O que é mais importante: amar a Deus ou conhecê-Lo? A inteligência basta para nos salvar? Ou, pelo contrário, o amor exclui a aplicação da inteligência?
Evangelho do XXXI Domingo do Tempo Comum
Naquele tempo, 28b um mestre da Lei aproximou-se de Jesus e perguntou: “Qual é o primeiro de todos os Mandamentos?” 29 Jesus respondeu: “O primeiro é este: Ouve, ó Israel! O Senhor nosso Deus é o único Senhor. 30 Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e com toda a tua força! 31 O segundo Mandamento é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo! Não existe outro Mandamento maior do que estes”. 32 O mestre da Lei disse a Jesus: “Muito bem, Mestre! Na verdade, é como disseste: Ele é o único Deus e não existe outro além d’Ele. 33 Amá-Lo de todo o coração, de toda a mente, e com toda a força, e amar o próximo como a si mesmo é melhor do que todos os holocaustos e sacrifícios”.
34 Jesus viu que ele tinha respondido com inteligência, e disse: “Tu não estás longe do Reino de Deus”. E ninguém mais tinha coragem de fazer perguntas a Jesus (Mc 12, 28b-34).
I – Criados para amar
O Santo Cura d’Ars, apresentado pela Igreja como modelo dos sacerdotes, retornando em certa ocasião do povoado francês de Savigneux, começou a chorar… Algum tempo depois, revelou ele num sermão o motivo do seu pranto: “Eu voltava de Savigneux. Os passarinhos cantavam no bosque, e eu me pus a chorar. Pobres animaizinhos, pensava eu, Deus vos criou para cantar e vós cantais… O homem que foi feito para amar a Deus não O ama!” 1
Grande parte da vida de São João Maria Batista Vianney transcorreu no século XIX, cujas circunstâncias históricas tornam compreensível a sua tristeza. Mas se ele estivesse hoje entre nós, talvez não conseguisse enxugar uma lágrima sem derramar outra, porque, muito mais que naquela época, os homens de nossos dias não amam a Deus. Entretanto, nisto consiste o Primeiro Mandamento, o qual resume todos os demais, como Nosso Senhor Jesus Cristo nos ensina no 31º Domingo do Tempo Comum.
II – O Primeiro Mandamento
De acordo com a narração dos sinópticos, as contendas entre o Divino Mestre e seus inimigos atingiram o auge nas vésperas da Paixão. São Marcos relata a sequência de invectivas movidas pelos príncipes dos sacerdotes, escribas e anciãos, fariseus e herodianos, e finalmente pelos saduceus (cf. Mc 11, 27–12, 27). Estes últimos, que não admitiam a ressurreição dos mortos, indagaram com quem deveria ficar, post mortem, aquela que fora esposa de sete maridos. A resposta de Jesus mostrou o erro em que incorriam, por negarem a ressurreição e por considerarem a vida futura de modo materialista. A despeito do ódio que os fariseus nutriam por Cristo, causou-lhes não pequena satisfação comprovar como Ele deixara seus interlocutores de lábios amarrados, pois a ressurreição era um dos pontos de divergência entre ambas as seitas.
Boa intenção tisnada pela vaidade humana?
Naquele tempo, 28b um mestre da Lei aproximou-se de Jesus e perguntou: “Qual é o primeiro de todos os Mandamentos?”
Concebe-se, no contexto acima referido, a atitude deste doutor da Lei – também fariseu (cf. Mt 22, 34-35a) –, que veio ter com Nosso Senhor demonstrando, segundo a descrição de São Marcos, certa retidão de espírito e boas intenções. O real motivo de sua pergunta, no entanto, é discutível: euforia incontida pela vitória de Jesus? Desejo de chamar a atenção sobre si e de competir com Ele por pura vanglória, ostentando seus conhecimentos da Escritura? São Mateus atesta ter interrogado o Mestre “para pô-Lo à prova” (Mt 22, 35b), expressão que “nem sempre há de ser interpretada em mau sentido, já que o verbo pode significar, por exemplo, provar para saber”. 2
Uma Lei eterna
29 Jesus respondeu: “O primeiro é este: Ouve, ó Israel! O Senhor nosso Deus é o único Senhor. 30 Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e com toda a tua força!”
