Acompanhar o desenvolvimento de instituições ou de costumes sempre foi um meio eficaz e saudável de crescer no amor a eles. O pragmatismo, porém – grande dominador de nosso século –, habituou-nos a contemplar as coisas apenas como aparentam aos nossos olhos, fixar a atenção em suas utilidades imediatas e esquecer os valores muitas vezes imensos que estão por trás delas. Um dos exemplos mais ilustrativos nesse sentido são os livros.
Livros, os há aos milhares. Vendem-se, leem-se, esquecem-se… Seu fim é em geral o fundo embolorado de uma biblioteca ou, na melhor das hipóteses, a estante de um colecionador. Contudo, quanto esforço houve para a elaboração de cada um! E essa realidade, válida para os exemplares antigos e os novos, os famosos ou os pouco conhecidos, aplica-se – sobretudo! – à Obra das obras, o Livro escrito e inspirado pelo próprio Deus: a Sagrada Escritura.
Conhecer a trajetória da Sagrada Escritura, Livro que tem por autor o próprio Deus, nos fará percorrer suas páginas com outro olhar
Hoje, quem quiser ter uma Bíblia pode comprá-la por um valor muitas vezes irrisório. Há bíblias grandes, pequenas, ilustradas, bilíngues… enfim, para todos os gostos. Mas se, ao folhear suas páginas, remontarmos ao seu Autor e aos seus “escrivães”, que desde tempos remotos trabalharam para transmitir à posteridade as maravilhas do Senhor, perceberemos quantas dificuldades precisaram ser superadas para que os numerosos exemplares de que dispomos tivessem sua atual configuração.
Pois bem, um vol d’oiseau sobre a maravilhosa trajetória deste Livro certamente nos fará percorrer suas páginas com outro olhar.
De “régua” a “regra de vida”
Para compreender essa intrincada história será necessário que, ao longo de todo o artigo, os nossos leitores se familiarizem com alguns termos pouco conhecidos. O primeiro deles é cânon, pois os livros da Bíblia estão catalogados no chamado cânon da Sagrada Escritura.
O vocábulo tem raízes semíticas, apesar de o herdarmos dos gregos: κανον, kanōn proveio da palavra hebraica qaneh, que em tempos imemoriais designava uma cana utilizada para medir, como menciona o profeta Ezequiel (cf. Ez 40, 3-5), mas que, em sentido derivado, foi aplicada a tudo aquilo que se mensurava ou regulava.
Gramáticos gregos da Antiguidade chamaram κανον às coleções de obras clássicas que podiam servir de modelos literários, e no grego profano o termo adquiriu também o significado de norma ou regra moral, tendo inclusive quem o aplicasse de modo metafórico àqueles que se estabeleciam como exemplos de conduta. Em algum ponto da História o vocábulo grego foi transliterado para o latim, originando a palavra canon.1
Na Escritura Sagrada, o pioneiro a utilizar o termo na acepção de regra moral muito provavelmente foi São Paulo. O Apóstolo das Gentes o consignou em suas cartas, escrevendo, por exemplo, aos gálatas: “A todos que seguirem esta regra, paz e a misericórdia, assim como ao Israel de Deus” (6, 16). As epístolas paulinas se tornaram desde de então regras de vida para os cristãos; porém, ainda transcorreriam séculos antes de que formassem parte oficial do cânon bíblico…
Mas não nos adiantemos no tempo. Voltemos ao Antigo Testamento.
Início das divergências entre cristãos e judeus
Vários dos livros pré-messiânicos aceitos como o cânon do Antigo Testamento foram recusados pelo povo judeu entre os séculos I e II d.C.
Os livros pré-messiânicos, escritos por ordem de Deus e compilados com zelo admirável pelo povo eleito, constituíram a primeira fonte de inspiração para os cristãos das comunidades nascidas do Calvário.2 O Divino Mestre tinha dado provas eminentes de conhecimento escriturístico e seus Apóstolos continuariam orando com os Salmos, meditando nos preceitos divinos confiados a Moisés e conferindo o cumprimento de todas as profecias com o Pentateuco e outras obras sagradas. Todos esses livros já eram aceitos como o cânon do Antigo Testamento desde meados do século I.
Contudo, se o leitor quiser comparar o nosso Antigo Testamento com a escritura judaica atual, encontrará várias divergências… Por que razão?
