No maravilhoso universo da Comunhão dos Santos, o mais insignificante de nossos atos, realizado na caridade, reverte em proveito de todos os fiéis; e todo pecado pesa negativamente nessa comunhão.
Desafiando o progresso científico moderno, o corpo humano continua sendo ainda um mistério, sob muitos aspectos. À medida que conhecemos melhor suas leis e operações, surgem novas incógnitas e também novas maravilhas se desvendam, despertando admiração.
Com efeito, quem não fica hoje assombrado diante da espetacular eficácia do sistema imunológico de nosso organismo? Que cientista poderá explicar com exatidão a extraordinária agilidade, capacidade e precisão de nosso sistema nervoso? Ou como não ficar deslumbrado com o incansável trabalho do coração, o qual, com suas batidas ritmadas, bombeia sem cessar o sangue para os outros órgãos?
Ora, o corpo humano é a melhor imagem ao nosso alcance de uma rica e profunda verdade de nossa Fé: a Comunhão dos Santos. Reafirmada por nós cada vez que recitamos o Credo, ela é, entretanto, raras vezes objeto de nossas cogitações, talvez por transcender a esfera temporal e terrena e nos conduzir a realidades alheias às preocupações cotidianas.
Percorramos, pois, alguns trechos das cartas de São Paulo, consideremos as reflexões do famoso pregador dominicano Jacques-Marie-Louis Monsabré, e recorramos aos ensinamentos do Concílio Vaticano II e de alguns dos Papas mais recentes para nos adentrarmos neste apaixonante tema.
Cristo, cabeça do Corpo Místico da Igreja
Conforme ensina o Apóstolo, há na Santa Igreja uma íntima relação entre os seus membros: “Embora sejamos muitos, formamos um só corpo em Cristo” (Rm 12, 4-5), o Corpo Místico de Cristo. E, como todo corpo bem constituído, ele tem uma Cabeça “da qual todo o corpo, pela união das junturas e articulações, se alimenta e cresce conforme um crescimento disposto por Deus” (Col 2, 19).1 De Cristo, “cabeça do Corpo, da Igreja” (Rm 12, 4-5), dimana a vida, a força e a vitalidade para o resto do organismo.
O próprio Redentor nos explica esta realidade na parábola da videira e dos sarmentos: “Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o agricultor. Todo ramo que não der fruto em Mim, Ele o cortará […]. O ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira. Assim também vós: não podeis tampouco dar fruto, se não permanecerdes em Mim” (Jo 15, 1.4).
“Todos vós vos revestistes de Cristo”
Todos os batizados, por mais diversos que sejam pela raça, nação ou classe social, fazem parte deste Corpo. Ensina-nos o Apóstolo: “Todos vós que fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo. Já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gal 3, 27-28). Na epístola aos Efésios, ele insiste na necessidade desta união: “Sede solícitos em conservar a unidade do Espírito no vínculo da paz. Sede um só corpo e um só espírito, assim como fostes chamados pela vossa vocação a uma só esperança” (Ef 4, 3-4).
Esse importante ensinamento materializava-se nos costumes vigentes nos primórdios da Igreja, como narra o livro dos Atos dos Apóstolos: “A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém dizia que eram suas as coisas que possuía, mas tudo entre eles era comum” (At 4, 32).
O relacionamento entre os membros do Corpo Místico, muito diferentes entre si, regia-se pela caridade e pelo espírito de comunhão. Todos eles, desde os sucessores dos Apóstolos até a mais humilde viúva, articulavam-se numa harmônica convivência que não visava de nenhum modo destruir os carismas ou superioridades dos mais dotados, nem permitia o menosprezo dos inferiores, pois, como diz o Apóstolo das Gentes: “Em um só Espírito fomos batizados todos nós, para formar um só corpo, judeus ou gregos, escravos ou livres; e todos fomos impregnados do mesmo Espírito. Assim o corpo não consiste em um só membro, mas em muitos. […] Deus dispôs no corpo cada um dos membros como Lhe aprouve. Se todos fossem um só membro, onde estaria o corpo? Há, pois, muitos membros, mas um só corpo” (I Cor 12, 13-14.18-20).