Jesus Cristo responde de forma muito direta e amável, propondo logo de início o Primeiro Mandamento, tal como era entendido pelo povo judeu, ou seja, um ponto pacífico e incontestável: Deus deve ser amado sobre todas as coisas.
Trata-se de um preceito entregue no Monte Sinai a Moisés, quem o transmitiu ao povo, como narra a primeira leitura (Dt 6, 2-6) deste domingo; sua origem, porém, é eterna, pois existe no seio da Santíssima Trindade, desde antes da criação do mundo. O Pai e o Filho, ao Se contemplarem mutuamente, amam-Se com um amor tão rico e tão fecundo que d’Eles procede uma Terceira Pessoa, igual a ambos: o Espírito Santo. Pela benevolência divina, esta Lei foi ampliada, abarcando não só os passarinhos que, cantando, comoveram o Cura d’Ars, mas também a nós, homens. “Amamos, porque Deus nos amou primeiro” (I Jo 4, 19). Sim, nossa caridade não é mais que uma restituição pelos favores sem conta que de sua bondade recebemos. Como Criador, Ele nos deu o ser, nos mantém e nos manterá para sempre; como Redentor, nos salvou, encarnando-Se e sofrendo os tormentos da Paixão; como Pai, quis introduzir em nós a vida divina, “para que sejamos chamados filhos de Deus” (I Jo 3, 1). Ele é a nossa bem-aventurança! O Bem por excelência, o Bem substancial, o Bem em essência é Deus. É, portanto, na adesão total a Ele, pela prática deste Mandamento – e não nos gozos terrenos e fragmentários – que encontramos a plena felicidade.
Um “único Senhor”
Se Deus é “o único Senhor”, não nos é permitido ter outro além d’Ele. Sem embargo, quem se apega a uma criatura – seja ela uma caneta, um travesseiro, uma pessoa… – constitui um outro senhor que não o Deus verdadeiro, “pois o homem é feito escravo daquele que o venceu” (II Pd 2, 19). Isto representa uma falta contra o Primeiro Mandamento da Lei de Deus a ser declinada no confessionário. De fato, tal preceito viola-se com mais facilidade do que se imagina: basta amar algo com maior intensidade do que a Deus! Quantos sabem a fundo o que é amar a Deus sobre todas as coisas? Não existe atividade humana que possa ser realizada sem visar esta Lei.
“De todo o teu coração, de toda a tua alma”
Afirma São João da Cruz que “Deus não infunde sua graça e seu amor senão de acordo com a vontade e o amor da alma”. 3 Por isso é preciso amá-Lo de todo o coração – e não apenas com uma parcela! –, colocando-O no cerne de nossas atenções, de nosso fervor, de nosso entusiasmo e de nossas preocupações. “A expressão ‘de todo’ não admite nenhuma divisão em partes. Aquilo que de teu amor empregares nas coisas inferiores é o que te faltará com relação ao ‘todo’”, 4 comenta São Basílio Magno.
Na linguagem corrente o coração simboliza o amor. Dentre os órgãos humanos ele é o mais sensível às emoções e constitui a fonte de onde brota a caridade. O Apóstolo de Roma, São Filipe Néri, certa ocasião em que rezava percebeu ser penetrado por uma esfera de fogo que lhe produziu no peito uma proeminência do tamanho de um punho, a qual se manteve no restante de sua vida e, segundo revelaria sua autópsia, partiu-lhe duas costelas. Seu coração foi invadido por um amor a Deus de tal modo impetuoso que, com frequência, o Santo era obrigado a se descobrir para não ser consumido pelo ardor que o abrasava, receando morrer de gozo. Muitos contemporâneos atestam ter notado este calor e até ouvido as fortes palpitações que dele partiam. 5 Tão particular dom místico é bem o sinal do arrebatado amor que todo cristão há de abrigar em seu coração. Tal amor deve ser ao mesmo tempo afetivo, ou seja, um ato da vontade que tende a Deus de maneira direta e imediata, e efetivo, refletindo-se no exercício das virtudes cristãs e na obediência aos Mandamentos, como ensinou o Divino Mestre: “Se alguém Me ama, guardará a minha palavra” (Jo 14, 23). Em sentido oposto, São João Evangelista é categórico ao declarar: “Se alguém ama o mundo, não está nele o amor do Pai” (I Jo 2, 15). Por conseguinte, amar “de todo o coração” significa desprender-se de qualquer apreço egoísta e ter as intenções voltadas com exclusividade para Deus, fazendo tudo por Ele e para Ele. Assim será o nosso amor no Céu, onde veremos a Deus face a face e estaremos absortos em sua infinita grandeza.
