Em face aos conceitos egoístas de amor e de justiça imperantes no mundo antigo, Nosso Senhor ensina que a verdadeira alegria está no dar-se completamente aos outros, seguindo seu divino exemplo.
Evangelho do VII Domingo do Tempo Comum
Naquele tempo, falou Jesus aos seus discípulos: 27 “A vós que Me escutais, Eu digo: Amai os vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam, 28 bendizei os que vos amaldiçoam, e rezai por aqueles que vos caluniam. 29 Se alguém te der uma bofetada numa face, oferece também a outra. Se alguém te tomar o manto, deixa-o levar também a túnica. 30 Dá a quem te pedir e, se alguém tirar o que é teu, não peças que o devolva. 31 O que vós desejais que os outros vos façam, fazei-o também vós a eles.
32 Se amais somente aqueles que vos amam, que recompensa tereis? Até os pecadores amam aqueles que os amam. 33 E se fazeis o bem somente aos que vos fazem o bem, que recompensa tereis? Até os pecadores fazem assim. 34 E se emprestais somente àqueles de quem esperais receber, que recompensa tereis? Até os pecadores emprestam aos pecadores, para receber de volta a mesma quantia. 35 Ao contrário, amai os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai sem esperar coisa alguma em troca. Então, a vossa recompensa será grande, e sereis filhos do Altíssimo, porque Deus é bondoso também para com os ingratos e os maus. 36 Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso.
37 Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai, e sereis perdoados. 38 Dai e vos será dado. Uma boa medida, calcada, sacudida, transbordante será posta no vosso colo; porque com a mesma medida com que medirdes os outros, vós também sereis medidos” (Lc 6, 27-38).
I – O amor a Deus e ao próximo deve refletir-se em todos os atos da vida
Havia um homem de cultura e instrução em extremo limitadas, cuja adolescência transcorrera nos trabalhos de alfaiataria. Desde sua entrada para o convento da Ordem dos Franciscanos, os superiores lhe confiaram a confecção dos buréis de todos os religiosos, julgando ser esta a missão mais adequada para ele.
Ora, não tardou em evidenciar-se, aos olhos de toda a comunidade, quanto o novo religioso, tão desprovido de agudeza e de conhecimentos humanos, era exímio não só na técnica da costura, mas também, e sobretudo, na prática da virtude, pois fora ilustrado em ciência infinitamente superior por Aquele que ocultou os mistérios de seu Reino aos sábios e os revelou aos pequeninos (cf. Lc 10, 21). Com efeito, sua vida conventual transcorreu em total dedicação, assumindo seus deveres com profunda seriedade, espírito sobrenatural, inalterável mansidão e generosidade. Alfaiate esforçado e obediente, nunca recusava nenhum serviço; antes, procurava adivinhar as necessidades de seus irmãos de hábito e adiantar-se a seus desejos. Mal percebia que a túnica de algum religioso estava muito velha e gasta e logo seu amor o impelia a confeccionar uma nova, com todo o cuidado e esmero.
Tendo chegado ao término desta peregrinação terrena, encontrava-se ele em seu leito de dor prestes a dar o derradeiro suspiro, quando, após receber os Sacramentos, dirigiu-se aos frades que o acompanhavam nesse supremo momento, implorando: “Por favor, tragam-me a chave do Céu!” Aflitos, aqueles filhos de São Francisco pensaram tratar-se de um delírio prévio à morte. Porém, receosos de não realizar a última vontade de um irmão tão querido, procuraram diversos objetos: um livro de piedade, uma relíquia do Santo de sua especial devoção, um crucifixo, as Sagradas Escrituras, sem lograr satisfazer a insistência do pobre agonizante: “Por favor, tragam-me a chave do Céu!” Finalmente, um dos religiosos com quem mais havia convivido teve uma inspiração: correu à alfaiataria, apanhou uma agulha usadíssima e entregou-a ao moribundo. Este, agradecido e aliviado, tomou com mãos trêmulas o pequeno instrumento, inseparável companheiro durante os longos anos de vida religiosa, osculou-o, persignou-se com ele e rendeu sua alma a Deus, alegre e em paz.
