimento de seu ofício dentro da mais estrita justiça; não lhes impunha, como faziam os fariseus com todo o mundo, cargas insuportáveis”.5

O vício de se aproveitar do exercício da autoridade em benefício próprio

14 Havia também soldados que perguntavam: “E nós, que devemos fazer?” João respondia: “Não tomeis à força dinheiro de ninguém, nem façais falsas acusações; ficai satisfeitos com o vosso salário!”

Os soldados eram “gente assalariada, recrutada ordinariamente entre os vagabundos, bandidos, fugitivos da casa paterna”,6 influenciados pelo rude e, com frequência, desmoralizado ambiente no qual recebiam a formação militar, e tantas vezes expostos a exercer, em inúmeras ocasiões, o roubo e o abuso da autoridade, sem nenhum tipo de coibição superior. Recomendava-lhes João a doçura e a calma, proibindo a violência injusta e convidando-os a se contentar com o magro soldo que tanto desejavam engrossar por meio de censuráveis rapinas, aconselhando-os, também, ao estrito cumprimento do dever em favor da ordem estabelecida e do bem comum. A esse propósito, aponta com precisão Santo Agostinho: “A milícia não proíbe fazer o bem, mas a malícia. […] Se os soldados fossem assim, [honestos], seria ditoso até o próprio Estado”.7

Pelo que vemos por esses exemplos recolhidos no Evangelho — sem dúvida, muitos mais devem ter sido os casos de consciência resolvidos e as orientações dadas pelo Precursor —, São João Batista tinha tato psicológico e discernimento dos espíritos, além de uma arte suprema que harmonizava a clarividência à justiça e à caridade. Sabia dizer uma palavra oportuna e exata a todos, para conduzi-los à conversão, com a autoridade moral característica daqueles que vivem na segurança da virtude e sabem nela encontrar a felicidade possível nesta terra de exílio. Na verdade, João respondia com simplicidade “a todo tipo de pessoas que lhe perguntasse: fazei vosso trabalho com justiça. E essa é, de fato, a única resposta verdadeira: continuai vivendo com autenticidade, com justiça e preocupando-se com os demais. Por isso, o cristão deve estar sempre alegre e sua serenidade deve ser conhecida por todos os homens”.8 No exato cumprimento da nossa obrigação consiste a prática da virtude.

Pregação de São João Batista, por Willem Reuter – National Gallery of Art, Washington

O impacto produzido pelo Batista

15 O povo estava na expectativa e todos perguntavam no seu íntimo se João não seria o Messias.

A retidão de São João, considerado um verdadeiro luminar em meio à notória decadência moral, religiosa e política do povo eleito, produzia no fundo da alma de seus seguidores o bem-estar decorrente da sincera paz de consciência, e logo seu prestígio começou a aumentar. Afinal, uma voz desinteressada substituía, sem medo nem fraqueza, os erros dos poderosos. A opinião pública se inclinava, com facilidade, diante de um homem devorado pelo amor ao bem, e ele aparecia a seus olhos, cada vez mais, investido de uma autoridade vinda do próprio Deus.

Assim, não demorou muito para o povo israelita imaginar ser o Batista aquele Messias esperado pelas almas retas como a solução para a situação na qual viviam. Contribuía também para isso, entre outros fatores, o conhecimento geral de terem sido completadas as setenta semanas de anos da profecia de Daniel (cf. Dn 9, 24), a crescente insatisfação comum pelo domínio estrangeiro, ao qual se acrescentava a profecia sobre o cetro de Judá (cf. Gn 49, 10), e a vaga lembrança dos misteriosos acontecimentos ocorridos em Belém e Jerusalém, trinta anos antes.

Se João não fosse uma alma despretensiosa e cheia de desejo de restituir tudo a Deus, esse era o momento propício de se autoprojetar dentro das estruturas sociais judaicas da época, atribuindo a si uma aura de grandeza — a qual já possuía naturalmente perante todos — e atraindo as atenções para si mesmo, deixando de lado quem ele deveria anunciar. Se agisse desse modo não seria mais distinguido como meio, precursor ou profeta, mas como fim único e exclusivo. Muito pelo contrário, compenetrado da elevada missão a ele confiada pela Providência, a situação punha em realce sua ilibada humildade.

Sempre apontava para Aquele a quem precedia

16 Por isso, João declarou a todos: “Eu vos batizo com água, mas virá Aquele que é mais forte do que eu. Eu não sou digno de desamarrar a correia de suas sandálias. Ele vos batizará no Espírito Santo e no fogo”.

