Ao comentar no seu mais recente livro a oração da Salve Rainha, Mons. João nos desvenda algo do Reino de Maria, era histórica em que o espírito da Mãe de Deus estará presente em cada criatura.
P
ara Dr. Plinio Corrêa de Oliveira, a Salve Regina representava a súplica arquetípica a Nossa Senhora, a obra-prima do discernimento profético e do zelo teológico da Igreja a propósito do papel d’Ela na História da salvação. Por meio dessa oração, ele havia penetrado nos mistérios da Soberana Rainha e desejava ainda recitá-la quando sua guerreira e inocente alma estivesse para deixar este vale de lágrimas a fim de contemplar a luz beatífica nos olhos de sua Senhora e Mãe:
“Por cima desses abismos da morte, além dos quais está um Deus que eu adoro, existe uma ponte – que é a luz de minha alma e tudo em minha vida – cujo tamanho e valor eu meço melhor quanto mais me esmero em medir a profundidade do abismo. […] O sorriso por cima das trevas do impasse e a ponte lançada por cima dos abismos é a devoção a Nossa Senhora. Por isso, na hora da morte devemos dizer: Salve Regina, Mater misericordiæ… E nossa alma será recolhida no Céu”.[1]
Essa excelsa oração assemelha-se a uma música: há trechos em crescendo e diminuendo, em allegro e adagio, de acordo com o significado de cada frase. É a “composição” que contém todas as melodias das relações entre a Beatíssima Trindade e Nossa Senhora. Poderia até se chamar “música divina”, pois resume os infinitos anelos de Deus a respeito de sua Filha, Mãe e Esposa.
Ao rezá-la com piedade, o fiel associa-se aos desejos do Criador e se introduz nos misteriosos vínculos que O unem a Ela. No Coração de Maria, por sua vez, essa oração ressoa como um louvor e um pedido feito pelo Altíssimo, mesmo quando pronunciada por um mísero pecador. Deus como que empresta sua voz ao suplicante, para que ele conviva com a sua predileta. Eis a força da Salve Regina!
A grandeza divina encerrada em uma criatura
Os títulos mariais contidos nessa prece possuem uma elevação que atinge a Deus. Enquanto Filha do Padre Eterno, Nossa Senhora herda uma participação eminente em todos os seus atributos que A faz tocar a essência divina; como Mãe do Filho, governa sua herança e dela Se beneficia na qualidade de Rainha-Mãe; pela condição de Esposa do Espírito Santo, compartilha de seus bens e sobre eles detém plenos direitos.
Desse modo, Maria vive do tesouro da Trindade e encerra em Si a grandeza divina na proporção de uma criatura, como se Deus houvesse elegido entre os homens uma “miniatura” sua. Em outros termos, não Lhe sendo possível gerar uma nova Pessoa Divina consubstancial à Trindade, o Criador A formou com a finalidade de torná-La um “deus” para Si.
Maria encerra em Si a grandeza divina na proporção de uma criatura, como se Deus houvesse elegido entre os homens uma “miniatura” sua
Ora, por vezes a meditação das invocações de Nossa Senhora parte não de sua perspectiva mais universal e transcendente, ou seja, de Deus e seus atributos, mas daquilo que se mostra mais imediato e concreto: o homem e suas necessidades. Embora legítima, essa visualização acaba constituindo um obstáculo para compreender a magnificência do vínculo d’Ela com a Santíssima Trindade, do qual deflui sua ligação com a humanidade.
Sem pretender fazer uma análise exaustiva das invocações dessa inspirada e belíssima oração, o Autor apresentará a seguir suas reflexões sobre algumas delas. Como o leitor poderá comprovar, tais considerações propiciam uma prelibação da glória esplendorosa que Maria Santíssima irradiará por toda a terra nos dias de seu reinado, bem como do convívio transbordante de bondade, perdão e afeto que Ela estabelecerá com os homens.
Segundo São Luís Grignion de Montfort,[2] nesse relacionamento íntimo e maternal a Virgem os iluminará com sua luz, alimentará com seu leite, conduzirá com seu espírito, sustentará com seu braço e guardará sob sua proteção. Ela mesma será a seiva vital que impulsionará cada um de seus filhos e escravos de amor rumo à união com o Sagrado Coração de seu Divino Filho.
Rainha dos homens, dos Anjos e da vontade divina
Rainha e Mãe: dois títulos excelsos da Santíssima Virgem! Todos os predicados pelos quais se louva Nossa Senhora na Salve Regina decorrem desta singular união entre a realeza e a maternidade.
“Salve Rainha”! Maria possui em plenitude as insígnias do poder régio: sua majestade supera em muito a de qualquer monarca, é suprema; sua autoridade não depende da aclamação dos homens, é soberana; seu império se exerce sobre os Céus e a terra, as potestades angélicas e os seres humanos, é absoluto. Ela faz tudo quanto quer, quando quer e como quer. Trata-se, portanto, de uma realeza que emana da realeza divina.
Ora, Deus é a matriz e a substância da realeza: Rei de sua vontade, de seus planos, de seus possíveis; em uma palavra, Rei de Si mesmo desde todo o sempre. Sua realeza consiste no governo absoluto do Bem, que é a sua própria essência.
