Após analisar as riquezas contidas nas primeiras palavras da Salve Rainha, Mons. João continua seus comentários a essa célebre oração trazendo a lume maravilhas sobre a pessoa de Nossa Senhora e sua missão junto aos homens.
A oração da Salve Regina faz referência a três insignes títulos de Nossa Senhora: “vida, doçura e esperança nossa, salve!” Há alguma relação entre estas invocações e as precedentes? Ou, quiçá, constituem elas meros adornos literários?
Se examinadas com atenção, percebe-se que se trata de decorrências ou aplicações práticas das anteriores e de frutos da misericórdia.[1]
“Vida nossa”: essência do Segredo de Maria
Afirmar que algo é a “vida” de uma pessoa significa que sua existência não teria sentido se privada do elemento em apreço. Assim, poder-se-ia dizer que a reforma da Ordem Cisterciense empreendida por São Bernardo de Claraval era a sua vida, pois nela encontrava a finalidade para a qual Deus o criara. De modo similar, para um cavaleiro templário a defesa da Igreja e dos Lugares Santos contra a sanha dos infiéis era a sua vida, ou seja, o objeto de suas alegrias e esperanças em meio aos sofrimentos e dissabores da realidade terrena. E caberia aplicar a mesma definição a Santa Isabel da Hungria, que fez do serviço aos enfermos o seu gozo, a sua vida.
Por uma razão análoga, porém mais excelsa, chamar Nossa Senhora de “nossa vida” constitui um dos aspectos mais profundos da devoção a Ela, certamente relacionado com a essência do Segredo de Maria.[2] Por quê?
Ao refletirmos sobre o mistério da Encarnação, em especial o período da gestação do Menino Jesus no claustro puríssimo de sua Mãe, um fato extraordinário nos colhe a atenção: o Homem-Deus quis que, durante nove meses, sua vida fosse uma participação da vida de Maria, por Ela sustentada e d’Ela dependente. Algo de sua existência humana estava sujeita à existência de Nossa Senhora.
Por conseguinte, em seu dinamismo especulativo e ávido de conhecer a verdade última sobre os arcanos de Deus, caberá à Teologia futura se interrogar: se Cristo quis depender da vida d’Ela no tempo – a ponto de o Menino Jesus, com toda a propriedade, poder exclamar no ventre virginal de Maria: “Minha Mãe, vida de minha vida!” –, algo de sua vida divina e eterna não dependeria d’Ela também? De que modo e com que matizes, uma vez que a questão não se refere a termos absolutos? Essa dependência não obedeceria a um sublime critério que regeria o relacionamento do Verbo Encarnado com as criaturas? Com efeito, embora haja n’Ele uma dualidade de naturezas, a divina e a humana, a unidade de Pessoa é resguardada pela união hipostática na Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Assim, a Criança cuja vida a Virgem sustentava em seu seio era o próprio Deus.
A reforma da Ordem Cisterciense empreendida por
São Bernardo de Claraval era a sua vida;
para um cavaleiro templário a defesa da Igreja e dos Lugares Santos era a sua vida; e para Santa Isabel da Hungria, sua vida se fez no serviço aos enfermos
Mutatis mutandis, um fenômeno similar ao que se passou com Jesus durante sua gestação deverá se dar com aqueles a quem Nossa Senhora introduzir em seu Segredo: Ela os sustentará com sua existência e os alimentará com suas virtudes.[3] Por esse vínculo materno, Maria Se tornará a vida de seus filhos no plano salvífico e sobrenatural, os quais não mais poderão pensar, querer ou agir sem Ela. Participar assim da vida da Santíssima Virgem constitui o mais alto grau de união com Deus e o anseio mais profundo das almas que aspiram à perfeição: “Minha Mãe, dai-me a graça de viver em vosso interior, como o Menino Jesus aí viveu durante nove meses. Sede a razão da minha existência e a vida da minha vida. Amém”.
Receptáculo das doçuras do Coração de Jesus
Nossa Senhora é também “nossa doçura”, quando a Ela recorremos humildemente. Essa doçura se manifesta na afabilidade, condescendência e bondade com que Maria nos acolhe, mesmo quando estamos na pior e mais lamentável situação de alma. Com ainda maior solicitude que o pai da parábola do filho pródigo (cf. Lc 15, 11-32), Ela sai ao encontro do filho chagado e maltrapilho que se avizinha, o abraça e o beija, unge-lhe as feridas com bálsamo, reveste-o com a melhor túnica e realiza um grande banquete para celebrar a recuperação daquele fruto de suas entranhas que havia se perdido.