Aquela personalidade, tão impactante, conclamava todos para um batismo de conversão, simbolizado pela imersão nas águas do Jordão. Esse mesmo homem anunciava a vinda de alguém mais forte do que ele… Como seria isso possível?! Haveria alguém capaz de ultrapassar o próprio Batista, o inquietador das consciências, o ascético profeta?… É-nos fácil imaginar a interrogação surgida na mente das pessoas, ao pensar em alguém superior àquele que até consideravam como Messias.

Para frisar de forma mais acentuada esse contraste, porém, o Precursor recorre a uma figura de insuperável eloquência. Desamarrar a correia das sandálias era, naquele tempo, função dos menos qualificados entre os servos. O habitual meio de transporte daquela época era o próprio pé, protegido apenas pela exígua cobertura da sandália, exposto a sofrer todas as durezas e sujeiras dos caminhos. Ao chegar a qualquer lugar, era comum presenciar a cena de um escravo retirando o calçado de alguém para limpá-lo, enquanto os pés eram lavados e até perfumados. Tal imagem, presente no cotidiano de todos, é levantada por São João para ressaltar a infinita distância que o separava do verdadeiro Messias, professando em seu interior profundos sentimentos de total submissão e devoção, quase rezando: “‘Na realidade, eu não mereço contar-me entre o número de seus escravos — nem sequer entre os seus mais ínfimos escravos —, nem desempenhar a parte mais humilde de seu serviço’. Por isso ele não só falava simplesmente de sua sandália, mas da correia de sua sandália, o que parecia o último extremo a que se podia chegar”.9

Esse adorável Redentor, a quem o Batista precedia, deveria trazer, com toda propriedade, o verdadeiro Batismo, já não simbólico nem penitencial, mas transformante, pela ação do Espírito Santo. Com efeito, enquanto a água lava o corpo, a alma é purificada de seus pecados pela ação do Espírito, da mesma forma como, em contato com o fogo, derrete-se o ouro para separá-lo da ganga que o macula. É o que afirma Fillion: “Com isso, demonstrava João a máxima inferioridade de sua pessoa e de seu batismo. A água apenas lava o exterior, a face ou a superfície; o fogo do Espírito Santo penetra até o fundo dos corações para limpá-los. Somente o Batismo conferido em nome do Messias devia produzir a verdadeira remissão dos pecados”.10

O Messias vem trazendo o prêmio e o castigo

17 “Ele virá com a pá na mão: vai limpar sua eira e recolher o trigo no celeiro; mas a palha Ele a queimará no fogo que não se apaga”. 18 E ainda de muitos outros modos, João anunciava ao povo a Boa-nova.

O Evangelista procura destacar, nestes últimos versículos, a ideia de prêmio e de castigo, sempre presente nos anúncios feitos pelo Batista a respeito do futuro Messias, bem como a necessidade de mudança de vida. Com uma linguagem impactante para aquelas multidões, revelava João alguns dos divinos atributos do Salvador, com traços reconfortantes para uns e terríveis para outros. Para os que se assemelhassem ao bom grão, tais palavras teriam a suavidade de um bálsamo; mas, para os que a consciência acusava implacavelmente de ter a inutilidade da palha seca, a expectativa de sua chegada apresentava-se ameaçadora. Como diz São João Crisóstomo, “se permaneceis trigo puro, por mais que vos assalte a tentação, nenhum mal sofrereis por sua ação. Tampouco as rodas do trilho com seus dentes, na eira, cortam o trigo. Porém, se vierdes a cair na fraqueza da palha, não só sofrereis nesta vida males irremediáveis, ao serdes esmagados por todo o mundo, mas logo vos esperará um castigo eterno”.11

Mais uma vez, o Precursor deixava patente a necessidade da abertura das almas para uma constante e eficiente conversão da vida concreta de cada um, único caminho para a verdadeira felicidade. Alegria eterna ou tormento sem fim: eis a inevitável escolha daquelas multidões que acorriam ao encontro de São João, eis a terrível opção oferecida de modo tão evidente a nós, dois mil anos depois…

III – A alegria está ao nosso alcance

Ter sempre em vista a própria ressurreição, apesar de conhecer perfeitamente a desintegração dos corpos, depois de enterrados e transformados em poeira; ter uma esperança de, post mortem, entrar num convívio eterno com Deus, depois de ter recuperado o mesmo corpo em estado glorioso para no Céu gozar da felicidade eterna; aí está o que nos dá força e coragem. Então, por que correr atrás de alegrias onde elas não existem?

A insubstituível felicidade da boa consciência

Inúmeras vezes ignoramos ou nos esquecemos de que a perda da inocência batismal constitui o maior prejuízo da vida. Significa perder o maior tesouro a nós confiado pelas dadivosas mãos da Providência, pois, perdida esta inocência, logo as más inclinações se manifestam com mais veemência e é comum as quedas se sucederem, podendo inclusive chegar a alma à triste situação apontada por Nosso Senhor no Evangelho: “Todo homem que se entrega ao pecado, torna-se seu escravo” (Jo 8, 34).

