Numa época de crises que dominavam a sociedade temporal e ameaçavam derrubar o edifício sagrado da sociedade espiritual, ergueu-se do silêncio contemplativo dos claustros beneditinos um sopro renovador que conquistou a Europa inteira: o movimento reformador de Cluny.

 

Igreja Abadia de Cluny

Ao analisarmos a História desde os primórdios do Cristianismo até os dias atuais, é-nos grato observar o constante desenvolvimento da Igreja ao longo dos séculos. Fundada sobre a palavra irrevogável de Jesus ao Apóstolo Pedro, ela atravessa as situações mais difíceis, enfrenta todas as perseguições e desfaz as ciladas do demônio, permanecendo imutável em meio à fúria de seus inimigos. Errado, porém, seria imaginar que, ferida pelos contí­nuos embates do mal, a Esposa Mística de Cristo pudesse chegar ao estado de agonia, deitando lastimosos suspiros, mantida em vida apenas para não se desmentir a promessa de imortalidade pronunciada pelo Salvador.

Contrariamente a essa idéia, o caminhar da Santa Igreja através da História constitui uma perene ascensão, de triunfo em triunfo e de esplendor em esplendor, fazendo brotar de seu próprio seio, após cada investida do mal, um novo élan por onde ela se levanta vitoriosa e rejuvenescida, e origina maravilhas até então desconhecidas.

Tal foi o caso do movimento reformador de Cluny, nascido na Igreja para combater os erros que grassavam no mundo ocidental naqueles tempos e ameaçavam derrubar o edifício da sociedade espiritual.

Século de guerras e rivalidades pessoais

O alvorecer do século X despontava nebuloso e indefinível. As luzes do império carolíngio haviam-se enfraquecido, cedendo lugar a um contínuo vaivém de dissensões e guerras que minavam a estrutura e a ordenação social iniciadas sob o impulso de Carlos Magno. Senhores, barões e príncipes digladiavam-se constantemente entre si, em defesa de seus interesses pessoais ou movidos por alguma obscura rivalidade.

E havia pior: a crise espalhara-se para além das fronteiras temporais, penetrando também no âmbito religioso. Dois males atingiam de modo especial a Igreja nesse século: o tráfico de cargos e dignidades eclesiásticas, conhecido pelo nome de simonia; e o nicolaísmo, palavra pela qual se designava o relaxamento de costumes dos clérigos.

Dentro dos próprios mosteiros a situação revelava-se difícil: estes, em geral, localizavam-se em territórios pertencentes a nobres que os consideravam patrimônio seu, intervindo nos assuntos da comunidade e reservando-se o direito de nomear o abade. Ora, freqüentemente a escolha por eles feita elevava a um cargo de importância homens desprovidos de aptidão e virtude para desempenhá-lo. Pode-se deduzir a decadência da disciplina regular, bem como as catástrofes daí decorrentes. Tais abusos acarretariam mais tarde conseqüências desastrosas, desembocando na célebre Querela das Investiduras.

Um sopro de renovação que cobriu a Europa

A Divina Providência, entretanto, não tardaria em suscitar a solução para esses e outros problemas da época, fazendo surgir de dentro do próprio monaquismo decadente um sopro de renovação que cobriria a Europa inteira.

Em 910, Guilherme o Piedoso, Duque da Aquitânia, atendendo ao pedido de Bernon, abade de Baume, doou uma terra situada em seu feudo de Mâcon, para a fundação de um novo mosteiro. A propriedade, uma pequena aldeia rodeada de bosques, levava um nome destinado a marcar os céus da História: Cluny ou Cluniacum. A abadia estaria isenta de qualquer jurisdição civil e eclesiástica, diretamente ligada à Cátedra de Pedro, tendo como protetores os Apóstolos Pedro e Paulo.

Desde seus primórdios, São Bernon nela implantou uma fervorosa observância beneditina, inculcando em seus seguidores os ideais da vida monástica: oração, pobreza, silêncio. Seu intuito era estabelecer ali um centro de contemplação, separado dos tumultos mundanos, no qual se cumprisse com rigorosa fidelidade a primitiva regra de São Bento e, ao mesmo tempo, fosse capaz de influir sobre a sociedade de maneira a renová-la.