Ele não se havia equivocado. De fato, tal objeto, do qual se utilizara durante a vida não só para costurar, como também para se santificar, na prática heroica da virtude da caridade, servia-lhe de chave, ao transpor os umbrais da morte, para poder penetrar no gozo da visão beatífica.
Verídica ou não, esta breve história nos lembra que a santidade consiste em praticar todos os atos de nossa vida, até os mais insignificantes, por amor a Deus e ao próximo. Ensinamento contido no Evangelho, pela pregação e exemplo do Divino Redentor, que supôs uma autêntica mudança nos padrões morais da humanidade.
II – O choque entre a mentalidade da Antiguidade e a de Nosso Senhor
Efetivamente, a Antiguidade vivia numa verdadeira barbárie. Percorrendo a história das civilizações que precederam a vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo, encontramos registrados os costumes mais escabrosos, as leis mais absurdas e a ausência quase total de moralidade. O Direito Penal do Egito, por exemplo, obrigava a mãe que se tornasse culpável pela morte de um filho a permanecer durante três dias e três noites abraçada ao cadáver daquele a quem tinha tirado a vida.1 Na Etiópia, os reis eram de tal maneira divinizados que os cortesãos deviam adotar até mesmo seus defeitos físicos. Se, por alguma circunstância, o soberano perdia um membro, chegavam eles a se amputar também, pois se considerava indecoroso aparecer em público íntegro de corpo, enquanto o monarca era aleijado.2
Em uma civilização com mais cultura e organização como a greco-latina – com uma concepção de justiça tida por mais acertada,3 a tal ponto que o Direito Romano inspirou todos os códigos modernos 4 –, a escravidão, comum aos povos do mundo antigo, havia atingido dimensões e excessos espantosos. A lei catalogava o escravo não como pessoa, mas como res (coisa) e, enquanto tal, impossibilitado de constituir família ou patrimônio.5 Esta sujeição aplicava-se aos prisioneiros de guerra e aos estrangeiros, entre outros, dos quais era permitido apoderar-se e dispor como de “bens sem dono”,6 mesmo quando pertencessem às classes mais elevadas. Eles “eram vendidos em Roma, na praça pública; cada escravo tinha […] ao pescoço uma tábua (titulus) onde estavam escritas suas vantagens ou deficiências. […] O trato dependia do humor do dono e os romanos eram linha dura. Ninguém repreendia o senhor que, por uma palavra, um riso ou um espirro dado por um servo durante um banquete, o mandasse açoitar até derramar sangue. […] Augusto mandou enforcar um escravo porque este lhe havia comido uma codorna. […] Quando o escravo havia consumido suas forças no serviço do amo, se estava enfermo ou era débil, abandonavam-no numa ilha do Tibre”.7 Submersa nas trevas e nas sombras da morte (cf. Lc 1, 79), entregue ao ódio e à injustiça e gemendo entre os grilhões do pecado estava, pois, a humanidade antes de ser iluminada pelo Sol da Justiça.
No tocante à nação eleita, ela vivia sob a égide da pena de talião, reputada como muito benigna em relação a outras legislações e aos hábitos da época. “Numa sociedade sem polícia e sem tribunais de justiça, o costume da vingança de sangue constituía um meio eficaz de conservar a ordem social e a segurança. Essa lei se manteve em Israel durante muito tempo. Porém, a legislação hebraica foi impondo, aos poucos, certas limitações, a fim de evitar os abusos nos quais podia degenerar uma justiça privada”,8 como a introdução da distinção entre homicídio voluntário e involuntário, ou a criação de cidades de refúgio para os homicidas ainda não declarados culpados.9
O ambiente no qual o Senhor foi recebido
Depois de séculos transcorridos nessa clave, Cristo Jesus, vindo à terra, foi recebido por um povo cujo conceito de caridade estava completamente distorcido. Para Israel, seguro de sua superioridade inerente à eleição divina e às próprias qualidades, o amor só devia ser prodigalizado aos da mesma raça, sendo as demais nações merecedoras de desprezo e até de eterna condenação, pelo simples fato de não serem da descendência de Abraão. “A cada dia o judeu piedoso deve agradecer a Deus por não tê-lo feito goy [estrangeiro]. Este orgulho de raça inspirava sentimentos e atitudes de ódio, desprezo, separação”.10 Inclusive entre os da nação eleita, a estima só se manifestava reciprocamente dependendo das obras praticadas. Quem realizasse uma obra boa era digno dela; se, pelo contrário, fosse réu de alguma culpa, deveria ser detestado e sobre ele viria o castigo. Os apóstatas “são considerados como estrangeiros, goyim e inimigos; são amaldiçoados três vezes ao dia nas orações oficiais; todas as relações com eles são proibidas”.11 Não é difícil compreender, através desse prisma, como falar em misericórdia, bondade, humildade e mansidão era algo inusual em tal ambiente, causando impacto e incompreensão, tal como ocorre nos dias de hoje, quando se levanta o tema da castidade. Jesus, portanto, surge como “pedra de escândalo” (I Pd 2, 7), trazendo uma nova doutrina capaz de produzir choque e convulsionar a mentalidade até então reinante.