Os três estados da única e indivisível Igreja
Esse Corpo Místico, porém, não é constituído apenas da Igreja visível, peregrina na Terra. Como nos explica o padre Monsabré, esta “não é senão uma porção da vasta assembleia na qual se aplicam diversamente os efeitos da Redenção; ela engloba também a Igreja Triunfante e a Igreja Padecente”.2
Igreja Triunfante é a porção do Corpo Místico que já se encontra na eterna bem-aventurança, termo final de nossa caminhada. Por estar junto do trono de Deus, essa assembleia de Eleitos roga constantemente pelos seus irmãos que ainda peregrinam no mundo.
Denomina-se Igreja Padecente o conjunto de fiéis que sofrem no Purgatório, expiando seus defeitos e purificando suas vistas espirituais para encontrar-se com Deus.
E nós que, neste vale de lágrimas, lutamos para, pelos méritos infinitos de Nosso Senhor Jesus Cristo, conquistar a coroa de glória, constituímos a Igreja Militante (Ecclesia Militans), segundo o termo clássico, que põe em realce a necessidade de combater nesta vida o pecado e as más inclinações.
Estes três estados da única e indivisível Igreja Católica estão estreitamente unidos entre si, como bem acentua o Concílio Vaticano II: “Enquanto o Senhor não vier na sua majestade e todos os seus Anjos com Ele (cf. Mt 25, 31) e, vencida a morte, tudo Lhe for submetido (cf. I Cor 15, 26-27), dos seus discípulos uns peregrinam sobre a Terra, outros, passada esta vida, são purificados, outros, finalmente, são glorificados e contemplam ‘claramente Deus trino e uno, como Ele é’; todos, porém, comungamos, embora em modo e grau diversos, no mesmo amor de Deus e do próximo, e todos entoamos ao nosso Deus o mesmo hino de louvor. Com efeito, todos os que são de Cristo e têm o seu Espírito, estão unidos numa só Igreja e ligados uns aos outros n’Ele (cf. Ef 4, 16)”.3
A bem-aventurança celeste desce até nós
Para explicar o relacionamento entre os membros da Igreja Militante e os da Triunfante, o padre Monsabré recorre a uma expressiva alegoria:
“Em relação à Igreja Triunfante, a Igreja Militante está em condições análogas às de um exército que combate longe de seu país, no qual tudo é ordem, repouso e prosperidade. Como não manteria esse exército os olhos voltados para a Pátria, de onde espera os recursos e reforços necessários para levar a bom termo sua árdua campanha? E, de outro lado, poderia a Pátria, para usufruir de uma felicidade egoísta, desinteressar-se das fadigas e sofrimentos desses valentes filhos que se batem pela honra nacional? Seria possível não haver entre o exército e a nação uma íntima solidariedade, expressa por uma confiante e generosa permuta de orações e de solicitudes, de votos e de benefícios, até o dia em que os soldados vitoriosos desfilem em triunfo entre a multidão de seus concidadãos cujos corações estavam com eles na terra estrangeira?”.4
Assim, a Igreja peregrina na Terra implora e espera da Pátria Celeste sua eficaz assistência, para um dia poder também ela triunfar. Grave erro seria pensar que, na eterna glória, os Bem-aventurados se esqueceram de seus irmãos na Terra. Muito pelo contrário, “eles conhecem mais que nós nossas necessidades e, antes mesmo de chegar-lhes nossa oração, foram preparados por Deus para ouvi-la e atendê-la”.5
Essa certeza de um auxílio contínuo deve nos animar e, mais ainda, fazer exultar de alegria. Pois sabemos que, em meio às dificuldades do dia a dia, temos intercessores velando a todo instante por nós. “A nossa fraqueza é assim grandemente ajudada pela sua solicitude de irmãos”6 — ensina o Concílio Vaticano II.
Objeto de ternura da Terra e do Céu
Contudo, se a Igreja peregrina se beneficia da intercessão dos Bem-aventurados, também ela tem uma responsabilidade e uma obrigação: devemos rogar por aqueles que adormeceram na paz do Senhor, mas ainda não gozam da visão beatífica, as almas dos fiéis defuntos que se encontram no Purgatório.
