A espiritualidade de Dom Luís Guanella baseava-se na compreensão do Evangelho como a história de amor de um pai para com seus filhos: Deus cuida de cada um, especialmente dos mais débeis e necessitados.
Na tarde de 15 de março de 2002, um jovem americano, William Glisson, patinava sem capacete em alta velocidade por uma rua de Springfield, em Filadélfia, quando sofreu uma queda violenta, com consequências gravíssimas devido a um forte traumatismo craniano.
Levado ao hospital em estado de coma, foi submetido a várias intervenções cirúrgicas nos dias subsequentes. Entretanto, sua situação se agravava cada vez mais, restando-lhe poucas esperanças de sobreviver, na melhor das hipóteses, com sequelas bem desafortunadas.
Quatro dias depois do acidente, na solenidade de São José, a Dra. Noreen M. Yoder, amiga da família, entregou à mãe de William duas relíquias do Beato Fundador da ordem religiosa à qual pertencia o hospital onde trabalhava, recomendando-lhe recorrer a ele para obter a cura do rapaz. A piedosa senhora prendeu uma das relíquias no pulso do filho e reteve consigo a outra, para pedir ao Bem-aventurado o milagre. Logo se formou uma cadeia de orações nessa intenção.
Contra todas as expectativas médicas, o jovem começou a reagir e vinte dias depois recebeu alta, apenas com a prescrição de um programa de reeducação funcional neuromotora. Oito meses após o acidente, já inteiramente restabelecido, voltou a trabalhar como carpinteiro na empresa do pai.
Tal milagre, realizado por intermédio do Beato, permitiu satisfazer a última exigência de seu processo de canonização. E será ele elevado à honra dos altares, no rol dos santos da Igreja Católica, no dia 23 deste mês, na Praça de São Pedro, em Roma.
Quem é este intercessor? Luís Antonio Guanella Bianchi, fundador da Congregação das Filhas de Santa Maria da Providência e dos Servos da Caridade, também conhecidos como guanellianos.
Equilíbrio entre firmeza e doçura
Nascido em 19 de dezembro de 1842, na aldeia alpina de Fraciscio di Campodolcino, Luís foi o nono dos treze filhos de uma família montanhesa dotada de sólidos princípios cristãos.
O pai, Lorenzo di Tomaso Guanella, corpulento, robusto e de rija personalidade, inspirava confiança pela sua simples presença. Assim o descreverá o filho, em sua Autobiografia: “Esbanjava saúde e seu caráter era firme e decidido, à semelhança do monte Calcagnolo, logo acima de Fraciscio”.1
A mãe, Maria Antonieta Bianchi, piedosa e dedicada ao trabalho, como o marido, contrastava com este por sua notável doçura de trato. A seu respeito escreveu o padre Luís Guanella: “O peso da autoridade paterna, no tocante aos filhos, era contrabalançado, providencialmente, pela mãe […] uma mulher criativa e muito amorosa; um tesouro da Providência!”. 2
Entre os irmãos, todos se relacionavam bem. Mas Catarina, apenas um ano mais velha, foi sua predileta. Ainda crianças, conversavam sobre as peripécias dos santos e aprenderam a ver nos pobres a figura de Jesus. Perto de sua casa, havia uma rocha com cavidades que pareciam panelas. Ali, as inocentes crianças misturavam água e terra, e mexiam aquela mescla dizendo: “Quando formos adultos, faremos assim a sopa dos pobres”. 3
Sinais precoces da vocação
Desde muito cedo, numerosos indícios, premonições e acontecimentos extraordinários iam indicando ao pequeno Luís as vias traçadas para ele pela Providência Divina.
O primeiro desses fatos ocorreu tendo ele apenas seis anos de idade, na festa de São João Batista. Encontrava-se na Praça da Matriz de Campodolcino, junto com o tio e o cunhado, quando este último deu-lhe de presente um saquinho de diavoletti, deliciosas balas de menta, justamente na hora de soar o sino para a Missa.