É o que nos mostra o Evangelho contemplado pela Liturgia deste 7º Domingo do Tempo Comum. A cena transcorre durante o Sermão da Montanha, no qual o Divino Mestre assentou os fundamentos para a expansão do Reino de Deus.
Um matiz importante
Naquele tempo, falou Jesus aos seus discípulos: 27 “A vós que Me escutais, Eu digo: Amai os vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam, 28 bendizei os que vos amaldiçoam, e rezai por aqueles que vos caluniam”.
O ensinamento encerrado nesses versículos se refere, de modo particular, aos nossos inimigos pessoais, àqueles que, segundo nossos critérios, não nos dão o devido valor ou, por orgulho, nos invejam e nos perseguem. A esses é preciso amar, ajudar, bendizer e rezar por eles, trabalhando, na medida do possível, por sua salvação eterna.
Mas isso não significa que Nosso Senhor condene a legítima defesa ou aconselhe o relativismo, na preservação dos princípios de nossa religião, da lei, da moral e da ordem. Segundo São Tomás, convém à nossa santificação e ao bem dos outros tolerar as injúrias pessoais. Todavia, pode constituir imperfeição ou até vício tolerar as injúrias feitas ao próximo e, com maior razão, a Deus. “Pois é louvável dar o que é seu, e não o que é dos outros. E muito menos não deve ser descurado o que é de Deus. Como diz Crisóstomo: ‘É demasiada impiedade dissimular as injúrias feitas a Deus’”.12
Qual deve ser, pois, nossa conduta em relação a quem se declara inimigo de Deus? São Bernardo nos esclarece a tal respeito: “Assim como não deves amar-te a ti mesmo senão porque amas a Deus, assim também deves amar como a ti mesmo todos os que amam a Deus do mesmo modo como tu O amas. Pois bem, como nosso inimigo, que de si não é nada, não ama a Deus, nós, que amamos a Deus, não podemos amá-lo como a nós mesmos. Entretanto, devemos amá-lo, a fim de que ame; e claro está que amá-lo porque ama não é o mesmo que amá-lo para que ame. Portanto devemos amá-lo não pelo que é, dado que em si nada é, mas pelo que talvez venha a ser”.13
Nosso Senhor Jesus Cristo: o supremo exemplo
Podemos imaginar a reação dos fariseus, dos mestres da Lei e de tantos outros ao ouvir Jesus recomendar quatro atitudes diametralmente opostas aos costumes da época, como se verá mais adiante. Pois, como diz São Cirilo, “a lei antiga mandava não ofender os outros; ou, mesmo sendo ofendidos, não ultrapassar na vingança as proporções da ofensa recebida; mas a perfeição da Lei está em Jesus Cristo e em seus mandamentos”,14 ou seja, bendizer os que nos maltratam e fazer o bem aos que nos odeiam. Eis a nota tônica do verdadeiro amor trazido pelo Divino Mestre e do qual Ele próprio nos deu o supremo exemplo quando, pregado na Cruz, com a cabeça coroada de espinhos, o Corpo dilacerado e as feridas sangrando, suplicou: “Pai, perdoai-lhes, porque eles não sabem o que fazem” (Lc 23, 34).