Por uma especialíssima predileção, Nossa Senhora participa dessa realeza de modo sui generis. Deus como que Se entregou inteiramente a Ela e confiou-Lhe o cetro de seu poder, para que governe a criação, a História e – oh, mistério insondável! – a Ele mesmo. A este título, pode-se afirmar que, por um sublime arcano, Maria é Rainha até da vontade divina, gozando de uma audiência onipotente ante o trono do Altíssimo.[3] Tudo está sob seus pés, e a Trindade Se compraz em ser regida por sua Filha, Mãe e Esposa.
Deus como que Se entregou inteiramente a Nossa Senhora e confiou-Lhe o cetro de seu poder, para que governe a criação, a História e – oh, mistério insondável! – a Ele mesmo
Isso supõe da parte de Nossa Senhora uma entranhada união com as Três Pessoas Divinas, que A torna incapaz de realizar algo contrário a seus desígnios. Em Deus e em Maria pulsam um mesmo Coração e uma mesma vontade. É como se o Todo-Poderoso lesse no Coração Imaculado esta sentença: “Sem Mim nada podeis fazer” (Jo 15, 5). O Criador Se submeteu de tal maneira à Virgem que, por assim dizer, sem Ela nada pode fazer.[4]
Tão ousada afirmação deve ser entendida cum grano salis, pois só Deus é o Ser por excelência,[5] o Ato Puro,[6] do qual procedem todas as coisas e por quem tudo é sustentado na ordem do ser. Feita essa ressalva, parece encontrar-se aqui o âmago inefável da Sagrada Escravidão a Jesus por Maria. Aquilo que o Senhor, em razão de sua justiça, poderia recusar a qualquer pessoa que d’Ele se aproximasse diretamente, sempre será concedido se a súplica partir do Coração de sua Mãe Santíssima.
“Salvai-me, Rainha!”
Tal é o esplendor da realeza e do poder de Nossa Senhora. Não há, portanto, invocação mais bela nem mais eficaz para se recorrer a Ela. Bem o compreendeu Dr. Plinio, ainda menino, ao recitar a Salve Regina num momento de apuro.[7] Julgando, devido à pouca idade, que a saudação latina salve tivesse o sentido do verbo salvar, dirigiu à Auxiliadora dos Cristãos um brado cheio de filial confiança: “Salvai-me, Rainha!” E foi atendido!
Também a cada um de nós bastará clamar “Salvai-me, Rainha!”, e logo Ela estenderá o cetro e moverá a vontade do Pai. Esse apelo ressoa a seus ouvidos como se fosse dito: “Oh, Vós, que sois a Rainha das vontades divinas e que governais o Coração de Deus, salvai-me!”
As fibras do maternal Coração de Maria não resistem a quem assim recorre à sua intercessão. Invocar sua realeza significa, pois, invocar sua onipotência suplicante perante o Senhor. Não obstante, é necessário que o pedido seja feito com toda a confiança e com a certeza de que Ela nos salvará.
Personificação máxima da misericórdia divina
A expressão “Mãe de misericórdia”, por sua vez, evoca a missão ímpar da mãe no convívio familiar. Se ao pai cabe representar a bondade forte unida à justiça, à mãe compete reduzir esta justiça a proporções diminutas, a limites ínfimos, a um quase desaparecimento. Ela deve fazer luzir a misericórdia, o perdão e a indulgência num grau inimaginável. A harmonia no ambiente doméstico é fruto propriamente da ternura materna.
Ora, Nossa Senhora Se distingue como a Mãe das mães. Designá-La como “Mãe de misericórdia” parece, até certo ponto, uma redundância. Contudo, esse título se torna compreensível se levarmos em consideração que o sentido ordinário do vocábulo mãe fica muito aquém de sua maternidade, a qual só tem proporção com o próprio Deus. Por assim dizer, em Maria se esgotam os limites da misericórdia: Ela é a personificação máxima deste atributo divino posto numa criatura.
Seu perdão maternal não significa, porém, condescendência com o pecado e o vício, como muitos erroneamente imaginam. Concebida em plenitude de graça e sem qualquer laivo da culpa original, Nossa Senhora possui uma noção claríssima da ofensa que nossas faltas representam contra Deus e contra a ordem por Ele estabelecida no universo. Por conseguinte, Ela tem uma rejeição e um ódio perfeitos ao pecado e a qualquer forma de mal: “Perfecto odio oderant illos” (Sl 138, 22).
O perdão maternal de Maria Santíssima não significa, porém, condescendência com o pecado e o vício, como muitos erroneamente imaginam
Em que consiste, então, sua misericórdia? Exatamente em obter graças maiores e superabundantes a fim de que o pecador arrependido vença suas más inclinações e busque com toda a força de alma a santidade máxima a que está chamado. E nisso se mostra seu perdão, pois Ela abstrai da necessidade prévia de merecimentos para obter tais benefícios, aplicando copiosamente a cada um os méritos infinitos da Redenção de seu Divino Filho, dos quais é a universal Medianeira e dadivosa Dispensadora.
(Continua no próximo número)
Extraído, com pequenas adaptações, de:
Maria Santíssima! O Paraíso de Deus revelado aos homens.
São Paulo: Arautos do Evangelho, 2020, v.III, p.129-138