Menino Jesus – Detalhe da Imagem de Maria Auxiliadora da Casa Monte Carmelo, Caieiras (SP)

De fato, quando cometemos a infelicidade de cair no pecado, estamos enganosamente à procura de alguma felicidade decorrente de um prazer, o qual julgamos ser infinito e eterno. Tal prazer, entretanto, é sempre fugaz e submerge nossa alma na frustração. Ó natureza débil! Corres atrás de um vazio pensando haver encontrado o Absoluto, vais à procura da alegria onde ela não se encontra! Com propriedade afirma Santo Agostinho: “Alegrar-se na injustiça, alegrar-se na torpeza, alegrar-se nas coisas vis e indecorosas… em tudo isso cifra o mundo sua alegria; em tudo isso que não existiria se o homem não quisesse. […] A alegria do século consiste na maldade impune. Entregar-se à dissolução dos homens, fornicar, divertir-se nos espetáculos, embriagar-se, manchar-se de torpezas sem nenhum contratempo: eis aqui a alegria do mundo. Mas Deus não pensa como o homem, e uns são os desígnios divinos, outros os humanos” 12

Na deliberação de abraçar o pecado nos afastamos da verdadeira e insubstituível alegria da boa consciência, que nenhuma fortuna, nenhum prazer carnal, nenhum orgulho satânico, nenhuma glória mundana pode oferecer. Se, algum dia, tivermos a desventura de manchar nossa inocência, procuremos logo readquirir um coração puro e um espírito firme (cf. Sl 50, 12), lavando e purificando a alma no Sacramento da Confissão. Quem nunca sentiu a consolação pela certeza de haver sido perdoado, ao sair de um confessionário, não conhece uma das maiores felicidades que nesta vida se pode experimentar. O gáudio de recuperarmos a inocência perdida vale mais do que tudo na face da Terra.

Alegria: o verdadeiro dinamismo interior

Concluindo, é preciso compreender que, mesmo nas piores situações, jamais podemos nos deixar abater; ao contrário, devemos estar sempre cheios de confiança. Deus, segundo o ensinamento maravilhoso apresentado no Evangelho da Liturgia de hoje, está continuamente à nossa disposição e ainda quis nos dar sua própria Mãe para nos acompanhar e atender. Sigamos, portanto, o conselho de Santo Agostinho: “‘alegrai-vos sempre no Senhor’, isto é, alegrai-vos na verdade, não na iniquidade; alegrai-vos na esperança da eternidade, não com as flores da vaidade. Alegrai-vos desse modo e em qualquer lugar, e em todo tempo lembrai-vos de que ‘o Senhor está próximo! Não vos inquieteis com coisa alguma’”.13

Sejamos alegres até em meio às piores tragédias, pois a alegria manterá em nós o dinamismo e a força necessária para praticar a virtude. Dessa forma, o Menino Jesus encontrará nossas almas prontas para recebê-Lo no supremo momento em que nascerá misticamente na Sagrada Liturgia e em nosso coração.

 

Notas

1 HOLZNER, Josef. Paulo de Tarso. São Paulo: Quadrante, 1994, p.558.
2 MALDONADO, SJ, Juan de. Comentarios a los Cuatro Evangelios. Evangelios de San Marcos y San Lucas. Madrid: BAC, 1951, v.II, p.451.
3 Idem, p.452.
4 Cf. TUYA, OP, Manuel de. Biblia Comentada. Evangelios. Madrid: BAC, 1964, v.V, p.786.
5 GOMÁ Y TOMÁS, Isidro. El Evangelio explicado. Introducción, Infancia y vida oculta de Jesús. Preparación de su ministerio público. Barcelona: Rafael Casulleras, 1930, v.I, p.409.
6 Idem, ibidem.
7 SANTO AGOSTINHO. Sermo CCCII, n.15. In: Obras. Madrid: BAC, 1984, v.XXV, p.413.
8 NOCENT, Adrien. El Año Litúrgico: celebrar a Jesucristo. Introducción y Adviento. Santander: Sal Terræ, 1979, v.I, p.131.
9 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO. Homilía XI, n.4. In: Obras. Homilías sobre el Evangelio de San Mateo (1-45). 2.ed. Madrid: BAC, 2007, v.I, p.207.
10 FILLION, Louis-Claude. Nuestro Señor Jesucristo según los Evangelios. Madrid: Edibesa, 2000, p.100.
11 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, op. cit., n.5, p.212.
12 SANTO AGOSTINHO. Sermo CLXXI, n.4. In: Obras. Madrid: BAC, 1958, v.VII, p.147.
13 Idem, n.5, p.148-149.

 

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Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP, é fundador dos Arautos do Evangelho.

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