Ora, São Tomás afirma: “Todas as suas orações foram atendidas”.15 Quem se atreveria, pois, a negar que ao menos algum daqueles algozes tenha alcançado a bem-aventurança eterna, por causa dessa oração, não condicional, proferida pela humanidade santíssima do Filho de Deus?16 “Eles preparavam a Cruz”, comenta Santo Ambrósio, “Ele lhes dava em retorno a salvação e a graça”.17
Este padrão de relações humanas, inteiramente novo para os tempos de então, não poderia ser considerado como uma novidade, também em nossos dias? Podemos nos perguntar com São João Crisóstomo: “Quando vês que o Senhor Se fez Homem e padeceu tanto por ti, ainda perguntas e duvidas ser possível perdoar as injúrias de teus irmãos?”18
Nosso Senhor faz aplicações concretas
29 “Se alguém te der uma bofetada numa face, oferece também a outra. Se alguém te tomar o manto, deixa-o levar também a túnica. 30 Dá a quem te pedir e, se alguém tirar o que é teu, não peças que o devolva. 31 O que vós desejais que os outros vos façam, fazei-o também vós a eles”.
Entretanto, depois de introduzido o princípio, já de si muito forte, Nosso Senhor exemplifica com situações concretas, próprias a concentrar a atenção do numeroso público, evitando que suas palavras caiam no vazio. Tais atitudes, aparentemente exageradas, nos são propostas por Ele para mostrar os extremos aos quais devemos levar nosso desinteresse, quando se trata de beneficiar os outros.
Para Santa Teresinha, entregar a túnica é “renunciar aos seus últimos direitos, é considerar-se como a serva, como a escrava dos outros. […] Assim, não basta dar a todo aquele que me pede, é preciso ir ao encontro dos desejos, mostrar-se muito reconhecida e muito honrada por prestar um serviço; e, se levam uma coisa do meu uso, não devo mostrar que o lamento, mas, pelo contrário, parecer contente por me ver livre dela”.19
No versículo 31 está contida uma regra muito simples e, de si mesma, suficiente para, uma vez posta em prática, tornar o convívio humano paradisíaco: “O que vós desejais que os outros vos façam, fazei-o também vós a eles”. É um raciocínio de mera lógica humana, pois Jesus deixa patente quanto esse trato misericordioso e indulgente é, no fundo, o que cada um gostaria de receber dos outros.
III – A regra da perfeição
32 “Se amais somente aqueles que vos amam, que recompensa tereis? Até os pecadores amam aqueles que os amam. 33 E se fazeis o bem somente aos que vos fazem o bem, que recompensa tereis? Até os pecadores fazem assim. 34 E se emprestais somente àqueles de quem esperais receber, que recompensa tereis? Até os pecadores emprestam aos pecadores, para receber de volta a mesma quantia. 35 Ao contrário, amai os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai sem esperar coisa alguma em troca. Então, a vossa recompensa será grande, e sereis filhos do Altíssimo, porque Deus é bondoso também para com os ingratos e os maus. 36 Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso”.
O impactante discurso do Salvador continua com uma inequívoca alusão à regra de interesses praticada no mundo onde reina o pecado, ou seja, agir por estrito interesse recíproco: do ut des – dou para que me dês. Matizando seu pensamento e usando de sublime e persuasiva didática para penetrar no mais íntimo dos corações de seus ouvintes, o Divino Mestre deixa de lado o raciocínio humano e emprega um argumento teológico irrefutável. Aos autênticos filhos de Deus não é permitido imitar a conduta dos pecadores, contentando-se com a lei dos homens terrenos. Contudo, se “até os pecadores estão de acordo em corresponder ao afeto, aquele cujas convicções são de uma ordem mais elevada deve também inclinar-se mais generosamente à virtude, até chegar a amar os que não o amam”.20 Assim, cabe abraçar o modelo que é o próprio Pai, agindo tal qual Ele age e reproduzindo em si as feições do homem celestial, do segundo Adão, conforme nos ensina São Paulo em sua Primeira Carta aos Coríntios, contemplada pela Liturgia de hoje (I Cor 15, 45-49).