Mãe de Deus e nossa, Ela nos cobre de afeto, suavizando as agruras e os sofrimentos deste vale de lágrimas, e comunica aos nossos corações ânimo renovado para os combates que ainda nos aguardam. Nossa Senhora Se manifesta como “nossa doçura”, quer quando afasta os obstáculos de nossos caminhos e nos conduz pelos jardins paradisíacos das consolações interiores, quer quando permite que passemos por aridezes espirituais, estorvos e até fracassos, à semelhança de seu Divino Filho na Cruz. Em qualquer circunstância Ela nos obtém as graças, virtudes e forças necessárias para sermos os lutadores e heróis de seu glorioso Reino.
Quão amarga se torna a vida daqueles que se embrenham nas vias do pecado e rejeitam as ternuras desta Mãe, cujo Imaculado Coração é o receptáculo das doçuras do Sagrado Coração de Jesus!
Maria nos acolhe, mesmo quando estamos na pior e mais lamentável situação de alma, com ainda maior solicitude que o pai da parábola do filho pródigo
Esperança cheia de alegria e confiança
A tríade de louvores a Maria Santíssima encerra-se com a invocação “esperança nossa”. Essa virtude se refere, sobretudo, à glória futura (cf. Rm 5, 2), mas abarca igualmente os interesses espirituais e temporais da vida presente. Como ensina São Tomás,[4] é por ela que se evitam os males e se procura o bem, pois não se espera senão o bem que se deseja e se ama. Ademais, a esperança porta consigo um gozo de alma antecipado à posse do bem almejado[5] e, por isso, o Apóstolo exorta: “Sede alegres na esperança!” (Rm 12, 12).
A Salve Regina não alude, porém, a uma esperança qualquer, mas à “esperança nossa”: Àquela que, sendo a Onipotência Suplicante e a Mãe misericordiosa do pecador, é incapaz de negar-lhe uma ajuda, pois nunca se ouviu dizer que, tendo alguém recorrido à sua proteção, implorado sua assistência ou reclamado seu socorro, fosse por Ela desamparado.
De que valeria uma vida sem doçura? Por certo, seria um pesadelo. E uma doçura sem esperança? Sem dúvida, não passaria de um gozo efêmero, que não tardaria a se converter em amargura. Ao contrário, a esperança enche a alma de alegria e faz desabrochar a confiança. Esta é a esperança que a Estrela da Manhã transmite a seus filhos e escravos, antecipando-lhes o gozo do Sol de Justiça, Cristo Senhor nosso.
Grandeza que acolhe, eleva e nobilita
Unindo os extremos da esfera espiritual, após discorrer sobre as grandezas de Nossa Senhora a Salve Regina se volta para a pequenez, a insuficiência e a fraqueza dos homens: “A vós bradamos, os degredados filhos de Eva. A vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas. Eia, pois, Advogada nossa, esses vossos olhos misericordiosos a nós volvei”.
Haveria atitude de alma mais apropriada do que essa? Ante a sublimidade das graças e dons de Maria, quem poderia julgar-se alguma coisa? A única postura razoável consiste em contemplá-La a partir da miséria e da insignificância de um degredado filho de Eva, ou seja, admirá-La com coração humilde. É o exemplo que Ela mesma nos dá no cântico do Magnificat, ao profetizar que todas as gerações A proclamariam Bem-Aventurada porque Deus tinha olhado “para a humildade de sua Serva” (Lc 1, 48).
Entretanto, antes de se tornar pequeno é preciso apreciar a grandeza da Santíssima Virgem, pois esta perspectiva equilibra a ponderação das misérias e fraquezas. Longe de desdenhar os filhos débeis e desvalidos, Ela os acolhe, eleva e nobilita, não só por desvelo e compaixão, mas também pelo prazer que experimenta ao vê-los necessitados de seu amparo. Ela Se alegra com sua pequenez, porque assim pode ser plenamente Mãe de cada um.
