Complexo é o problema do perdão. A lei antiga dava ao ofendido o direito à vingança. O Evangelho prescreve o dever de perdoar as ofensas e enaltece quem o faz. Ora, quais são os limites? Até que ponto deve ser pródiga a nossa misericórdia?
Evangelho do XXIV Domingo do Tempo Comum
“Naquele tempo, 21 Pedro se aproximou de Jesus e perguntou: ‘Senhor, quantas vezes devo perdoar a meu irmão, quando ele pecar contra mim? Até sete vezes?’. 22 Respondeu Jesus: ‘Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete. 23 Por isso, o Reino dos Céus é comparado a um rei que quis ajustar contas com seus servos. 24 Quando começou a ajustá-las, trouxeram-lhe um que lhe devia dez mil talentos. 25 Como ele não tinha com que pagar, seu senhor ordenou que fossem vendidos, ele, sua mulher, seus filhos e todos os seus bens para pagar a dívida.
26 Este servo, então, prostrou-se por terra diante dele e suplicava-lhe: ‘Dá-me um prazo, e eu te pagarei tudo!’. 27 Cheio de compaixão, o senhor o deixou ir embora e perdoou-lhe a dívida.
28 Apenas saiu dali, encontrou um de seus companheiros de serviço que lhe devia cem denários. Agarrou-o na garganta e quase o estrangulou, dizendo: ‘Paga o que me deves!’. 29 O outro caiu-lhe aos pés e pediu-lhe: ‘Dá-me um prazo e eu te pagarei!’. 30 Mas, sem nada querer ouvir, este homem o fez lançar na prisão, até que tivesse pago sua dívida.
31 Vendo isto, os outros servos, profundamente tristes, vieram contar a seu senhor o que se tinha passado. 32 Então o senhor o chamou e lhe disse: ‘Servo mau, eu te perdoei toda a dívida porque me suplicaste. 33 Não devias também tu compadecer-te de teu companheiro de serviço, como eu tive piedade de ti?’. 34 E o senhor, encolerizado, entregou-o aos algozes, até que pagasse toda a sua dívida.
35 Assim vos tratará meu Pai celeste, se cada um de vós não perdoar a seu irmão, de todo seu coração’” (Mt 18, 21-35).
I – Convite para a bondade, mansidão e clemência
Observa-se com frequência em algumas pessoas, quando encetam as vias da prática da virtude, a tendência a buscar uma regra precisa que lhes garanta a salvação. Espíritos pragmáticos, só se sentem inteiramente seguros procurando ter sob seu controle a própria vida espiritual, sem depender de outros e, talvez, nem sequer da graça divina.
E gostariam de obter méritos sobrenaturais mais ou menos como quem aplica dinheiro no banco, com a garantia de que vai render uma determinada quantia a cada mês. Assim como os negócios fixos e patentes conferem estabilidade à nossa existência terrena, desejam elas o mesmo para a obtenção da vida eterna.
Ninguém pode conhecer com certeza seu estado de alma
Entretanto, nem o mais firme e virtuoso dos homens pode evitar uma fímbria de insegurança a respeito do seu estado de alma. Nessa matéria, só Deus conhece com certeza a situação de cada qual; portanto, ninguém pode julgar que está sem dúvida na graça divina, conforme explica o Doutor Angélico: “Alguém não pode saber, de ciência certa, que possui a graça, segundo a primeira Carta aos Coríntios: ‘Não me julgo a mim mesmo. Quem me julga é o Senhor’”.1
Um comovente fato histórico ilustra essa realidade. Quando Santa Joana d’Arc enfrentava o processo armado contra ela, um dos interrogadores — Jean Beaupère, mestre da Universidade de Paris — fez-lhe uma pergunta ardilosa: “Estás em estado de graça?”.2 Se respondesse afirmativamente, seria exprobrada por contrariar a doutrina católica; se negasse, daria pretexto à malevolência de seus acusadores. A jovem pastora, entretanto, afrontou de maneira perfeita a capciosa questão, como faria o mais experimentado teólogo: “Se não estou, que Deus nele me introduza; se estou, que Deus nele me conserve”.3
Ora, essa salutar insegurança quanto à salvação diverge da mentalidade orgulhosa e pragmática dos fariseus da época de Nosso Senhor, que haviam elaborado centenas de regras cujo simples cumprimento, acreditavam eles, tornava a pessoa justificada diante de Deus. Concebiam a Religião como um contrato, no qual cabia-lhes observar com exatidão esse elenco de preceitos exteriores, e a Deus premiar quem os cumprisse, quaisquer que fossem suas disposições internas.
