A nós, que hoje somos interpelados pela atualidade da mensagem centenária de Fátima, corresponde uma postura face às palavras de Maria. Aprendamos do pastorinho de Aljustrel a acolhê-las com boas disposições.
No período transcorrido entre as aparições de Fátima e a morte de Francisco e Jacinta Marto, a Santíssima Virgem operou em suas almas uma obra de perfeição que os tornou dignos de figurar ao lado dos grandes Santos da Igreja. Ao volver seu olhar para os pastorinhos, Nossa Senhora quis servir-Se de sua inocência para falar ao mundo, tal como já o fizera em La Salette e Lourdes. A predileção pelos puros de coração é uma característica das aparições marianas dos tempos modernos.
A nós, que hoje somos interpelados pela atualidade da mensagem centenária de Fátima, corresponde uma postura face às palavras de Maria: qual tem sido nossa resposta ao chamado à oração e à penitência feito pessoalmente por Ela à humanidade pecadora? Aprendamos do pastorinho de Aljustrel a acolher suas súplicas com boas disposições.
O embuste era incompatível com aquelas crianças
As notícias vindas de Leiria a partir de maio de 1917 despertaram enorme interesse no povo português. Muitos por devoção, outros por curiosidade, acorriam para conhecer o local das aparições. Desejavam também encontrar-se com Lúcia, Francisco ou Jacinta, e ouvir seus relatos de primeira mão. Estar presente em Fátima produzia nos viajantes uma impressão indelével, muito diferente dos alardes de cunho sensacionalista então difundidos.
Quem visitava o lar dos pastorinhos se deparava com meninos provincianos destituídos de qualquer pretensão humana, porém ornados de uma piedade à altura dos fatos que diziam ter presenciado: “Todos voltavam bem impressionados da conversação com os serranitos. Bastava vê-los uma vez para se ficar convencido da verdade das suas afirmações. Um sorriso angélico, que lhes iluminava o rosto, uma alma pura que lhes brilhava nos olhos límpidos que se tinham extasiado na visão da mais sublime criatura saída das mãos de Deus, uma singeleza encantadora transpirando de todos os seus gestos e suas falas; tudo dizia que ali a mentira era impossível, que o embuste era incompatível com aquelas crianças. Os mais empedernidos, os mais rebeldes ficavam rendidos a tanta candura”. 1
Entretanto, um grave vaticínio pairava sobre Francisco e Jacinta: Nossa Senhora avisara que viveriam pouco e logo iriam para o Céu. Quem seria levado antes e em que condições? Eles próprios o ignoravam. Entrementes não perdiam a menor oportunidade de oferecer sacrifícios para reparar as ofensas cometidas contra a linda Senhora e seu Filho Jesus.
Menino plácido, meditativo e religioso
Francisco foi o primeiro a falecer, em 4 de abril de 1919, vitimado pela famosa gripe pneumônica que tomou proporções de pandemia no fim da Primeira Guerra Mundial. Contava quase onze anos, sendo um ano e meio mais velho que Jacinta. Eram os filhos mais novos de Manuel Pedro Marto e Olímpia de Jesus dos Santos. Nas brincadeiras e no apascentar as ovelhas e o gado, estavam unidíssimos à prima Lúcia, cuja casa ficava próxima à sua.
Conta a Ir. Lúcia em suas Memórias que “Francisco não parecia irmão da Jacinta senão nas feições do rosto e na prática da virtude”, 2 devido ao contraste entre a sua placidez e a vivacidade dela. Embora tomasse parte comprazido nos jogos, cedia facilmente às preferências alheias, sem fazer questão de ganhar. Quando as outras crianças negavam os seus direitos de vencedor, respondia: “Pensas que ganhaste tu? Pois sim! A mim isso não me importa”. 3
Em contrapartida, gostava muito de cantar e tocar pífaro, ausentando-se contente das rodas infantis para se entreter com sua música. Nas longas horas de pastoreio subia ao alto dos rochedos e ali tocava e entoava sozinho melodias populares da época, que exaltavam os encantos da região serrana portuguesa.