Nos lábios do Messias a caridade encontra sua fórmula ideal, não sendo meramente optativa, mas obrigatória. No entanto, devido às nossas más inclinações e à nossa natureza vingativa e tendente ao pecado, esta passagem do Sermão da Montanha nos serviria de condenação se Deus não nos auxiliasse com sua mão poderosa. Por esta razão exclama Santa Teresinha: “Como os ensinamentos de Jesus são contrários aos sentimentos da natureza! Sem a ajuda da graça seria impossível não só pô-los em prática, mas até compreendê-los”.21 Não obstante, a existência de tantos Santos, que constituíram um evangelho vivo ao longo de dois mil anos de História da Igreja, nos demonstra como isso é possível.
“Deus é bondoso para com os ingratos e os maus”, diz Nosso Senhor nesse trecho. De fato, com exceção de Cristo, em sua humanidade santíssima, de Nossa Senhora e São José, únicas criaturas perfeitas,22 cada um de nós pode reconhecer-se entre esses ingratos, pois retribuímos com insuficiência – se não com pecados – os inúmeros benefícios recebidos da infinita liberalidade do Criador. Ele, entretanto, “não nos trata como exigem nossas faltas, nem nos pune em proporção às nossas culpas” (Sl 102, 10).
Um caminho seguro para a salvação eterna
37 “Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai, e sereis perdoados”.
Concluída sua sapientíssima argumentação, Jesus nos adverte sobre o castigo que a vingança tomada contra os outros acarreta. Se ao transpor os umbrais da morte quisermos encontrar um Juiz favorável e cheio de benevolência para conosco, é indispensável perdoar nesta vida aos que nos ofendem e sermos indulgentes para com eles; é preciso fazer desaparecer as inimizades “para que não causem o desaparecimento, que sejam dominadas, para que não dominem, que sejam eliminadas pelo que redime, para que não eliminem quem as conserva”.23 A quem agir desse modo, o Divino Redentor promete não só o perdão dos pecados – e qual de nós ousaria declarar-se isento deles? –, como também uma recompensa extraordinária e um caminho seguro para a salvação eterna.
Um vivo exemplo da doutrina contida no versículo 37 nos é oferecido pela primeira leitura (I Sm 26, 2.7-9.12-13.22-23) da Liturgia deste 7º Domingo: Davi, perdoando a seu inimigo, o Rei Saul, e recusando-se a estender a mão contra o ungido do Senhor – apesar da oportunidade propícia que se lhe apresentava –, conquistou para si uma especialíssima proteção de Deus, alcançando mais tarde o perdão de seus crimes.
A medida de nosso amor fraterno
38 “Dai e vos será dado. Uma boa medida, calcada, sacudida, transbordante será posta no vosso colo; porque com a mesma medida com que medirdes os outros, vós também sereis medidos”.
Naquela época não era frequente, como hoje, a utilização de sacolas ou cestas para transportar mais comodamente os artigos comprados no mercado. Como os judeus usavam túnicas muito amplas, o costume dos vendedores, dos trabalhadores manuais ou dos compradores era levantar a túnica à altura dos joelhos, sendo a cintura presa por um cíngulo. Formava-se então “uma bolsa na cintura, onde o viajante levava seu dinheiro e provisões”,24 como grãos, farinha, frutas e outros artigos.25 No comércio – tal como em nossos tempos –, era comum alguns vendedores cometerem fraude para terem mais lucro. Às vezes depositavam no colo do cliente uma medida tão arejada que este, ao chegar em casa e conferir a quantidade do produto adquirido, constatava haver recebido muito menos em relação ao que havia sido pago. Bem diferente era a situação quando o freguês gozava da amizade do comerciante: este, ao medir a mercadoria, a calcava e apertava de maneira a caber mais, fazendo transbordar o recipiente.
Com este eloquente exemplo, tão familiar e acessível a seus ouvintes, o Mestre mostrava quanto a generosidade dispensada ao próximo atrai sobre nós as bênçãos do Céu e a abundância dos dons divinos, “com esse excesso na recompensa que pertence aos dons de Deus, em relação aos homens”.26
Se, pelo contrário, nos sentimos abandonados, incompreendidos e desprezados, ou se a própria natureza nos nega seus bens, cabe examinar nossa consciência e analisar o trato que dispensamos aos outros, pois a mesma medida que usarmos com eles será também utilizada conosco.