Como veremos mais adiante, São Pedro, ao formular a pergunta transcrita no início do Evangelho de hoje, mostra estar influenciado em certa medida por esse modo de pensar. Porque a psicologia humana é constituída de tal modo que cada qual tende a julgar normal o ambiente onde nasceu e vive. E o homem adapta-se com facilidade até às maiores contingências e adversidades que encontra no seu dia-a-dia.
O conceito de justiça na época de Nosso Senhor
Ao longo do ciclo litúrgico, a Igreja nos mostra diferentes aspectos dos infinitos predicados de Deus, para melhor O conhecermos, amarmos e imitarmos. Neste 24º Domingo do Tempo Comum, o Evangelho nos convida à bondade, à mansidão e à clemência: devemos ser bons como Ele é bom, compassivos como Ele é compassivo, clementes como Ele é clemente. “Aprendei de Mim que sou manso e humilde de coração” (Mt 11, 29), exorta-nos Jesus.
Para melhor compreender a passagem proposta hoje pela Igreja à nossa consideração, devemos ter bem presente o quanto o ódio, o desejo de vingança e a incapacidade de perdoar grassavam nas civilizações anteriores à vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo.
O conceito de justiça vigente no Oriente bíblico fundava-se na Lei de Talião, segundo a qual o criminoso devia ser punido taliter, isto é com rigorosa reciprocidade em relação ao dano infligido: “Olho por olho, dente por dente” — tal o crime, tal a pena. Mas, vale notar que esse princípio legal ainda visava mitigar os costumes violentos dos povos antigos, onde a represália era a regra e, em geral, provocava dano maior que o da ofensa.4 Vigendo o costume de fazer justiça pelas próprias mãos, prevalecia sempre o mais forte e o perdão era visto como sinal de fraqueza.
Na antiga Mesopotâmia, por exemplo, “as penas eram atos de vingança, e raras vezes bastava cortar a cabeça; encontramos amiúde, sobretudo na Assíria, a empalação e esfolamento. Deixava-se insepulto o cadáver, para servir de escarmento. Para delitos de menor monta, estava na ordem do dia cortar a mão, o nariz, as orelhas, arrancar os olhos. O devedor insolvente ficava escravo perpétuo do credor, o qual podia vendê-lo ou utilizá-lo em seu serviço”.5
Consideremos nessa perspectiva o trecho do Evangelho de hoje.
II – Quais os limites do perdão?
“Naquele tempo, 21 Pedro se aproximou de Jesus e perguntou: ‘Senhor, quantas vezes devo perdoar a meu irmão, quando ele pecar contra mim? Até sete vezes?’”.
Os Apóstolos haviam sido formados numa escola completamente diferente à do Messias. A própria Lei de Moisés era severíssima, e certas faltas, como a blasfêmia contra Deus, eram castigadas com a morte imediata por apedrejamento (cf. Lv 24, 14-16).
São Pedro acabava de ouvir Nosso Senhor discorrer a respeito do relacionamento humano, ao falar de como tratar as crianças, da parábola da ovelha perdida, e da correção fraterna. E por certo pensava estar agindo bem ao formular a pergunta: “Senhor, quantas vezes devo perdoar a meu irmão, quando ele pecar contra mim? Até sete vezes?”. Comenta Lagrange: “Pedro sabe bem que é preciso perdoar a um irmão. Mas quais são os limites? Julga ele estar bem de acordo com o espírito de Jesus, propondo sete vezes.” 6
Maldonado vai mais longe, ao lembrar nesta passagem a opinião de Crisóstomo e Eutimio, de que São Pedro “foi movido por certo espírito de vanglória e desejo de alcançar fama de misericordioso, porque parecia-lhe grande façanha dizer, embora com hesitação, que era necessário perdoar sete vezes o pecador”.7
Ora, na realidade, a atitude do Príncipe dos Apóstolos mostra quão influenciado estava ele ainda pelos critérios de sua época, segundo os quais a doutrina ensinada por Nosso Senhor parecia absurda. Na consideração de São João Crisóstomo, sua pergunta equivalia a dizer: “Se meu irmão continua pecando e arrependendo-se quando corrigido, quantas vezes nos mandas aturar isso? Porque para aquele que não se arrepende nem se condena a si mesmo, já estabeleceste um limite, ao dizer: ‘Seja para ti como um gentio e publicano’. Não, porém, para quem se arrepende: a este nos ordenas tolerar. Quantas vezes, então, devo suportá-lo se, sendo repreendido, se arrepende?”.8
Cristo veio trazer misericórdia infinita
22 “Respondeu Jesus: ‘Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete’”.
