O grande êxito de sua vida foi aceitar o aparente fracasso de seu ideal, conformando-se inteiramente à vontade divina. Nada foi aos olhos humanos, mas foi santo aos olhos de Deus, que julga pelo coração, e não pelas aparências.
Frequentemente julga-se que o pleno desenvolvimento de um homem consiste em ser bem sucedido na vida, galgar altos postos, conquistar prestígio, obter uma importante fortuna. Não é este, porém, o ensinamento que emana dos Livros Sagrados, referindo-se a quem se afana em ajuntar riquezas, sem utilizá-las para glorificar a Deus: “Não permanecerá o homem que vive na opulência: ele é semelhante ao gado que se abate” (Sl 48, 13). Ou: “Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se vem a perder-se a si mesmo e se causa a sua própria ruína?” (Lc 9, 25).
Para Deus importa, antes de tudo, que o homem se conforme com Sua santa vontade. E esta não pede o mesmo a todas as almas: a umas designará para ocupar altos cargos ou distinguir-se pelas obras, desde que sempre centradas no amor a Deus; a outras chamará para a renúncia e o sacrifício. Tanto umas quanto outras serão grandes diante de Deus, e as segundas não terão menos mérito que as primeiras. O tribunal divino não julga pelas aparências exteriores, mas segundo o grau de docilidade à vontade de Deus.
A história do Beato Rafael oferece um exemplo dessa entrega plena e desinteressada de uma vida que poderia ter atingido um grande esplendor mundano.
Um menino privilegiado
Rafael Arnáiz Barón nasceu em Burgos, Espanha, a 9 de abril de 1911, numa aristocrática família. Seus pais, católicos fervorosos, educaram–no com esmero na prática dos Mandamentos e no amor à virtude. Aos 10 anos, vendo-se impossibilitado de acompanhar seus colegas à Missa de domingo, por estar enfermo, suplicou a um sacerdote que lhe levasse o Santíssimo Sacramento. Impressionado com a piedade daquela criança, o padre acedeu e, a partir daí, Rafael nunca mais abandonou a comunhão dominical.
Diante do olhar profundo do jovem Rafael, seu futuro se descortinava em tons róseos e azulados. Sua inteligência penetrante, a vivacidade de sua conversa e seu trato ameno conquistavam-lhe todas as simpatias e aumentavam o atrativo natural que exercia sobre os que dele se aproximavam. Um marcado pendor artístico veio completar o encanto de sua pessoa.
Rafael, porém, parecia feito mais para a contemplação das coisas celestes que para as banalidades da vida terrena. Levava uma vida semelhante à dos outros moços de sua idade, mas seu olhar voava com facilidade até Deus. Dir-se-ia que sua nobre alma experimentava o exílio deste vale de lágrimas e ardia em desejos de horizontes sublimes. A resposta da Providência a tais anseios, plantados por Ela mesma naquele inocente jovem, não se faria esperar.
Na juventude, o despontar da vocação
Aos 19 anos, estando na casa de seu tio em Ávila, foi solicitado a levar uma carta ao abade do mosteiro cisterciense de San Isidro de Dueñas. Essa visita seria para ele a clarinada reveladora de sua vocação.
“Aquilo que vi e passei na Trapa, escreveria ele mais tarde, as impressões que tive nesse santo mosteiro, não podem ser explicadas; pelo menos eu não sei explicá-las, somente Deus o sabe. […] O que mais me impressionou foi o canto da Salve Regina, ao escurecer, antes de irem deitar-se. […] Aquilo foi algo sublime.1”
Com efeito, desde a época de São Bernardo, era costume nos mosteiros cistercienses cantar a Salve Regina em gregoriano logo após as Completas, em homenagem à Santíssima Virgem. Diante da unção daquele hino entoado por mais de 50 religiosos revestidos de brancos hábitos, Rafael sentiu-se convidado a imitá-los. Nesse dia, o projeto de dar-se à vocação monacal começou a germinar em sua mente.
Ele continuou a levar sua vida comum. Dados os seus dotes para o desenho, estudou dois anos na escola de arquitetura, em Madri. Entretanto, a graça operara em seu interior uma verdadeira transformação, como ele mesmo descreve: “Ali [na Trapa] a sós com Deus e a própria consciência, muda-se o modo de pensar, o modo de sentir e, o mais importante, o modo de agir nos atos do mundo.2”
A decisão de abraçar a vida religiosa
Em 1933, estando de novo em Ávila, Rafael surpreendeu seu tio com uma notícia: estava resolvido a abandonar o mundo e ingressar na Ordem de Cister, sem mesmo avisar seus pais, residentes ao norte do país, na cidade de Oviedo. Assim descreve seu tio a impressão que lhe causou a decisão do sobrinho:
Rafael “era débil fisicamente, mas a fortaleza que faltava a seu corpo tinha em sua alma medida completa e transbordante. […] Sua vontade era de aço; eu tinha a firme convicção de que aquela determinação era de Deus; não era um capricho, nem uma impressão, nem um engano; era o fruto divino de uma correspondência à graça, que o Espírito Santo dignava-Se sustentar com um de seus mais preciosos dons: o da fortaleza.3 ”
Para demovê-lo de sua resolução de não ir antes a Oviedo, seu tio recorreu ao Núncio Apostólico, que se encontrava em Ávila. Ante o desejo da autoridade religiosa, Rafael dobrou-se, por amor à obediência, reconhecendo naquela ordem o primeiro passo rumo à cruz, que desejava abraçar.