Junto com as duas meninas, ele esperava cair a noite para acompanhar Nossa Senhora e os Anjos acenderem suas velas, como chamavam as estrelas. Iam contando-as, uma a uma, até quando já não podiam enumerá-las. O que mais apreciava mesmo era contemplar o nascer e o pôr do sol, a seu ver superior em beleza à lua ou às estrelas: “Nenhuma candeia é tão bonita como a de Nosso Senhor”, 4 comentava com Jacinta, referindo-se ao sol, sabendo que a irmãzinha preferia a lua, tida como de Nossa Senhora, porque não feria a vista.
Quem observasse Francisco com superficialidade, talvez tivesse a impressão de ser ele um menino como os outros, e um tanto distraído. Os acontecimentos que se desenrolaram na Cova da Iria, contudo, revelaram a verdadeira estatura daquele que, dentre os videntes, era “o mais religioso de todos”. 5
Seriedade face às realidades sobrenaturais
As aparições do Anjo de Portugal, seguidas das seis visitas de Nossa Senhora, produziram nos pastorinhos um efeito profundo, transformando-os rapidamente e para sempre. O contato direto com a natureza angélica e com a própria Rainha dos Anjos desfez o véu que os separava das realidades eternas e operou neles uma completa mudança de mentalidade.
Favorecidos por uma visão sublimada do universo e pela compreensão dos destinos da humanidade, foram amparados pela graça a fim de atenderem com fidelidade o apelo de Maria. “Concentrados, quase imersos no sobrenatural, já não vivem a vida banal da outra gente, mas num mundo infinitamente superior”. 6
Francisco demonstrou grande seriedade em relação às aparições, sem nunca perguntar se a sua resposta comportava graus ou medidas, pois entendeu que Nossa Senhora esperava uma adesão inteira. Como bom português ele era lógico, dado ao raciocínio e firme no cumprimento de seus deveres, sendo muito sensível aos aspectos morais de sua conduta e da dos outros. Houve mesmo quem o qualificasse de severo, o que não deixa de ser coerente se considerarmos que a visão do inferno e o misterioso conteúdo da mensagem passaram a ocupar um importante lugar em suas cogitações.
Amor transbordante por Nosso Senhor Jesus Cristo
As aparições surtiram efeitos diversos na alma dos pastorinhos, atraindo-os para missões específicas dentro da grande via expiatória à qual estavam sendo conclamados. Isto se dava de maneira suave, porém clara, como se pode ver neste episódio narrado pela Ir. Lúcia:
“Um dia perguntei-lhe:
“— Francisco, tu, de que gostas mais: de consolar a Nosso Senhor ou converter os pecadores, para que não vão mais almas para o inferno?
“— Gostava mais de consolar a Nosso Senhor. Não reparaste como Nossa Senhora, ainda no último mês, Se pôs tão triste, quando disse que não ofendessem a Deus Nosso Senhor que já está muito ofendido? Eu queria consolar a Nosso Senhor e depois converter os pecadores, para que não O ofendessem mais”. 7
Curiosamente, embora visse Nossa Senhora a cada dia 13 sem poder exprimir em palavras o entusiasmo que sentia por Ela, o menino deslumbrou-se ainda mais com a Santíssima Trindade, sobretudo com Nosso Senhor Jesus Cristo. Este verdadeiro fascínio polarizou seu coração, “toda a sua capacidade de amar”, 8 e o levava a exclamar: “Eu gosto tanto d’Ele!” 9 Ou: “Estou a pensar em Deus que está tão triste, por causa de tantos pecados! Se eu fosse capaz de Lhe dar alegria!” 10
Os pais de Francisco e Jacinta eram pessoas piedosas e aceitaram as revelações desde o início, com temor reverencial. Conhecendo a honestidade dos filhos, eles não os maltrataram, nem pensaram que tais fenômenos fossem fruto da imaginação pueril. Em casa de Lúcia a reação foi diferente e desencadeou-se uma perseguição que muito a fez sofrer. Mas Francisco a animava: “Deixa lá. Não disse Nossa Senhora que íamos a ter muito que sofrer, para reparar a Nosso Senhor e o seu Imaculado Coração, de tantos pecados com que são ofendidos? Eles estão tão tristes! Se com estes sofrimentos Os pudermos consolar, já ficamos contentes”. 11
O amor transbordante do menino por Jesus e a resolução de confortá-Lo têm sua origem na Comunhão trazida pelo Anjo e, em especial, nas aparições de junho, julho e outubro, em que Nossa Senhora os fez ver a luz inacessível da Trindade. Esta dádiva atraiu-o de maneira definitiva, ocasionando um maravilhamento nunca superado: “Nós estávamos a arder, naquela luz que é Deus, e não nos queimávamos. Como é Deus!!! Não se pode dizer! Isto sim, que a gente nunca pode dizer! Mas que pena Ele estar tão triste! Se eu O pudesse consolar!…” 12
Este anseio, nascido em sua alma virginal, não era apenas fruto de um arroubo de efêmera duração. O Beato Francisco Marto estava decidido a consolar Jesus com todos os meios ao seu alcance, em particular pela própria conversão.