Sete era um número simbólico na Antiguidade, e significava “inúmeras vezes”. Para mostrar como era de fato ilimitado o perdão que se devia dar ao irmão, Nosso Senhor usa a fórmula “setenta vezes sete”, ou seja, o muito multiplicado por muito mais.
Com essa expressão, observa o Crisóstomo, não pretende Jesus “fixar um número, mas sim dar a entender que se deve perdoar ilimitadamente, continuamente e sempre”.9 À misericórdia sempre parcimoniosa do homem, o Mestre contrapõe sua misericórdia infinita.
Em seguida — agindo de acordo com a apetência do espírito oriental, muito imaginativo —, Ele recorre a uma parábola para tornar mais compreensível sua doutrina. Amiúde, o uso de comparações ou analogias possibilita externar as verdades de modo mais profundo do que pela mera teoria.
Uma dívida impossível de quitar
23 “Por isso, o Reino dos Céus é comparado a um rei que quis ajustar contas com seus servos. 24 Quando começou a ajustá-las, trouxeram-lhe um que lhe devia dez mil talentos. 25 Como ele não tinha com que pagar, seu senhor ordenou que fossem vendidos, ele, sua mulher, seus filhos e todos os seus bens para pagar a dívida”.
A parábola é simples, acessível e cogente, ao introduzir a figura de alguém que devia muito dinheiro. Algumas traduções falam de uma “enorme fortuna”, enquanto outras, mais ajustadas ao original grego, especificam tratar-se de dez mil talentos.
Um talento ático correspondia a seis mil dracmas de prata, cujo peso aproximado seria de 26 quilogramas. Ou seja, o valor mencionado por Nosso Senhor equivaleria a quase 260 toneladas do valioso metal. Para se fazer ideia de quanto isto significava, considere-se que, segundo o historiador hebreu Flávio Josefo, a Galileia e a Pereia pagavam 200 talentos de tributo anual a Herodes Antipas.10
Nosso Senhor menciona essa exorbitante quantia a fim de impressionar os seus ouvintes, de espírito calculista, e tornar evidente a impossibilidade de quitar a dívida. Surge, assim, uma primeira aplicação desta passagem à nossa vida espiritual: nossa incapacidade de saldar o débito que contraímos com o Criador.
Devemos-Lhe, a vida e o ser. Além disso, a Redenção e as inumeráveis graças e benefícios por Ele outorgados a cada um ao longo da existência. Quanto mais abundantes tenham sido estes, maior a obrigação de restituir. Por isso exclama o Crisóstomo: “Não é verdade que, mesmo se tivéssemos dado todos os dias a vida por quem assim nos amou, não Lhe teríamos retribuído dignamente ou, mais ainda, não Lhe teríamos pago nem uma mínima parte de nossa dívida?”.11
Sob esse prisma, Maria Santíssima é de longe a maior devedora de Deus, pois Ela sozinha recebeu muito mais do que todas as criaturas angélicas e humanas juntas. “Para os Anjos e para todos os Bem-aventurados no Céu, Deus fez maravilhas ‘que o homem é incapaz de exprimir’ (II Cor 12, 4); ‘aos que justificou, também os glorificou’ (Rm 8, 30). Em Maria também Ele ‘fez maravilhas’, mas maravilhas de fato singulares, porque a grandeza de Maria excede sem comparação qualquer outra grandeza criada” — afirma São Lourenço de Brindisi.12
Ora, ao contrário da Virgem Imaculada, cada falta nossa acrescentou a essa dívida um valor incomensurável, porque a obrigação de restituir contraída ao cometer um só pecado é infinita, por ser infinita a dignidade do Ofendido.
Com efeito, ainda que passássemos a eternidade inteira fazendo os sacrifícios mais inverossímeis, não quitaríamos o nosso débito. Nada que possamos fazer por nós mesmos é suficiente para reparar o pecado de nossos primeiros pais e os nossos próprios, contra o Criador.
O perdão do rei nos convida a perdoar
26 “Este servo, então, prostrou-se por terra diante dele e suplicava-lhe: ‘Dá-me um prazo, e eu te pagarei tudo!’. 27 Cheio de compaixão, o senhor o deixou ir embora e perdoou-lhe a dívida”.