Partiu para Oviedo e lá, após comemorar o Natal numa aparente alegria, comunicou a seus pais a decisão que tomara. Estes, como bons cristãos, acolheram-na com verdadeira emoção, agradecendo a dádiva que o Senhor lhes concedia.
Uma nova etapa na vida do jovem Rafael
Para o jovem Rafael começava uma nova etapa: deixava para trás as comodidades, o carinho familiar, os passatempos mundanos, as promessas de um brilhante porvir. Sobretudo, renunciava àquilo que a criatura humana possui de mais arraigado: a vontade própria. Doravante esta se acharia inteiramente conformada à vontade divina.
No dia 15 de janeiro de 1934, as portas de Cister abriam-se para o jovem postulante. Seu coração estava cheio de bons propósitos, que ele resumiu com estas palavras escritas poucos dias antes: “Quero ser santo, diante de Deus, e não dos homens; uma santidade que se desenvolva no coro, no trabalho, sobretudo, no silêncio; uma santidade conhecida somente de Deus e da qual nem mesmo eu me dê conta, pois, então, já não seria verdadeira santidade.4 ”
Essa santidade seria alcançada em meio a indizíveis sofrimentos e provações, na aparente inutilidade, sem em nada manifestar-se exteriormente.
O primeiro período de vida religiosa foi para Rafael um verdadeiro paraíso. Se os jejuns e as mortificações por vezes arrancaram-lhe algumas lágrimas, sua alma sentia-se inundada de consolações. A humildade que demonstrava ao acusar-se de suas faltas no capítulo de culpas e sua atitude estática diante do tabernáculo impressionavam favoravelmente a comunidade, que logo se lhe afeiçoou.
A dura prova da enfermidade
Para Rafael, o rompimento com o mundo já ficara definitivamente para trás. Porém, não eram estes os desígnios divinos. Gozava de grande felicidade espiritual quando, em maio, sentiu os primeiros sintomas da doença que o levaria à morte. O abatimento de suas forças obrigou-o a ser transferido para a enfermaria. Pouco tempo depois, o médico diagnosticava uma diabetes sacarina que progredia de forma alarmante e exigia um tratamento apropriado, que só poderia ser-lhe ministrado fora do mosteiro…
Começava para ele a subida ao calvário, a aceitação submissa do cálice que lhe era oferecido. Via-se obrigado a voltar para o mundo, ao qual tão generosamente havia renunciado!
Seu confessor, Pe. Teófilo Sandoval, narra a cena de sua partida do mosteiro:
“Os suspiros e as lágrimas do angustiado Rafael faziam-me ver que em seu interior se desenrolava uma tremenda crise espiritual que lhe oprimia o coração. Quando deixei o mundo — dizia-me — despedi-me de todos até a eternidade, e pela imprensa Astúrias inteira soube que a graça havia triunfado em mim, sobre a natureza… Agora volto para lá desfeito, inútil, com a mortalha dentro da mala… O que dirá o mundo, tão propenso a se escandalizar? Eu quero morrer aqui, quisera que esta noite fosse a última de minha vida! Diante dessas expressões, compreendi que Rafael havia penetrado na terrível noite escura do sentido, do coração.5 ”
Rafael voltou para sua casa. Em poucas semanas verificou-se uma melhora em sua saúde e pôde retomar a vida normal. Exteriormente aparentava ser o mesmo Rafael de antes, com sua alegria contagiante e sua sensibilidade artística. Uma profunda mudança, porém, efetuara-se em sua alma, modelando-a por inteiro. Experimentava outra alegria, aquela que só às almas amantes da cruz é dado conhecer.
Assim escreveu ele a um de seus superiores, alguns dias depois de sua saída do mosteiro: “Quando fui para a Trapa, entreguei-Lhe [a Deus] tudo quanto tinha e tudo quanto possuía: minha alma e meu corpo… Minha entrega foi absoluta e total. Justo é, pois, que Deus agora faça de mim o que Lhe pareça e o que Lhe agrade, sem queixa alguma de minha parte, movimento algum de rebeldia. […] Deus não somente aceitou meu sacrifício, quando deixei o mundo, mas pediu-me maior sacrifício ainda, o de voltar a ele… Até quando? Deus tem a palavra. Ele dá a saúde, Ele a tira.6 ”
Essas palavras refletem bem o espírito de obediência com o qual acolhia a prova enviada pela Providência. Um ano e meio haveria de durar aquele exílio, durante o qual seu amor a Deus não fez senão crescer e sublimar-se. Ao ingressar na Ordem Cisterciense, despojara-se de tudo, mas conservava ainda o desejo de chegar a ser um bom trapista, de se tornar sacerdote; buscava-se a si mesmo, como mais tarde afirmaria. Deus, como Pai boníssimo, educava-o de forma a purificar sua alma daquelas asperezas tão legítimas, mas ainda humanas.