Em pouco tempo Cluny transformou-se num mosteiro modelo para onde afluíam homens de escol que aspiravam à santidade. Os “monges negros” — assim chamados pela cor de seu hábito — adquiriram um prestígio considerável, a ponto de lhes ser confiada a fundação ou reforma de inúmeros mosteiros os quais passavam a ser afiliados à abadia de Cluny.

Batalha, Manuscrito de Lotário III

Na origem do sucesso, a santidade

Entretanto, o grande segredo de seu sucesso e da rápida ascensão com que se projetou pela Cristandade não repousava sobre o privilégio de sua dependência direta da Igreja de Roma, pois já muitos outros monastérios gozavam dessa prerrogativa sem haver obtido os mesmos resultados; também não podia atribuir-se unicamente à exatidão dos monges no cumprimento da estrita regra que viria a ser o ordo cluniacensis. A causa profunda da preeminência de Cluny foi a de ter à sua frente, durante dois séculos, homens excepcionais por sua têmpera, cultura e capacidade organizativa, e, sobretudo, todos animados por um mesmo espírito de perfeição, verdadeiros santos: São Bernon, Santo Odon, São Maïeul, Santo Odilon e Santo Hugo. Cada um a seu modo, segundo seus dons pessoais, trabalhou para levar essa grandiosa obra ao píncaro do esplendor.

Foi Santo Odon quem instalou definitivamente a reforma e plasmou as características essenciais do que poderia chamar-se o “carisma cluniacense”. Seu zelo pela glória de Deus movia-o a peregrinar de mosteiro em mosteiro, montado em um jumento, à procura de monges fervorosos que o ajudassem a pôr em marcha seu plano reformador. A fama de santidade deste grande asceta abria os caminhos e derrubava os obstáculos, facilitando o crescimento da nova rede monástica.

São Maïeul seguiu fielmente a linha de seus predecessores, acrescentando, porém, uma nota especial de suavidade e encanto que lhe conquistou a simpatia e admiração dos papas e dos monarcas. Seus contemporâ­neos descrevem a doçura de seu olhar, a elegância de seus gestos e a eloqüência de seus discursos, de tal modo que parecia ser “o mais belo de todos os mortais”. Pode-se medir o alcance da influência que exercia sobre os religiosos uma personalidade como a sua, continuamente apontando para as pulcritudes divinas.

Seu sucessor, Santo Odilon, diferia em temperamento, mas não em vocação. Seus olhos chamejantes revelavam um caráter vivo e enérgico. Severo para consigo e bondoso para com seus filhos, mereceu o título de “Arcanjo dos monges”. Seu ardor apostólico e os portentosos milagres por ele realizados contribuíram largamente para a expansão da obra cluniacense pelo resto da Europa.

Mas foi no tempo de Santo Hugo que Cluny alcançou seu apogeu, ao iniciar a construção da imensa basílica de cinco naves e sete torres, a maior de todo o Ocidente naqueles remotos séculos, e cujo altar-mor foi consagrado pelo Papa Urbano II, também ele cluniacense, por ocasião de sua viagem à França em 1095. Hugo de Semur distinguiu-se sobretudo pela virtude da caridade. Conta-se que certa vez dois cavaleiros vieram bater à porta do mosteiro, fazendo apelo ao direito de asilo, que punha ao abrigo da justiça humana qualquer criminoso refugiado em um recinto sagrado. O porteiro reconheceu com horror os assassinos do pai e do irmão do santo abade e correu para referir-lhe a situação. “Deixe-os entrar”, foi a resposta pronunciada com mansidão. E assim os criminosos foram salvos.

Os santos cluniacenses estão na origem de várias festas e memórias que hoje figuram no Calendário Romano. Santo Odilon instituiu em 2 de novembro a comemoração dos ­fiéis defuntos e promoveu amplamente as preces feitas em sufrágio das almas do Purgatório.

A devoção à Santíssima Virgem recebeu um grande impulso pelo apostolado de Cluny. Santo Hugo determinou que quando não ocorresse uma festa inamovível no sábado, em todos os mosteiros dependentes de Cluny se cantasse nesse dia o Ofício e a Missa de Beata, especialmente compostos em louvor da Mãe de Deus. E Urbano II mandou acrescentar ao Ofício Divino, neste dia da semana, o Pequeno Ofício de Nossa Senhora

Embaixadores do Céu

Em Cluny a vida transcorre suave e calma. A Regra é vivida em toda a sua austeridade e simplicidade. O dia divide-se minuciosamente entre oração e trabalho manual, mas este tende a restringir-se cada vez mais, enquanto aumentam as horas dedicadas ao Ofício Divino. A espiritualidade cluniacense considera toda a magnificência, luxo ou beleza como coisas insuficientes para honrar a Deus: sua atividade organiza-se em função de uma perpétua cerimônia na qual os ornamentos do altar e do santuário, a harmonia musical e a disciplina dos ritos prefigurem as glórias da pátria celeste.