O próprio Deus quis Se fazer Filho de Maria, frágil e pequenino em seus braços, para que Nossa Senhora exercesse inteiramente sua maternalidade sobre Ele. E, depois de adornar sua alma de todas as virtudes e coroá-las com o dom da Maternidade Divina, aprouve-Lhe assumir a humanidade na condição de criança, para que sua filiação a Nossa Senhora fosse perfeita e Ele pudesse, numa posição inferior na ordem da natureza, contemplar as grandezas de sua Mãe. Trata-se de uma situação paradoxal, na qual o Verbo Eterno inverte os papéis, como que dizendo: “Ela é tão bela, tão santa, tão semelhante a Mim que Eu, Deus todo-poderoso, não resisto em Me encarnar, para ser Filho d’Ela e, portanto, de alguma forma inferior a Ela”.
Longe de desdenhar os filhos débeis e desvalidos, Ela os acolhe, eleva e nobilita, pelo prazer que experimenta ao
vê-los necessitados de seu amparo
Nesse adorável ato de submissão do Redentor a Nossa Senhora estão inseridos todos os homens pois, ao Se abandonar aos cuidados d’Ela, Jesus Lhe entregou cada um como filho seu. E, sendo o Homem-Deus causa exemplar do agir humano, o modo de Ele Se relacionar com sua Mãe tornou-se o paradigma para os filhos e escravos d’Ela.
Essa passagem da Salve Regina parece sugerir ao fiel duas graças insignes a serem suplicadas: de um lado, a possibilidade de penetrar, compreender e amar o Segredo de Maria; de outro, a capacidade de aniquilar-se e fazer-se pequeno, a fim de mais intimamente dele participar. Os fracassos, misérias e faltas não devem constituir um fator de abatimento e desânimo espiritual. Pelo contrário, a Providência os utiliza como instrumentos para “esvaziar” a alma de si mesma e “enchê-la” da Virgem Santíssima, como explica São Luís Grignion de Montfort.[6]
Não encontrando um termo mais apropriado para exprimir o pendor maternal de Nossa Senhora pelos filhos faltosos em face do Supremo Juiz, a Igreja A intitulou “Advogada nossa”. Essa Advogada, porém, não Se contenta em defender os vermezinhos e miseráveis pecadores,[7] mas assume como próprias as suas causas. Assim, ao se apresentarem no tribunal eterno, Deus já não vê suas fraquezas: no lugar delas, contempla apenas Maria!
À semelhança da Rainha Ester ante o Rei Assuero (cf. Est 5, 1-8), basta Nossa Senhora comparecer junto ao trono divino para que o Altíssimo Lhe conceda absolutamente tudo. Sua simples existência é garantia de vitória nas causas mais impossíveis. Recorramos, pois, cheios de confiança e com o coração contrito, à nossa invencível Advogada!
“Caro Christi, caro Mariæ”: o ápice da Sagrada Escravidão
Entre as sublimidades mariais que a Salve Regina manifesta está a aclamação “E depois deste desterro, mostrai-nos Jesus, bendito fruto de vosso ventre”. A mútua escravidão de amor existente entre Jesus e Maria era tão entranhada que ambos possuíam não apenas o mesmo espírito e o mesmo Coração, mas até a mesma carne: “Caro Christi, caro Mariæ”.[8]
Em virtude dessa união, Nossa Senhora experimentou no seu Coração as indizíveis dores sofridas por Jesus Cristo em seu Corpo sagrado durante a Paixão. Trata-se de um regime de Sagrada Escravidão[9] levado a um tal auge de perfeição, que não há palavras adequadas para exprimi-lo; mais elevado e grandioso, somente a eterna pericórese das Três Pessoas Divinas.
Ora, precisamente em decorrência dessa escravidão amorosa Nossa Senhora Se tornou a Corredentora do gênero humano. Por desígnio do Padre Eterno, Ela devia consentir em cada sofrimento de seu Divino Filho, ciente de que antes o Salvador já havia consentido nos sofrimentos d’Ela. Surge, assim, uma pergunta inevitável, a qual só pode ser entendida pelo prisma da Sagrada Escravidão… Quem sofreu mais: Maria vendo a Paixão de seu Filho, ou Jesus contemplando as dores de sua Mãe?
Quem sofreu mais: Maria vendo a Paixão de seu Filho, ou Jesus contemplando as dores de sua Mãe?