Como amá-Lo, ainda, de toda a alma? Sabemos que a alma possui várias faculdades – tais como inteligência, vontade, memória – com as quais podemos nos dirigir a Deus. Para praticar a caridade é indispensável manter nossa alma sempre em estado de graça, afastando-nos daquilo que possa nos induzir a romper com Deus, isto é, permanecendo vigilantes, a fim de evitar as ocasiões de pecado. Precisamos, ademais, criar ao nosso redor um clima sobrenatural propício a que estas potências, divinizadas pelas virtudes e pelos dons do Espírito Santo, se desenvolvam e nos unamos cada vez mais a Deus.
“De todo o teu entendimento e com toda a tua força”
São Tomás de Aquino6 explica que o entendimento é a potência que nos faculta o conhecimento da verdade. Ora, sendo Deus a Verdade Absoluta, a finalidade do entendimento é conhecer a Deus tanto quanto seja possível neste mundo, com vistas à eternidade, conforme a afirmação de Nosso Senhor: “A vida eterna consiste em que conheçam a Ti, um só Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo que enviaste” (Jo 17, 3). Por este prisma, a fé e o entendimento se harmonizam sem qualquer dicotomia. Enquanto a inteligência dá o sustento racional para aderir ao objeto da fé, esta sublima aquela, fazendo-a voar como uma águia. Deste modo, a razão iluminada pela virtude da fé é um instrumento para crescermos na caridade e nos prepararmos para contemplar a Deus em sua própria luz no Céu, onde a fé se mudará em visão. Difícil será encontrar um melhor modelo disto do que o mesmo Doutor Angélico. Sem nunca se ensoberbecer, ele empregou sua inteligência – talvez a mais luminosa que os séculos contemplaram – na constante procura daquela Verdade em essência, fim único de sua vasta obra, merecendo de um Papa o seguinte elogio: “Sua doutrina não pôde existir sem um milagre”. 7 E essa genialidade intelectual não lhe foi obstáculo para conservar íntegra a inocência batismal, a ponto de o sacerdote que o atendeu em Confissão geral no leito de morte declarar tê-lo achado “tão puro quanto um menino de cinco anos”. 8
E qual é a força com que nos é exigido amar? A resposta nos é dada pelo Divino Redentor: “Como o Pai Me ama, assim também Eu Vos amo” (Jo 15, 9). Se Ele nos amou até o extremo (cf. Jo 13, 1) e esta é a medida de seu amor, reciprocamente o nosso deve ser sem medida, como ensina São Bernardo. 9 O amor autêntico e puro existe quando aquele que ama retribui na proporção do amor recebido. Não nos basta alcançar um determinado grau de caridade e nele permanecermos estagnados; nossa meta há de ser a indicada por São Paulo: “Que a vossa caridade se enriqueça cada vez mais” (Fl 1, 9).
A primazia do amor a Deus
Apesar de sua importância, este Mandamento costuma ser silenciado e relegado ao esquecimento. Propaga-se e difunde-se a ideia de que o preceito mais excelso e superior a todos é o amor ao próximo… Contudo, o do amor a Deus é, sem dúvida, o mais elevado, e os outros decorrem dele. Por isso, é mister construir a nossa vida em função dele, cuidando de que os nossos afazeres nunca se sobreponham ao amor a Deus, mas nos auxiliem a melhor servir e louvar Aquele que nos redimiu, por nós derramando seu Sangue. Qualquer esforço, portanto, que não esteja dominado por este propósito, mesmo no campo do apostolado, será vão. Santo Antônio Maria Claret10 comparava o amor a Deus com a pólvora que impulsiona a bala de um fuzil para atingir seu objetivo. Sem esta, inútil é o projétil. Também, pouco ou nenhum fruto terão doutas palavras se não saírem de um coração abrasado. “No entardecer desta vida” – diz São João da Cruz – “sereis julgados segundo o amor”. 11 Com efeito, no dia do Juízo o Senhor nos perguntará: “O que amaste? Se foi a Mim, o meu Reino te está reservado; se o contrário de Mim, espera-te o inferno”. Em suma, tudo se reduz à caridade. Desde que a pratiquemos com perfeição, ou pelo menos, a despeito de nossas misérias, haja empenho de nossa parte, Deus nos tratará com especial benevolência.