Profunda e radical mudança de vida
A ascensão ao cume da santidade é uma obra da graça que exige das almas a contínua disposição para se desapegarem de si mesmas e serem transformadas por Deus. Nas vias clássicas de espiritualidade, isto implica enormes batalhas interiores que se estendem, não raras vezes, ao longo da vida.
Com os pastorinhos de Fátima o método foi outro: Nossa Senhora transformou-os pela comunicação de seu espírito. Realizou-se neles de alguma forma aquilo que São Luís Grignion de Montfort chama, em seus proféticos escritos, de Segredo de Maria, 13 pois, graças à ação direta da Santíssima Virgem, foram se tornando mais propensos à prática do bem, livres de seus defeitos e modelados em tudo pelas virtudes d’Ela.
Ao conhecer a Rainha dos Céus, Francisco passa a viver em outro patamar: seus afetos são todos para Ela e seu Divino Filho, seu pensamento voa a cada instante para o sacrário onde está Jesus escondido, como ele se referia ao Santíssimo Sacramento, e suas ações nascem do contínuo e entranhado relacionamento interior com o Imaculado Coração de Maria.
Como ser o mesmo e voltar aos antigos divertimentos depois de sentir sobre si o dulcíssimo olhar da Senhora do Rosário? Por isso, ao entoar as primeiras estrofes de uma das canções que antes o empolgavam, ele decide: “Não cantemos mais. Desde que vimos o Anjo e Nossa Senhora, já não me apetece cantar”. 14
As esporádicas inobservâncias domésticas ou as preguiças de Francisco deixam de existir; elas cedem lugar a um espírito penitente e contemplativo, ávido por consolar Jesus e colaborar com o oferecimento de sua vida para a magnífica vitória da Santa Igreja nos acontecimentos que lhe foram revelados.
Correspondência generosa ao apelo celeste
Na primeira aparição, quando Lúcia perguntou se Francisco ia para o Céu, Nossa Senhora respondeu: “Também, mas tem que rezar muitos Terços”. 15
A advertência era uma evidente alusão ao modo abreviado com que o menino costumava recitá-los para terminar rápido. E esta foi recebida por ele com as melhores disposições: “Ó minha Nossa Senhora, Terços, rezo todos quantos Vós quiserdes”. 16
A partir daí Francisco redobrou o número de Rosários, rezando muitos com as meninas e outros tantos sozinho. Conta a Ir. Lúcia que “se lhe dizia que viesse brincar, que depois rezava conosco, respondia:
“— Depois também rezo. Não te lembras que Nossa Senhora disse que tinha de rezar muitos Terços?” 17
Este espírito de oração fervorosa distinguiu o pastorinho até o fim, como sua arma mais eficaz para levar adiante a missão recebida do Céu. Ao lado dela estava a dos sacrifícios, em cujo cumprimento foi igualmente generoso: “Nossa Senhora disse que íamos a ter muito que sofrer! Não me importo; sofro tudo quanto Ela quiser! O que eu quero é ir para o Céu”. 18
Um dos maiores oferecimentos foi o de portar uma corda à cintura, como descreve sua prima: “Íamos com as nossas ovelhinhas por um caminho, no qual encontrei um bocado duma corda dum carro. Peguei nela e, brincando, atei-a a um braço. Não tardei a notar que a corda me magoava. Disse, então, para meus primos:
“— Olhem: isto faz doer. Podíamos atá-la à cinta e oferecer a Deus este sacrifício.