Como Ele nos amou…
A síntese dos preceitos contidos na Liturgia de hoje se encontra na Aclamação ao Evangelho: “Eu vos dou este novo mandamento, nova ordem, agora, vos dou: que também vos ameis uns aos outros, como Eu vos amei, diz o Senhor”.
Como nos amou Nosso Senhor?
Muito sábias são as palavras do Pe. Monsabré a esse respeito: “Aproximai vosso ouvido do peito de Jesus e ouvireis seu Coração, harpa sagrada, cantar, em todos os tons, os tocantes hinos do amor apaixonado”.27 Amor que O impelia a perdoar os pecados de todos os que d’Ele se aproximavam, a curar qualquer tipo de doença, a remediar os piores males, a buscar a companhia dos pecadores, a interessar-Se por eles, a dar-Se continuamente em favor de cada um. Enquanto o povo dormia e não mais O procurava para alcançar d’Ele algum benefício, Ele fugia para o alto de um monte, onde permanecia em profunda oração ao Pai, intercedendo pela humanidade pecadora.
Se isto não bastasse, Ele escolheu para Si a prisão, o iníquo julgamento, a injusta flagelação, a coroa de espinhos e, finalmente, a mais ignominiosa das mortes, por amor a nós. “Nenhum afeto foi mais puro em suas intenções, mais constante em sua duração, mais rico em seus dons, mais inefavelmente tenro em sua afeição. Nenhum amor foi mais magnânimo em seus ambiciosos empreendimentos, mais vasto em sua extensão, mais fecundo em suas obras, mais independente e mais livre em seus atos, mais generoso em seus sacrifícios, mais delicado e de uma bondade mais amável”.28
A nós, que compreendemos facilmente o fato de o Salvador ter entregado sua vida pelos homens, Ele nos pede que O imitemos, agindo em relação aos outros como Ele agiu em relação a nós, e não impondo limites ao amor. Esta deve ser a característica do relacionamento entre os batizados.
IV – Conclusão
“É mediante tal lição que Jesus extirpa até às raízes a dureza antiga e implanta sua caridade nova”.29 Cessa o regime do egoísmo e abre-se para a humanidade uma via fundamentada no amor, que servirá de norte aos cristãos de todos os tempos. Não se trata, porém, de um amor espontâneo e passageiro, fruto da simpatia natural, dos laços familiares ou do sentimento humano, mas de um amor saído de um coração puro, de uma boa consciência e de uma fé sincera e sem ostentação, como tão bem expressa o vocabulário grego com o termo ἀγάπη (ágape, traduzido na Vulgata por diligere). É o amor transbordante de ternura de Deus para conosco, do qual o amor entre os irmãos e o “sentimento cristão de amor aos inimigos”30 são um reflexo. “A palavra ἀγάπη é especificamente bíblica; […] mais original ainda é a caridade como noção teológica e como princípio da vida prática. É uma das revelações mais ricas que o Senhor trouxe ao mundo; os Apóstolos […] fizeram da difusão da caridade divina o objetivo de sua mensagem; e foi esta pregação que converteu o mundo”.31
Um convite para a humanidade nos dias de hoje
Quem nunca experimentou, ao menos uma vez na vida, a alegria sobrenatural que invade a alma quando nos debruçamos com dedicação e desinteresse sobre as necessidades de outrem, procurando fazer-lhe o bem? É a posse desta alegria, por ora passageira, depois eterna, que nos é proposta pela Liturgia de hoje. Em suma, somos convidados a rejeitar o erro de conceber o amor como pura explosão de sentimentos, quando não como manifestação de egoísmo, movido pelo interesse pessoal; somos convidados a abraçar a santidade, procurando fazer tudo – desde varrer o chão ou limpar uma vidraça, até governar uma nação – por amor e com amor, como o frade alfaiate, cuja história lembramos no início deste comentário.
Em nossos dias tão conturbados, quando os homens, quiçá mais do que no mundo antigo, correm atrás das vantagens pessoais e se debatem numa sociedade dominada pelo orgulho, pelo ódio e pelo desprezo, ignorando as obrigações da caridade e deixando de lado a glória de Deus, as palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo ressoam, mais uma vez, como um apelo à mudança de vida.