III – O segundo Mandamento
Ao término de cada dia da criação, Deus viu que sua obra era boa e, no sétimo, ao contemplar a sua totalidade concluiu que era ótima. Esta distinção mostra quanto o conjunto Lhe dá mais alegria do que uma pessoa considerada individualmente. Sua intenção ao criar o homem não foi torná-lo anacoreta do deserto – salvo raras exceções –, mas fazê-lo viver em sociedade, como se depreende das palavras do Gênesis: “Não é bom que o homem esteja só” (2, 18).
Por tal razão, ao indicar o maior dos Mandamentos, Jesus Cristo não separa o amor a Deus do amor ao próximo: “Estes dois Mandamentos estão vinculados um ao outro e podem intercambiar-se entre si: quem ama a Deus ama as suas obras. A principal obra feita por Ele é o homem: em consequência, quem ama a Deus deve amar todos os homens”. 12 O amor a Deus nunca será verdadeiro se não se desdobrar em amor ao próximo, como afirma São João: “Aquele que não ama seu irmão, a quem vê, é incapaz de amar a Deus, a quem não vê” (I Jo 4, 20). O Salvador conjuga estes amores para mostrar como eles constituem o que há de mais alto na Lei divina.
Quem era o próximo para um israelita?
31 “O segundo Mandamento é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo! Não existe outro Mandamento maior do que estes”.
Embora o Mestre fizesse referência a uma conhecida passagem da Lei (cf. Lv 19, 18), o fato de atribuir tal importância ao amor ao próximo soava como uma novidade. Para seus ouvintes esta segunda parte não sintetizava os demais Mandamentos tão bem quanto a primeira, porque o relacionamento humano era compreendido pelo povo eleito segundo critérios muito restritivos. Uma das dificuldades estava no conceito de próximo, como se pode perceber pela pergunta de outro doutor da Lei, a quem Jesus respondeu contando a parábola do bom samaritano (cf. Lc 10, 25-37).
Havia entre os judeus um equívoco no modo de considerar o próximo, cuja origem remonta ao tempo de sua chegada à Terra Prometida. Antes de introduzir o povo em Canaã, Deus fizera um pacto com Moisés, ordenando que expulsassem todos os pagãos que ali habitavam e proibindo-os de estabelecer qualquer tipo de aliança com eles (cf. Nm 33, 50-56). Aconteceu, contudo, que ao perceberem os benefícios materiais que podiam auferir dos ocupantes daquela região, quebraram o juramento e se uniram aos idólatras (cf. Jz 1, 27-35). Como castigo, um Anjo reuniu os hebreus num local chamado Boquim – que quer dizer “os que choram” – e anunciou que seriam escravizados por aqueles mesmos povos (cf. Jz 2, 1-5).
Tudo isso concorreu para a formação entre os israelitas de uma ideia muito restrita de quem era o próximo: somente os filhos da nação eleita. Já os estrangeiros eram tidos como criaturas destinadas ao inferno, a não ser que assimilassem a Religião de Israel e se submetessem a seus rituais. Apenas neste caso seriam admitidos, todavia com reservas, como os mais distantes dentre os próximos.
Um Mandamento antigo, com uma visualização nova
Jesus universalizava a noção de próximo com algo inédito que não abolia a legislação em vigor – com tanta frequência inobservada –, mas a completava e levava à perfeição. Perante aqueles homens de costumes bárbaros, cujo trato se baseava numa catarata de desprezo, Ele apontava para uma medida de amor muitíssimo superior à da Lei Mosaica, como mais tarde ainda anunciaria: “Dou-vos um novo Mandamento: Amai-vos uns aos outros. Como Eu vos tenho amado, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros” (Jo 13, 34). Amor este que só é possível com o auxílio da graça, não pelo esforço humano. Cumpre, pois, dar, dar de si, dar-se por inteiro e, se necessário for, entregar a vida à imitação de Nosso Senhor Jesus Cristo, para que nosso irmão receba todos os benefícios da Redenção e se salve. É uma perspectiva nova não só para a época de Nosso Senhor, como também para nós que, embora nascidos no regime da graça, fomos concebidos no pecado original e temos a tendência de delimitar o nosso amor segundo os critérios da Lei Antiga.