“As pobres crianças aceitaram logo a minha ideia e tratamos, em seguida, de a dividir entre os três. […] Seja pela grossura e aspereza da corda, seja porque às vezes a apertássemos demasiado, este instrumento fazia-nos por vezes sofrer horrivelmente”. 19
Aprouve a Nossa Senhora suavizar o uso do instrumento de penitência, ponderando na aparição de setembro: “Deus está contente com os vossos sacrifícios, mas não quer que durmais com a corda; trazei-a só durante o dia”. 20
Início do triunfo do Imaculado Coração nas almas
Em fins de outubro de 1918, Francisco e Jacinta adoeceram gravemente para não mais se recuperarem. Uma forte febre os consumia. No princípio dava esperança de cura, não tardando em mostrar-se irreversível.
A celestial Senhora visitou a casa da família Marto para confortá-los, como contou Jacinta à prima Lúcia: “Nossa Senhora veio-nos ver e diz que vem buscar o Francisco muito breve para o Céu”. 21 Desde então, os dois irmãos aguardavam com ardente amor o dia jubiloso de partirem para a eternidade.
No dia 3 de abril de 1919, um sacerdote veio trazendo de Fátima o Viático para Francisco, que há meses O pedia com fervor. Aquela foi a sua segunda Comunhão, precedida pela que recebera das mãos angélicas. O anseio veemente de comungar consistiu, durante o período da doença, o único estímulo que o animava a viver e, quando pôde por fim receber a Eucaristia, confessou à Jacinta: “Hoje sou mais feliz que tu, porque tenho dentro do meu peito a Jesus escondido. Eu vou para o Céu; mas lá vou pedir muito a Nosso Senhor e a Nossa Senhora que vos levem também para lá depressa”. 22
Na manhã do dia seguinte, sem agonia nem estertores, com a serenidade de quem entra no suave descanso dos justos, Francisco Marto expirou santamente em Aljustrel. Acompanharam o cortejo fúnebre do pastorinho apenas alguns conhecidos, recitando o Terço em singela homenagem até o cemitério da freguesia de Fátima. Quem poderia imaginar à época as futuras peregrinações multitudinárias ao túmulo do confidente de Maria para pedir sua intercessão?
Maria Santíssima não é Senhora de obras inacabadas! E a vida de Francisco abre para nós a mais alentadora das esperanças: “Se a obra de Nossa Senhora em Fátima – especialmente com essas duas crianças chamadas para o Céu – foi assim, nós podemos bem nos perguntar se isto não tem um valor simbólico, e se não indica qual vai ser a ação de Nossa Senhora sobre toda a humanidade quando Ela cumprir as promessas feitas em Fátima”. 23 ◊
Notas
1 DE MARCHI, ICM, João M. Era uma Senhora mais brilhante que o sol. 8.ed. Fátima: Missões Consolata, 1966, p.249.
2 IRMÃ LÚCIA. Memórias I. Quarta Memória, c.I, n.1. 13.ed. Fátima: Secretariado dos Pastorinhos, 2007, p.136.
3 Idem, ibidem.
4 Idem, p.137.
5 COSME DO AMARAL, Alberto. Jacinta e Francisco. Virtudes heroicas. Braga: CAS, 1991, p.110.
6 DE MARCHI, op. cit., p.119.
7 IRMÃ LÚCIA, op. cit., n.12, p.155.
8 COSME DO AMARAL, op. cit., p.30.
9 IRMÃ LÚCIA, op. cit., n.9, p.147.
10 Idem, n.4, p.142.
11 Idem, p.141.
12 Idem, n.7, p.145.
13 Cf. SÃO LUÍS MARIA GRIGNION DE MONTFORT. Le Secret de Marie. In: Œuvres Complètes. Paris: Du Seuil, 1966, p.439-479.
14 IRMÃ LÚCIA, op. cit., n.4, p.143.
15 Idem, c.II, n.3, p.173.
16 Idem, c.I, n.4, p.141.
17 Idem, ibidem.
18 Idem, ibidem.
19 Idem, Segunda Memória, c.II, n.12, p.92.
20 Idem, n.13, p.94.
21 Idem, Primeira Memória, c.III, n.2, p.59.
22 Idem, Quarta Memória, c.I, n.16, p.164.
23 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Os pastorinhos de Fátima e o Segredo de Maria. In: Dr. Plinio. São Paulo. Ano XVI. N.179 (Fev., 2013); p.29.