Não sejamos surdos a este divino convite. Depositemos nossa confiança em Maria Santíssima e abracemos o admirável exemplo do Homem-Deus, que não hesitou em entregar até a última gota de sangue e linfa por cada um de nós. Se vivermos nessa impostação de espírito, será possível criar um ambiente de benquerença e respeito que estimule as pessoas à prática da virtude, pois, segundo as palavras do Apóstolo, “o amor é o vínculo da perfeição” (Col 3, 14). Só assim construiremos uma civilização mais cristificada e, ao completarmos o curso desta vida, abrir-se-ão para nós as portas do Céu. ◊
Notas
1 Cf. CANTÙ, Cesare. História Universal. São Paulo: Américas, 1960, v.I, p.487; WEISS, Juan Bautista. Historia Universal. Barcelona: La Educación, 1927, v.I, p.677.
2 Cf. WEISS, op. cit., p.556-557.
3 Esta concepção “Ius suum unicuique tribuens – dar a cada um o que é seu” é comentada por São Tomás (cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. II-II, q.58, a.1).
4 Cf. GIRARD, Paul Frédéric. Manuel élémentaire de Droit Romain. 3.ed. Paris: Arthur Rousseau, 1901, p.4.
5 Cf. Idem, p.91.
6 Idem, p.98.
7 WEISS, op. cit., v.III, p.391-393.
8 TUYA, OP, Manuel de; SALGUERO, OP, José. Introducción a la Biblia. Madrid: BAC, 1967, v.II, p.334.
9 Cf. Idem, ibidem.
10 BONSIRVEN, SJ, Joseph. Le judaïsme palestinien au temps de Jésus-Christ. 2.ed. Paris: Gabriel Beauchesne, 1934, t.I, p.103-104.
11 Idem, p.19-20.
12 SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., q.188, a.3, ad 1.
13 SÃO BERNARDO. Sermones sobre el Cantar de los Cantares. Sermón L. In: Obras Completas. Madrid: BAC, 1955, v.II, p.338.
14 SÃO CIRILO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea. In Lucam, c.VI, v.27-31.
15 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.21, a.4.
16 Cf. Idem, a.1.
17 SANTO AMBRÓSIO. Tratado sobre el Evangelio de San Lucas. L.V, n.77. In: Obras. Madrid: BAC, 1966, v.I, p.267.
18 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO, Catena Aurea, op. cit.
19 SANTA TERESA DE LISIEUX. Manuscrito C. A caridade em ação. In: Obras Completas. Paço de Arcos: Carmelo, 1996, p.264.
20 SANTO AMBRÓSIO, op. cit., n.75, p.265-266.
21 SANTA TERESA DE LISIEUX, op. cit., p.266.
22 Cf. LLAMERA, OP, Bonifacio. Teología de San José. Madrid: BAC, 1953, p.183.
23 SANTO AGOSTINHO. Sermo CCVI, n.2. In: Obras. Madrid: BAC, 2005, v.XXIV, p.186-187.
24 GOMÁ Y TOMÁS, Isidro. El Evangelio explicado. Introducción, infancia y vida oculta de Jesús. Preparación de su ministerio público. Barcelona: Rafael Casulleras, 1930, v.I, p.138.
25 Cf. LAGRANGE, OP, Marie-Joseph. Évangile selon Saint Luc. 4.ed. Paris: J. Gabalda, 1927, p.198.
26 Idem, ibidem.
27 MONSABRÉ, OP, Jacques-Marie-Louis. Le Cœur de Jésus-Christ. In: Exposition du dogme catholique. Perfections de Jésus-Christ. Carême 1879. Paris: L’Année Dominicaine, 1892, p.135-136.
28 LE DORÉ, CJM, Ange. Le Sacré Cœur de Jésus, son amour. Paris: Lethielleux, 1909, p.151.
29 BERNARD, OP, Rogatien. Le mystère de Jésus. Paris: Amiot-Dumont, 1957, v.I, p.364.
30 PRAT, SJ, F. La Théologie de Saint Paul. 38.ed. Paris: Beauchesne, 1949, v.II, p.562.
31 SPICQ, OP, Ceslas. Saint Paul. Les Épîtres Pastorales. Paris: J. Gabalda, 1947, p.22-23.