Entre os inúmeros episódios da História da Igreja que tornam patente este princípio, é muito eloquente o do presbítero Saprício, no século III. Prestes a obter a coroa do martírio, durante a violenta perseguição de Valeriano, recusava-se ele uma e outra vez a perdoar seu discípulo Nicéforo, com quem se desentendera gravemente algum tempo antes. Por fim, com a cabeça já no cepo para ser cortada pelo carrasco, o orgulho foi mais forte e Saprício renegou a Fé, para queimar incenso aos ídolos, enquanto São Nicéforo era sacrificado em seu lugar. 13 De nada serviu, na hora suprema, um pretenso amor a Deus para quem fechara seu coração diante do irmão que implorava com humildade a reconciliação.
O exemplo de Cristo: amor ao Pai e amor a nós
À luz da declaração do Divino Mestre e de casos como o precedente podemos compreender a verticalidade e a horizontalidade da lei do amor. Por este prisma, a Santa Cruz é a figura que sintetiza a lição desta Liturgia. A Cruz é composta de uma trave vertical, representando as potências de nossa alma concentradas em Deus, acima de todas as coisas, e outra horizontal, símbolo do amor ao próximo como a nós mesmos – prolongamento do amor a Deus – e do chamado a sacralizar a sociedade, com vistas à realização do pedido há dois mil anos reiterado pela Igreja militante: “Venha a nós o vosso Reino, seja feita a vossa vontade, assim na terra como no Céu” (Mt 6, 10).
IV – Entendia que devia amar, mas… amava?
32 O mestre da Lei disse a Jesus: “Muito bem, Mestre! Na verdade, é como disseste: Ele é o único Deus e não existe outro além d’Ele. 33 Amá-Lo de todo o coração, de toda a mente, e com toda a força, e amar o próximo como a si mesmo é melhor do que todos os holocaustos e sacrifícios”.
A exclamação do legista denota seu interesse e boa vontade em aceitar os ensinamentos de Cristo, bem como seu assombro pela resposta, pois ele não saberia interpretar este preceito mosaico com tal precisão. Ele repete o que Nosso Senhor tinha dito, e acrescenta que amar a Deus e ao próximo “é melhor do que todos os holocaustos”. Como afirma São Beda, “professava manifestamente a doutrina própria do Novo Testamento e da perfeição evangélica”, 14 defendendo uma autêntica tese cristã, inimaginável face à mentalidade e aos costumes dos fariseus. Com efeito, eles mentiam, roubavam, cometiam qualquer espécie de crimes e julgavam que o oferecimento de uma vítima era suficiente para limpar estas faltas, porque o sacrifício sobrepujava todos os demais atos. Neste sentido, o mestre da Lei dera um grande passo, mas ainda devia dar outro mais importante.
A inteligência nos deixa às portas do Reino de Deus
34a Jesus viu que ele tinha respondido com inteligência, e disse: “Tu não estás longe do Reino de Deus”.
As palavras de Cristo são pesadas, contadas e medidas, objetivas e com um significado exato. Ele não disse que havia chegado ao Reino de Deus, e sim que o escriba estava perto dele. Este respondera “com inteligência”, porque era capaz de discorrer sobre o Primeiro Mandamento com facilidade, tendo muito clara toda a teoria a respeito, mas carecia de espírito sobrenatural. A boa doutrina, de fato, é uma ajuda preciosa – de um valor absoluto enquanto fundamentada na Palavra de Deus – e não pode ser desprezada. No entanto, não é suficiente conhecê-la… E sempre que os homens se baseiam no simples raciocínio e não procuram a sabedoria oriunda do amor puro e íntegro, surgem as heresias.
A inteligência, portanto, não bastou ao mestre da Lei; suas capacidades naturais haviam alcançado o limite máximo. O que lhe faltava? A virtude da caridade aperfeiçoada pelo dom de sabedoria. Pois adquirir vastos conhecimentos pela reta aplicação da inteligência é algo excelente, que nos aproxima do Reino dos Céus; não obstante, nele só entra quem ama e vive aquilo que aprendeu, como prescreve o Mandamento citado de cor pelo fariseu. Quando, durante uma pregação, anunciaram a Jesus que sua Mãe e seus irmãos estavam do lado de fora e desejavam vê-Lo, Ele respondeu: “Minha mãe e meus irmãos são estes, que ouvem a Palavra de Deus e a observam” (Lc 8, 21).