A explicação encontra-se entre o fim do século primeiro e o início do segundo da era cristã. Um grande abismo já separava a velha Sinagoga da nascente Igreja Católica quando, reunidos em Jâmnia, rabinos eminentes, fariseus e sacerdotes do povo judeu definiram quais livros aceitariam como sagrados e quais não. Afinal, dos numerosos escritos que circulavam, eles aprovaram apenas vinte e três, e eliminaram, entre outros, o Livro do Eclesiástico, o da Sabedoria, o de Baruc, o de Judite, o de Tobias, os dois Livros dos Macabeus – estes últimos porque seus protagonistas não lhes eram afins do ponto de vista político – e os trechos gregos de Ester e Daniel – por ser este idioma considerado pagão.3

Outros livros, porém, antes mesmo dessa decisão da assembleia judaica já haviam desaparecido misteriosamente. É o caso, por exemplo, do Livro do Justo, mencionado em Josué (10, 13) e no Segundo Livro de Samuel (1, 18); do Livro das Guerras do Senhor, que consta em Números (21, 14); do Livro de Jeremias contra toda a maldade de Babilônia, citado em Jeremias (51, 60) e muitos outros… O que terá sido destes escritos? O que diziam? Quiçá nunca saberemos. O certo é que o cânon do Antigo Testamento mantido pelos cristãos passou a ser diferente daquele defendido pelos judeus, como diferentes seriam para sempre o judaísmo e a religião cristã.
Surge o Novo Testamento
Enquanto isso acontecia, o cânon do Novo Testamento começava a nascer.
Os Evangelhos foram escritos até o fim do século I, assim como os Atos dos Apóstolos, o Apocalipse e as Epístolas de Pedro, Tiago, João, Paulo e Judas. Estas missivas, endereçadas a destinatários específicos, mas divulgadas pelas nascentes comunidades de modo orgânico, fizeram seu caminho rumo ao que conhecemos hoje como o Novo Testamento.
Entretanto, não pense o leitor que o processo foi simples. Houve acirradas discussões em torno da veracidade de alguns escritos, traduções que tornaram obscuras certas passagens, mutilações inexplicáveis, epístolas que se perderam para sempre e até trechos falsificados com o fim de desviar os fiéis da verdadeira fé ou “embelezar” um pouco mais a história do Divino Mestre e de seus Apóstolos – de si já insuperável…
Tanto quanto nos permita a brevidade deste artigo, consideraremos alguns pormenores desse processo.
Discordâncias entre os cristãos
As polêmicas referentes ao cânon bíblico uniram e separaram, ao longo dos séculos, partidários das diversas teorias, que se digladiaram para comprovar suas posições num verdadeiro “campo minado”, em que nem sequer os Santos estiveram isentos de erro.
O ponto de partida das discordâncias foi a tradução.4 Enquanto alguns – seguindo a escola rabínica – aceitavam somente os textos escritos em hebraico ou aramaico, a maioria das comunidades defendia a Versão dos Setenta, escrita em grego. Os do primeiro grupo contaram com nomes ilustres: São Jerônimo, Orígenes, Rufino. Contudo, os paladinos da versão grega não ficaram para trás: entre eles estavam Santo Agostinho, Santo Irineu, Tertuliano. Em terreno neutro, mas sustentando concepções ainda muito imprecisas, figuraram alguns como Santo Atanásio, São Cirilo de Jerusalém, São Gregório Nazianzeno e Santo Epifânio.
Para definir o cânon bíblico, foi necessário enfrentar polêmicas, combater hereges, discernir entre textos revelados e escritos apócrifos
Para toldar ainda mais o nebuloso panorama também apareceram em cena os hereges, gnósticos de todas as espécies, como Marcião que, negando a origem divina do Antigo Testamento, aceitava apenas o Evangelho de São Lucas – coalhado de supressões! – e algumas epístolas de São Paulo; e Montano que, arvorando-se em “profeta” do Novo Testamento, tentou introduzir no cânon da Bíblia suas próprias “profecias”.5
Coroando essa celeuma, começaram a pulular por toda a parte livros apócrifos – da palavra grega απόκρυφος, apokryphos, escondido –, termo que de início designava “escritos ocultos” e depois foi aplicado também aos vários textos de estilo bíblico que, apresentados como inspirados, eram na realidade obra de falsificadores, alguns piedosos até, outros muitas vezes heréticos. A multiplicação dessas composições concorreu largamente para disseminar a dúvida entre os fiéis, que não sabiam distinguir o falso do verdadeiro.

Foi necessário, então, que o Magistério da Igreja se pronunciasse de modo oficial a fim de esclarecer quais textos eram de fato revelados e quais eram espúrios.
A sábia intervenção da Igreja
Para esse delicado procedimento de seleção, a Santa Igreja precisou discernir nos escritos dos homens a voz do Senhor. “A inspiração bíblica é uma ação sobrenatural de Deus, ao mesmo tempo discreta e profunda, que respeita plenamente a personalidade dos autores humanos – pois Deus não mutila o homem que Ele mesmo fez – mas o eleva acima de si mesmo, já que é capaz de fazê-lo. Assim, os livros nascidos da atividade desses autores não são apenas humanos, mas divinos; eles não expressam apenas um pensamento humano, mas o pensamento de Deus. E, no entanto, eles estão enraizados na natureza humana: neles tudo é do homem e tudo é de Deus”.6
Na análise dos diversos textos foram utilizados três critérios, que podem ser catalogados em externos, internos e eclesiais.

Por critérios externos entende-se a necessidade de que o texto provenha dos tempos apostólicos, seja ortodoxo – tanto eclesiástica como doutrinariamente –, possua concordância e unidade em sua mensagem, e seja instrutivo para a comunidade.