A própria graça da troca de corações, de que tratam muitos Santos e Doutores, parece ficar aquém desse sublime mistério da Sagrada Escravidão revelado pela Salve Regina ao se referir a Jesus como o bendito fruto do ventre virginal de Maria. Com efeito, além de Filha, Mãe, Esposa e Escrava de Deus, Ela é sua Senhora pois, a partir do momento em que o Verbo A escolheu como Mãe, Ele Se fez também seu Escravo. Neste ato se manifesta o cerne da vocação redentora: ser escravo. Poder-se-ia mesmo afirmar que, sem a escravidão da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade ao Pai e a Maria, a Redenção não seria possível.
De outra parte, pelo vínculo de escravidão com seu Divino Filho, Nossa Senhora Se tornou o canal pelo qual a essência da vida trinitária, mútua escravidão de amor, é comunicada aos homens. Desse modo fica patente que os auges de grandeza se revelam por auges de escravidão!
“O clemens, o pia, o dulcis Virgo Maria!”
Tanta sublimidade encerra a última tríade de aclamações da Salve Regina que se diria ter sido o fiel devoto arrebatado à contemplação dos píncaros de santidade de Nossa Senhora. Se Deus então lhe dissesse “Eis o meu Paraíso!”, daquele coração enlevado brotaria a frase perfeita: “Ó clemente, ó piedosa, ó doce sempre Virgem Maria!”
Que maravilhas terá vislumbrado São Bernardo quando, num êxtase, completou com essa breve sentença nossa oração? Certamente o que nem o grande Moisés, nem o ígneo Elias jamais viram: o esplendor da alma de Maria Santíssima, na qual reconheceu a face do próprio Deus! Fascinado por sua luz, ele não encontrou senão esta tríplice exclamação para exprimir a imensa graça recebida: “O clemens, o pia, o dulcis Virgo Maria!”
Estava tudo dito. E, no abrasado e aguerrido coração do Doutor Melífluo, já fora fundado o Reino de Maria.
Extraído, com pequenas adaptações, de:
Maria Santíssima! O Paraíso de Deus revelado aos homens.
São Paulo: Arautos do Evangelho, 2020, v.III, p.138-149
Notas
[1] Este artigo é continuação de Divina Música das harmonias mariais, no qual são comentadas as palavras iniciais da oração: “Salve Regina, Mãe de misericórdia…”
[2] Em seus escritos, São Luís Maria Grignion de Montfort se refere à escravidão de amor a Maria, por ele preconizada, como um segredo revelado pelo Altíssimo de uma via segura para a santidade (cf. SÃO LUÍS MARIA GRIGNION DE MONTFORT. Le secret de Marie, n.1). Mais do que em práticas piedosas, esse segredo consiste em fazer todas as coisas com Maria, em Maria, por Maria e para Maria; tem por principal fruto estabelecer a própria vida da Santíssima Virgem na alma; e a fidelidade a ele é fonte extremamente rica de novas graças (cf. Idem, n.28; 53; 55).
[3] Cf. SÃO LUÍS MARIA GRIGNION DE MONTFORT. Traité de la vraie dévotion à la Sainte Vierge, n.206.
[4] Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I-II, q.40, a.7; II-II, q.20, a.3.
[5] Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I-II, q.40, a.8; Scriptum super Sententiis. L.III, d.26, q.1, a.3.
[6] Cf. SÃO LUÍS MARIA GRIGNION DE MONTFORT, op. cit., n.78-82.
[7] Cf. SÃO LUÍS MARIA GRIGNION DE MONTFORT. L’amour de la Sagesse Éternelle, n.226.
[8] Do latim: “A Carne de Cristo é a carne de Maria”.
[9] Nota da Redação: o Autor alude à escravidão de amor recomendada por São Luís Maria Grignion de Montfort no Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem, da qual Nosso Senhor Jesus Cristo nos deu sublime exemplo ao Se encarnar no claustro virginal de Maria e ser-Lhe submisso durante trinta anos (cf. SÃO LUÍS MARIA GRIGINION DE MONTFORT. Traité de la vraie dévotion à la Sainte Vierge, n.18).
Salve Rainha, vida, doçura, esperança nossa.
Tudo que precisamos nestes dias de isolamento é sermos escravos de Jesus em Maria.
Por Jesus, Ela nos dá vitalidade, com sua doçura advinda do Senhor Criador, nos dá a esperança da vida plena.