Aquele mestre da Lei era convidado, então, a abandonar os conceitos farisaicos e a aceitar Nosso Senhor Jesus Cristo como sendo a personificação da Lei e o cumprimento das profecias, reconhecendo-O como seu Criador e Redentor, o próprio Deus Encarnado. A aplicação concreta que faltava àquele homem era dizer com fé: “Eu devo amar-Vos, Senhor, com toda a minha inteligência, com toda a força da minha vontade, com toda a minha sensibilidade. E se Vós ensinais que devo amar o meu próximo como a mim mesmo, minha obrigação é Vos amar muito mais do que a mim mesmo e servir-Vos”. Agindo assim, ele falaria não só com a inteligência, mas com o coração, praticaria o Primeiro Mandamento e estaria na posse do Reino.
Nosso Senhor faz calar seus adversários
34b E ninguém mais tinha coragem de fazer perguntas a Jesus.
Este diálogo encerra a sequência de discussões recolhidas por São Marcos, das quais Jesus saiu vitorioso sobre todos os seus adversários. Eles comprovaram que o Divino Mestre era imbatível e se convenceram de que só por outros meios conseguiriam atingir o objetivo de silenciá-Lo. “Depois de terem sido refutados não perguntam mais, mas prendem-No atrevidamente e entregam-No ao poder romano”, 15 conclui São Beda.
V – Conhecer ou amar?
São Tomás16 demonstra que a inteligência e a vontade têm movimentos contrários: enquanto a primeira traz a si o objeto conhecido, a segunda voa rumo à coisa amada. Ao entendermos algo inferior a nós mesmos, conferimos-lhe um valor maior do que na realidade tem. Por exemplo, quando analisamos uma joaninha e notamos as relações existentes entre ela, a ordem do universo e Deus, e desenvolvemos uma filosofia a respeito dela, atribuindo-lhe qualidades que, absolutamente falando, talvez não possua, a joaninha se enriquece em nossa mente. Em sentido oposto, ao tentar compreender o que, de si, é superior a nós – um santo varão, um personagem repleto de sabedoria… –, acabamos por diminuí-lo, de maneira a caber em nosso intelecto.
Como a vontade, por sua vez, realiza a trajetória inversa e se inclina até o objeto tal qual ele é, tratando-se de algo menor do que nós, ela se empobrece; porém, face ao que é mais elevado, ela se dilata. Sobretudo se amamos a Nossa Senhora e a Deus, nossa vontade assume proporções extraordinárias. Eis o segredo da força dos grandes homens, capazes de sublimes atos de heroísmo: eles amam verdadeiramente.
O amor é mais importante, mas não desdenhemos a inteligência
Conhecimento e amor! Duas asas que precisam estar bem ajustadas e cultivadas para alçarmos voo no firmamento da santidade. De acordo com as regras do paraquedismo, na queda livre é indispensável manter os braços abertos e firmes, a fim de se obter estabilidade, pois basta fechar um dos dois membros para o corpo rodopiar e perder o equilíbrio. Tal é o que acontece na vida espiritual quando tentamos voar com apenas uma asa.
Todos nós temos obrigação de estudar e levar a inteligência até onde ela alcança, segundo a medida de cada um. Este empenho, entretanto, tem de ser acompanhado por um amor a Deus de todo o coração, de toda a alma, de toda a mente e com toda a força, adequando a vida à doutrina aprendida e procurando ao máximo exercitar-nos na virtude. Para um católico, os Mandamentos são como uma escada rolante, cujos dez degraus o conduzem à perfeição, com amor. Ora, isto só é possível com o impulso da graça, com a assistência de Nosso Senhor Jesus Cristo e em união com Maria Santíssima. N’Eles está a nossa força, n’Eles devemos pôr a nossa segurança, n’Eles encontraremos os elementos e o equilíbrio necessário para entender e para amar. Tenhamos uma correspondência cheia de luz e de substância para dar a Eles toda a glória, a honra e o louvor que merecem! ◊