“Destroços salvos do furor de um mar fecundo em naufrágios, recrutas do exército celestial, portando em sua fisionomia profundamente triste e tranquila a marca da Igreja da qual saíram e daquela na qual entrarão, os membros da Igreja Padecente são objeto das ternuras da Terra e do Céu. Como o infeliz Jó, eles clamam a nós: ‘Piedade! Tende piedade, meus amigos!’ (Jó 19, 21). Nós rezamos por eles. Unindo sua poderosa voz à nossa, os Eleitos nos oferecem — do tesouro da misericórdia divina que eles enriqueceram com seus méritos — a consolação, o apaziguamento, a libertação”.7
Leis que regulam esse relacionamento
Essa sinfonia produzida pela permuta de bens e intercessões entre a Igreja Triunfante, Militante e Padecente rege-se por duas leis estreitamente vinculadas à natureza do Corpo Místico.
A primeira é a lei da unidade: “Quanto mais perfeita for a unidade, mais fácil, pronta e abundante será a comunicação de bens”,8 explica Monsabré.Esse princípio tão óbvio da ordem natural aplica-se com propriedade ainda maior na ordem sobrenatural. Desse modo, quanto mais estivermos unidos com Cristo e com a Igreja, mais nos beneficiaremos da Comunhão dos Santos.
A segunda é assim formulada pelo teólogo dominicano: “Jesus Cristo, princípio da unidade, mantém sob sua dependência a circulação dos bens espirituais comunicados a cada um dos membros de seu Corpo Místico”.9 Porque a Igreja, conforme ensina o Catecismo, “não é somente congregada em torno d’Ele; é unificada n’Ele, em seu Corpo”.10
Sendo assim, cabe-nos uma única atitude: procurar estar sempre mais unidos ao Divino Salvador e à sua Igreja através da oração, esforçando-nos por viver segundo os Mandamentos e recorrendo com frequência aos Sacramentos, principalmente ao da Eucaristia, na qual recebemos o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo, fonte de todas as graças.
A comunhão dos bens espirituais
A Igreja é a assembleia de todos os Santos: os do Céu, os do Purgatório e os da Terra. “A Comunhão dos Santos é precisamente a Igreja”,11 afirma o Catecismo. E explica que “o termo Comunhão dos Santos tem dois significados intimamente interligados: ‘comunhão entre as coisas santas’ (sancta) e ‘comunhão entre as pessoas santas’ (sancti)”.12 E logo a seguir acrescenta: “‘Sancta sanctis! (o que é santo, para aqueles que são santos)’: assim proclama o celebrante na maior parte das liturgias orientais, no momento da elevação dos santos Dons antes do serviço da Comunhão. Os fiéis (sancti) são alimentados pelo Corpo e Sangue de Cristo (sancta), para crescerem na comunhão do Espírito Santo (Koinonia) e de comunicá-la ao mundo”.13
Quais são essas “coisas santas” postas em movimento na vida do Corpo Místico? O Catecismo nos aponta a comunhão na Fé, dos Sacramentos, dos carismas, dos bens terrenos e da caridade.14 E o padre Monsabré as resume em três categorias de bens: as boas obras, as graças e os méritos.15
Recorramos às orações dos Santos
As graças — entendidas enquanto o conjunto de favores e benefícios que nos são proporcionados pela vida sobrenatural — circulam por via de intercessão, explica o douto dominicano.