Os critérios eclesiais consistem em que o escrito seja aceito por um grande número de igrejas particulares antigas, e que as autoridades eclesiásticas oficiais o tenham reconhecido e citado como Escritura. O papel da Tradição foi, portanto, vital nesse sentido: “A Sagrada Escritura é a Palavra de Deus enquanto foi escrita por inspiração do Espírito Santo; a Sagrada Tradição, por sua vez, transmite integralmente aos sucessores dos Apóstolos a Palavra de Deus confiada por Cristo Senhor e pelo Espírito Santo aos Apóstolos, para que eles, com a luz do Espírito de verdade, a conservem, a exponham e a difundam fielmente na sua pregação”.7
Já os critérios internos são os mais importantes, pois visam reconhecer a inspiração do texto. Sobre esta característica apenas a Santa Igreja tem múnus para julgar, uma vez que só ela pode discernir infalivelmente quando um livro foi de fato inspirado pelo Espírito Santo.
Assim, Mãe e Mestra da verdade, a Igreja foi apaziguando as querelas e indicando os rumos a seguir. A partir do século IV a palavra cânon, tanto no sentido de coleção de livros bíblicos reconhecidos pelo Magistério quanto no de regra de fé, passou a ser usada na Igreja latina. Sabe-se, com efeito, que um documento do concílio local de Laodiceia, celebrado cerca do ano 360, utilizou pela primeira vez o adjetivo canônico, referindo-se aos Livros Sagrados.8 Mais tarde foi promulgada a definição dogmática do atual cânon das Escrituras, no decreto De Canonicis Scripturas do Concílio de Trento, que afirma ser de fé católica que todos os livros recolhidos na lista são sagrados, inspirados e canônicos.9
Desde então os livros canônicos podem ser classificados em protocanônicos e deuterocanônicos, dando sequência à nossa lista de palavras pouco conhecidas. A partícula grega πρώτο, proto significa primeiro; e δεύτερο, deutero, por sua vez, segundo. Protocanônicos são, pois, os primeiros livros a serem reconhecidos canonicamente, aqueles que, tanto no Antigo Testamento quanto no Novo, sempre foram tidos como revelados; e os deuterocanônicos são os livros reconhecidos depois, após séculos de discussões relativas à sua inspiração divina. Fazem parte da lista dos deuterocanônicos do Novo Testamento a Carta aos Hebreus, a Carta de São Tiago e a de São Judas, a Segunda Carta de São Pedro, a Segunda e a Terceira Cartas de São João e o Apocalipse.

Assim chegou até nós
É surpreendente pensar que tantas controvérsias aconteceram já nos primeiros séculos do Cristianismo! Ora, a Bíblia ainda teria de enfrentar as veleidades do Renascimento e da Reforma, os embates contra as adulteradas traduções de Lutero, de Zwinglio e de Calvino, as implicâncias dos pesquisadores modernos, os esclarecimentos reveladores da ciência… enfim, uma verdadeira odisseia.
A Igreja, Mestra da verdade, indicou os rumos a seguir; e assim recebemos o tesouro da Sagrada Escritura, legado apostólico e baluarte de nossa Fé
Apesar de tudo, as decisões de Trento perduraram e foram reiteradas em diversos documentos magisteriais posteriores, como a Constituição Dogmática Dei Filius, do Concílio Vaticano I, a Encíclica Providentissimus Deus, de Leão XIII, e a Constituição Dogmática sobre a Divina Revelação Dei Verbum, do Concílio Vaticano II, que deu por encerrados os séculos de discussão.
Assim foi que recebemos o tesouro da Sagrada Escritura, legado apostólico e baluarte de nossa Fé, Livro escrito por Deus para iluminar a História dos homens! ◊
Notas
1 Cf. PAUL, André. La inspiración y el canon de las Escrituras. Navarra: Verbo Divino, 1985, p.45-47.
2 Desde tempos antigos, os judeus separavam seus escritos sagrados em três grupos: a Torah, que significa lei, compunha-se do Pentateuco; os Nebiim, profetas, reunia os livros proféticos; e os Ketubim, ou seja, escritos, agrupavam o restante das obras.
3 Apesar disso, reminiscências destes escritos e referências a eles são encontrados na midrash judaica.
4 Cf. ARTOLA, Antonio M.; CARO, José Manuel Sánchez. Biblia y Palabra de Dios. Navarra: Verbo Divino, 1989, p.90-100.
5 Cf. BARUCQ, A.; CAZELLES, H. Los libros inspirados. In: ROBERT, A.; FEUILLET, A. (Dir.). Introducción a la Biblia. 2.ed. Barcelona: Herder, 1967, v.I, p.69-70.
6 Idem, p.36.
7 CONCÍLIO VATICANO II. Dei Verbum, n.9.
8 Cf. ARTOLA, op. cit., p.64.
9 Cf. DH 1501-1505.