Por fim, Rafael implorou ser readmitido na Trapa na qualidade de oblato, uma vez que seu estado de saúde não lhe permitia adaptar-se ao regime da vida monacal.
Em janeiro de 1936, entrou por segunda vez. Lá o esperavam novas tribulações: isolado na enfermaria, sujeito a um regime alimentício que provocava críticas dos companheiros, sofrendo incompreensões de alguns de seus superiores, Rafael sentia-se inteiramente só. Dada sua debilidade física, proibiram-lhe até de participar do cântico do Ofício na igreja. A esses sofrimentos juntavam-se terríveis tentações que lhe sugeriam a ideia de ter errado de vocação. Ele tudo enfrentava com vigor de espírito e um inalterável sorriso nos lábios.
Ainda por duas vezes a enfermidade o tiraria de sua amada abadia, mas novamente a ela voltaria, convencido de ser aquele o lugar que lhe designara a vontade divina, apesar dos obstáculos que esta mesma parecia lhe opor.
Os últimos meses de vida
Os derradeiros meses da vida de Rafael foram os últimos passos até o cimo do calvário que se propusera galgar, como o refletem os escritos dessa época, embebidos de intensa espiritualidade e amor à perfeição.
Sua alma atingia aquela indiferença recomendada por Santo Inácio, pela qual o homem nada deseja para si e deixa-se levar pelo beneplácito divino. Uma única paixão dominava-lhe o coração: Deus!
“Tudo o que faço, é por Deus. As alegrias, Ele as manda; as lágrimas, Ele as dá; o alimento, tomo-o por Ele; e quando durmo, faço-o por Ele. Minha regra é Sua vontade, e Seu desejo é minha lei; vivo porque a Ele apraz, morrerei quando Ele quiser. Nada desejo fora de Deus. […] Quisera que o universo inteiro — com todos os planetas, os astros todos, e os inúmeros sistemas siderais — fosse uma imensa superfície lisa onde eu pudesse escrever o nome de Deus. Quisera que minha voz fosse mais potente que mil trovões, e mais forte que o ímpeto do mar, e mais terrível que o fragor dos vulcões para só dizer ‘Deus’. Quisera que meu coração fosse tão grande quanto o Céu, puro como o dos Anjos, simples como a pomba para nele ter a Deus.7 ”
Entretanto, a enfermidade progredia a passos rápidos. Rafael padecia fome — o irmão enfermeiro não lhe proporcionava os alimentos que a doença exigia — e, sobretudo, sede… Uma sede insaciável e devoradora que o acompanharia até os últimos instantes. Ele, porém, nada deixava transparecer no exterior, dando a todos a impressão de encontrar-se melhor.
No fim do mês de abril já não pôde mais ocultar seu alarmante estado. Aos delírios da febre sucediam-se instantes de lucidez, durante os quais manifestava-se sereno e resignado. Recebeu a unção dos enfermos no dia 25, mas Deus pediu-lhe o sacrifício de ver-se privado do viático. Às palavras alentadoras que lhe dirigiam os monges, procurando infundir-lhe a esperança da cura, Rafael respondia estar convencido de que logo partiria para o Céu.
Faleceu na manhã do dia 26 de abril de 1938, em consequência de um coma diabético. Sua fisionomia plácida e seu sorriso refletiam a glória de que sua alma já gozava na eterna bem-aventurança.
Uma alma enamorada de Cristo
Sob o ponto de vista humano, sua curta vida parece ter sido um monumental fracasso: não completou a carreira, não se projetou na sociedade, não realizou seus sonhos de sacerdócio, nem mesmo teve o consolo de observar a regra trapista e emitir os votos.
Não foi assim aos olhos de Deus, que não julga pelas aparências, mas sim segundo o coração. Rafael praticou uma forma de santidade peculiar: sua alma enamorada de Deus atingiu a heroicidade das virtudes em meio ao silêncio, à dor e ao apagamento mais completos.
Sirva-nos seu exemplo de humildade e de caridade ardente para, também nós, aceitarmos com alegria aquilo que a Divina Vontade quiser nos mandar.
“Dei-me conta de minha vocação. Não sou religioso… não sou leigo…, nada sou… Bendito seja Deus, não sou nada mais que uma alma enamorada de Cristo. […] Vida de amor, eis minha Regra… meu voto… Eis a única razão de viver.8”