O servo insolvente reconhece ser devedor, prostra-se no chão e pede clemência: “Dá-me um prazo, e eu te pagarei tudo!”. Vã ilusão! Porque, por maior que fosse esse prazo, ser-lhe-ia impossível saldar a dívida. O rei, porém, movido de compaixão, nem fala em adiar o vencimento, nem procura recuperar parte do dinheiro. Perdoa tudo.
Diante de um arrependimento sincero, do mesmo modo procede conosco Deus, não Se deixando vencer em bondade e nos tratando com uma misericórdia infinitamente maior do que ousaríamos esperar. Para fazê-lo, põe-nos apenas uma condição: “um coração contrito e humilhado” (Sl 50, 19).
Nosso Senhor veio substituir a pena de talião por uma nova forma de trato: amar o próximo como a si mesmo, por amor a Deus. Para justificar a disposição de perdoar sempre, esse Mestre rigoroso no combate ao pecado “evoca ante seus discípulos o Juiz ao qual todos nós teremos tantos pedidos de perdão a fazer”.13
Assim, quem se reconhecer merecedor de castigo pelas suas faltas, ao ver-se perdoado por Deus de forma tão gratuita e superabundante, estará disposto a fazer o mesmo com os irmãos.
O amor-próprio ferido leva ao desejo de vingança
28 “Apenas saiu dali, encontrou um de seus companheiros de serviço que lhe devia cem denários. Agarrou-o na garganta e quase o estrangulou, dizendo: ‘Paga o que me deves!’. 29 O outro caiu-lhe aos pés e pediu-lhe: ‘Dá-me um prazo e eu te pagarei!’. 30 Mas, sem nada querer ouvir, este homem o fez lançar na prisão, até que tivesse pago sua dívida”.
Logo após ter sido tratado com tanta generosidade, esse servo mostra-se implacável com outro que lhe devia apenas cem moedas e manda atirá-lo à cadeia. Os pormenores da narração ressaltam o violento contraste entre a atitude do servo perdoado e a do rei, mas a parábola ainda fica aquém da realidade.
De fato, ao faltarmos com a caridade em relação ao próximo, agimos como o servo mau, pois as dívidas que possamos ter entre nós nada são perto da gerada por uma só falta cometida contra o Criador. Entretanto, mesmo tendo sido tantas vezes objeto da misericórdia divina, não é raro ficarmos com o amor-próprio ferido quando alguém nos faz uma ofensa, e, irritados, acalentamos o desejo de revidar.
Passados vinte séculos, observa-se ainda no relacionamento entre os cristãos essa disposição de vindita, sobretudo no tocante ao foro interior. Com frequência as pessoas perdoam formalmente, mas guardam a mágoa e o rancor na alma e, com eles, o anseio de uma revanche.
“Donde vêm as lutas e as contendas entre vós? Não vêm elas de vossas paixões, que combatem em vossos membros?” (Tg 4, 1), pergunta o Apóstolo São Tiago. Como a tendência exacerbada ao amor-próprio é consequência do pecado original, terá o homem sempre esse combate diante de si, cabendo-lhe recorrer à graça divina para vencer essa má inclinação.
Obrigação de denunciar o pecador
31 “Vendo isto, os outros servos, profundamente tristes, vieram contar a seu senhor o que se tinha passado”.
A reação provocada por essa injustiça nos outros servos é imagem do escândalo que produz quem não perdoa o irmão. Agiram bem indo relatar o fato ao rei, porque “não é maledicência revelar a um superior as faltas de seus subordinados, para que ele faça a correção ou impeça a desordem que delas podem decorrer”.14 Pelo contrário, em certas ocasiões, apontar as faltas cometidas pelos outros é uma obrigação moral relativa ao oitavo Mandamento da Lei de Deus; em caso de omissão, a pessoa pode tornar-se culpada de conivência.
Pois é necessário denunciar o pecador contumaz, não só para o bem de sua própria alma, convidando-o à emenda, mas também para precaver os bons. Não foi sem razão que Cristo, para cessar o escândalo dos vendilhões no Templo, expulsou-os a golpes de chicote, deitando por terra o dinheiro dos cambistas (cf. Jo 2, 14-16); e exprobrou publicamente os fariseus como “raça de víboras” (Mt 12, 34), “hipócritas” (Mt 23, 13-15) e filhos do demônio (cf. Jo 8, 44).
Quem assim procedeu foi o mesmo Jesus que curou cegos e leprosos, multiplicou os pães e peixes, ressuscitou mortos, e do alto da Cruz exclamou: “Pai, perdoa-lhes! Eles não sabem o que fazem!” (Lc 23, 34).