Sem esquecer as agruras e sacrifícios deste vale de lágrimas, o cluniacense procura tornar realidade a súplica tantas vezes repetida no Pai-Nosso: “Venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade assim na terra como no Céu”. Dessa enlevada visão do universo florescem naturalmente, como de uma fonte de água viva, as artes da pintura e da escultura, requinta-se a maravilha policromada dos vitrais e dá-se mais importância à Liturgia e ao canto gregoriano. Já desde a madrugada, os primeiros raios da aurora filtram-se através das rosáceas, inundando a igreja numa féerie de cores enquanto as vozes dos monges, unidas aos coros dos anjos, ecoam pelas altas abóbadas em louvor ao Pai das misericórdias e Deus de toda consolação.

Da mesma forma como o ambiente onde ele habita assemelha-se ao Paraíso, o monge deve buscar sempre a perfeição, procurando refletir, por meio da prudência de suas palavras e da nobreza de suas atitudes, o próprio Deus que é a Beleza Absoluta. Considerado enquanto indivíduo, o monge é nada e nada possui, mas, na sua coletividade face ao mundo exterior, tem a consciência de ser um embaixador do Céu. Voluntariamente submetido a uma obediência rígida, ele reconhece na voz de seus superiores os desígnios do Senhor e executa-os com humildade, sabendo-se servo inútil. A regra da castidade é observada com rigor, levando em conta que é na prática dessa virtude angélica que o religioso haure a seiva de sua vida espiritual. No silêncio, na contemplação e no cerimonial o monge passa os momentos mais felizes de sua existência, à espera das alegrias que gozará na eternidade.

Assim, sob o olhar sábio e vigilante dos mestres, vai-se formando uma nova milícia cristã, constituída de heróis, mais anjos que homens, cuja estrutura hierarquizada culmina na pessoa venerável do abade.

Pelo exemplo de suas vidas, eles conquistaram a Europa

A obra realizada por Cluny representa na História um papel de capital importância. Sua ascensão fulgurante e sua benéfica influência permitiram-lhe levar por toda parte o fermento evangélico que mais tarde produziu abundantes frutos de santidade. O solo do Velho Continente, calcado outrora pela marcha dos exércitos romanos, sentiu-se então sacudido por uma força irresistível que suscitou na sociedade um fenômeno contagiante, renovando todos os degraus da escala humana. Ela não impôs aos homens o pesado tributo dos césares, mas levou-lhes um convite: “Aceitem o suave jugo de Cristo”. Sem recorrer à violência das armas, os cluniacenses conquistaram o Ocidente pelo exemplo de suas vidas: penetraram nas cortes dos reis, nos palácios dos bispos, nos castelos dos nobres, nas aldeias da plebe… e mais: sobre o sólio de Pedro sentaram-se filhos dessa família espiritual, como o foram São Gregório VII e o Bem-Aventurado Urbano II.

Na raiz das solenes liturgias, das grandiosas catedrais, das harmonias do órgão, do aroma do incenso e de tudo quanto de belo nos legou o passado cristão, vemos em larga medida o trabalho feito por esses homens que só buscavam a Deus e que souberam encontrá-Lo.

Cluny, hoje

Ruínas da Abadia de Cluny

Quando os vendavais da Revolução Francesa varreram a França, destruíram também a Abadia de Cluny. Entre seus monges, brilharam ainda alguns mártires guilhotinados nos trágicos dias do Terror.

No dia 25 de outubro de 1791, as pedras da grandiosa igreja construída por Santo Hugo fizeram ecoar pela última vez o canto suave de seus monges, durante a celebração da Missa. Logo após, o imóvel foi loteado e vendido pelo Estado francês, e a igreja abacial foi demolida, ao longo das duas décadas seguintes.

Quem hoje visita o que resta da outrora magnífica Abadia de Cluny, encontra apenas algumas ruínas, a par de alguns edifícios reconstruídos em parte, que testemunham o inapreciável legado dessa instituição para a Igreja e para o mundo.

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