Com efeito, ensina o Concílio Vaticano II: “É, portanto, muito justo que amemos estes amigos e coerdeiros de Jesus Cristo, nossos irmãos e grandes benfeitores, que demos a Deus, por eles, as devidas graças, lhes dirijamos as nossas súplicas e recorramos às suas orações, ajuda e patrocínio, para obter de Deus os benefícios, por seu Filho Jesus Cristo, Nosso Senhor e Redentor e Salvador único. Porque todo o genuíno testemunho de veneração que prestamos aos santos tende e leva, por sua mesma natureza, a Cristo, que é a coroa de todos os santos, e, por Ele, a Deus, que é admirável nos seus santos e neles é glorificado”.16
O Tesouro da Igreja
A circulação das graças para toda a Igreja é de certo modo completada por outro conjunto de bens: os méritos. É verdade que, enquanto ordenado à bem-aventurança, o mérito é estritamente pessoal. Todavia, os méritos decorrentes da prática de boas obras são sempre acompanhados de uma virtude expiatória destinada a diminuir a dívida das penas impostas pela justiça divina. Quanto mais penosas são nossas boas obras, mais estão imbuídas da virtude expiatória. E quanto mais progredimos nas vias do bem, mais se torna comunicável aos outros essa força expiatória decorrente de nossos atos, da qual já não temos necessidade.
O padre Monsabré ilustra esta doutrina com um sugestivo exemplo: “Dois homens são igualmente desprovidos de bens, mas um deles está cheio de dívidas, das quais o outro está de todo livre. Ambos se lançam ao trabalho com o mesmo ardor, nele despendem seus dias, suas energias, suas vidas. E são recompensados pelo mesmo sorriso da fortuna. Chegados ao termo de seus esforços, estão os dois igualmente ricos? Não. O primeiro apenas ficou livre de suas dívidas; o segundo possui todo o fruto de seus trabalhos, e pode beneficiar com largueza os necessitados”.17
Esses dois homens representam o pecador e o santo. Não precisando expiar senão pequenas faltas, o santo acumula méritos que podem ser aplicados em benefício daqueles que ainda se encontram endividados. O conjunto desses méritos é denominado o tesouro da Igreja.
Dentro desse tesouro são postos à nossa disposição os méritos infinitos de Nosso Senhor Jesus Cristo que, “sendo rico, Se fez pobre por vós, a fim de vos enriquecer por sua pobreza” (II Cor 8, 9).
A obrigação de dar bons exemplos
Graças e méritos vêm acompanhados de um terceiro conjunto de bens: as boas obras, que são postas em circulação na Comunhão dos Santos pela via do exemplo e da imitação.
Temos, em primeiro lugar, o supremo exemplo de Cristo, o qual Se fez homem e trilhou o caminho que nos apontou. Abaixo d’Ele, mas incomparavelmente acima de todos os Bem-aventurados, o de Nossa Senhora. E o dos Santos, verdadeiras estrelas que nos indicam o rumo a seguir para chegar à glória celeste.
Contudo, este último conjunto de dons da Comunhão dos Santos implica um compromisso de todos nós, membros do Corpo Místico: temos também nós obrigação de dar bons exemplos. Nossa vida inteira deve ser um reflexo daquilo em que acreditamos. Portanto, nossos atos são muito mais importantes do que podem nos parecer. Pois, além de incrementar o tesouro da Igreja, devem servir de poderoso estímulo para os outros praticarem o bem.
Não estamos sós na estrada que conduz ao Céu
“Oh! Que mundo maravilhoso o da Comunhão dos Santos!”.18 Bem pode ser nossa essa exclamação do Papa Paulo VI, pois a consideração dessa verdade de Fé abre diante de nós um grandioso panorama: o mais insignificante de nossos atos, realizado na caridade, reverte em proveito de todos os fiéis, vivos ou defuntos; e, em sentido contrário, todo pecado pesa negativamente nessa comunhão.19
Ensina-nos o Apóstolo: “Nenhum de nós vive para si, e ninguém morre para si” (Rm 14, 7). E especifica: “Se um membro sofre, todos os membros padecem com ele; e se um membro é tratado com carinho, todos os outros se congratulam por ele” (I Cor 12, 26).
Não estamos, portanto, sozinhos na estrada rumo ao Céu: os Santos nos acompanham em nossas dificuldades. Procuremos nos beneficiar cada vez mais desse magnífico tesouro, sem nos esquecermos de que temos também um dever frente à Igreja. Poderemos assim proclamar não só com os lábios, mas, sobretudo, com a vida: “Creio na Comunhão dos Santos!”. ◊
Notas