Cabe também notar, neste versículo, o fato de não terem feito os outros servos a justiça por suas mãos. Nosso Senhor mostra assim que garantir a boa ordem compete a Deus e ao poder público, segundo alerta São Tiago: “Um só é o legislador e juiz: aquele que é capaz de salvar e de fazer perecer. Tu, porém, quem és, para julgares o teu próximo?” (Tg 4, 12).
Ao que se considerou lesado, cabe a disposição contínua do perdão. Com efeito, prescreve-nos o Apóstolo: “Não pagueis a ninguém o mal com o mal, […] mas deixai agir a ira de Deus, porque está escrito: A Mim a vingança; a Mim exercer a justiça, diz o Senhor” (Rm 12, 17-19).
Deus é clemente, mas também justo
32 “Então o senhor o chamou e lhe disse: ‘Servo mau, eu te perdoei toda a dívida porque me suplicaste. 33 Não devias também tu compadecer-te de teu companheiro de serviço, como eu tive piedade de ti?’ 34 E o senhor, encolerizado, entregou-o aos algozes, até que pagasse toda a sua dívida”.
O Divino Mestre não veio pregar a impunidade nem o laxismo moral. Deus é clemente, mas também justo. E, em face de benefícios gratuitos de tal monta, devemos ter presente que em certo momento precisaremos prestar contas ao Benfeitor. Porque, como ensina Santo Afonso de Ligório, “a misericórdia foi prometida a quem teme a Deus e não a quem dela abusa […] se Deus espera com paciência, não espera sempre”.15
A justiça e o perdão se postulam, e devem andar juntos. Justiça não é vingança cega, mas reparação da ordem moral violada. Essa é a regra que Nosso Senhor veio estabelecer entre os homens.
A falta de reciprocidade afasta o perdão de Deus
35 “Assim vos tratará meu Pai celeste, se cada um de vós não perdoar a seu irmão, de todo seu coração”.
Nosso Senhor é muito claro ao sublinhar a necessidade de perdoar “de todo seu coração” o irmão, e não apenas formalmente. É preciso, portanto, eliminar do nosso espírito a amargura pela ofensa recebida, fruto do amor-próprio. “Guardando rancor — afirma o Crisóstomo — cravamos em nós mesmos a espada. Porque, o que é aquilo que pode ter feito teu ofensor, comparado com o que fazes a ti mesmo quando te enches de ira e atrais contra ti a sentença condenatória de Deus?”.16
Com efeito, Cristo deixa claro aqui que, se guardarmos no coração ressentimentos contra nosso irmão, seremos entregues aos torturadores, como o empregado mau da parábola. Pelo contrário, se suportarmos as afrontas do próximo como reparação pela infinita dívida que temos com o nosso Criador, isso atrairá sobre nós a misericórdia divina.
Para a caridade, para o amor ao próximo, para o perdão não pode haver limite. Dessa atitude deu-nos belo exemplo José, o filho de Jacó, ao beneficiar de todas as maneiras possíveis seus irmãos, que o tinham vendido como escravo a mercadores. Ou ainda aquele pai da parábola, quando correu ao encontro do filho pródigo, abraçou-o e o cobriu de beijos (cf. Lc 15, 20).
III – Perdoar assemelha o homem a Deus
Deus tem, por assim dizer, necessidade de ser misericordioso. “A onipotência de Deus se manifesta, sobretudo, perdoando e praticando a misericórdia, porque, por essas ações, se mostra que Deus tem o supremo poder”, ensina São Tomás.17
Ora, é conforme a esse modelo de superabundante clemência que devemos nos amar uns aos outros. E, à imitação de nosso Criador, precisamos perdoar de tal maneira que até esqueçamos a ofensa recebida.
Perdoar, contudo, nem sempre é fácil. Exige vencer o amor-próprio que deseja represálias e guarda rancor no coração. Com efeito, se a vingança está de acordo com a natureza humana decaída, “nada nos assemelha tanto a Deus quanto a doçura e a caridade com aqueles que nos ultrajam com mais malícia e violência”18 , escreve São João Crisóstomo.
Não é na riqueza nem no poder, mas na capacidade de perdão que a pessoa manifesta a verdadeira grandeza de alma. Se pagar o bem com o mal é diabólico, e pagar o bem com o bem é mera obrigação, contudo, pagar o mal com o bem é divino. E assim deve proceder doravante o homem divinizado pela graça comprada com o Preciosíssimo Sangue do Redentor. ◊