Não querendo entrar na igreja com os doces na mão, foi escondê-los num monte de lenha, onde estariam a salvo da cobiça de outra criança. Nesse momento, ouviu palmas e viu junto à porta da Prefeitura um velhinho que o fitava. O santo o descreve na mesma Autobiografia: “Era franzino, de cabelos brancos, rosto moreno; trajava calças curtas, as meias eram de lã não tingida, seu rosto amável como que implorava aqueles doces”. 4 Com medo, escondeu as balas e, quando se voltou para olhar, o homem havia desaparecido…
Aquela imagem nunca mais se apagou de sua mente. Ela sempre vai retornar “quando do encontro com outros velhinhos, suplicando por um pouco de bem e de doçura ao término da vida”. 5
Outro fato marcante aconteceu no dia de sua Primeira Comunhão, aos nove anos. Por ser Quinta-Feira Santa, não houve festa e, regressando a casa, mandaram-no cuidar das ovelhas, como em qualquer dia comum. Ainda tocado pela graça, sentou-se em um dos gramados da colina Motto, parecido a um sofá, onde costumava descansar enquanto pastava o rebanho, e pôs-se a rezar a Nossa Senhora, agradecendo-Lhe a ventura de haver recebido Jesus em seu coração.
Sentia-se tomado por uma suave doçura que o impelia a fazer generosos bons propósitos. Contudo, a certa altura caiu no sono com seu livrinho de orações nas mãos e foi acordado por uma voz feminina que o chamava pelo nome. Não vendo ninguém ao redor, julgou tratar-se de um sonho. Retomou a leitura e adormeceu novamente.
Mais uma vez, o fato se repetiu. E, como aconteceu com Samuel (cf. II Sm 3, 8), ainda houve uma terceira vez, na qual a voz se fez ouvir mais forte e nítida: “Luís, Luís”. Nesse momento, narra o santo, “eis que vejo uma Senhora estendendo seu braço direito como a indicar alguma coisa. Ela me disse: ‘Quando você for adulto, fará tudo isso em prol dos pobres’. E como num telão, vi tudo o que deveria fazer”. 6
Forjando o temperamento
Aos doze anos Luís recebeu uma bolsa de estudos e matriculou-se no Colégio Gálio, em Como. Para esse pastorzinho acostumado às liberdades do campo e aos grandiosos panoramas alpinos, não faltaram sofrimentos na adaptação à rígida disciplina escolar. O colégio lhe parecia uma prisão. Não obstante, isso o ajudou a dominar seu caráter enérgico, por vezes impulsivo e irascível, e a manifestar os aspectos amáveis, expansivos e afetuosos do seu temperamento, herdados da mãe.
Fortalecido pela frequência aos Sacramentos e sua ardorosa devoção a Maria, ali cultivou os germens da vocação, manteve-se firme em seus princípios e inabalável no grande apreço às virtudes da castidade e da modéstia, apesar dos ventos revolucionários e liberais que sopravam na Itália e no mundo.
Após seis anos de colégio, ingressou no seminário diocesano Santo Abôndio, onde ficou ainda mais vincada a vocação específica que a Providência lhe dera desde a infância. Ao retornar, durante as férias, à sua aldeia natal, empenhava-se em ajudar os pobres e enfermos da região, sobretudo os mais desamparados.
“Uma espada de fogo no ministério santo”
Em um ambiente de ressentimento e raiva, marcado pelas profanações de igrejas realizadas em Como pelos seguidores de Garibaldi, Luís foi ordenado presbítero, em 26 de maio de 1866, por Dom Bernardino Frascolla, Bispo de Foggia.
Naquele dia, com a alma transbordante de júbilo, o novo sacerdote fez uma promessa a Deus e a seus irmãos: “Quero ser uma espada de fogo no ministério santo!”. 7 Com semelhante propósito, explica um dos seus biógrafos, “o jovem demonstrara capacidade de sonhar e de ‘almejar coisas grandiosas’; desposar a causa dos mais pobres, priorizando o amor a Deus e aos irmãos”. 8
Celebrou sua primeira Missa em Prosto, onde havia servido como diácono, na solenidade de Corpus Christi, e ali permaneceu cerca de um ano como vigário.
Nomeado pároco de Savogno, valeu-se de seu diploma de mestre para ali abrir uma escola, que logo se encheu de alunos. Dedicou-se, então, com grande entusiasmo ao apostolado com os mais pobres durante oito anos. Dava formação religiosa a pessoas de todas as idades, convidando-as a se unirem ao Santo Padre e alertando-as a respeito das novas doutrinas da época, hostis à Igreja. Por isso e, sobretudo, pela publicação de um livreto intitulado Saggio di ammonimenti, contendo tais ensinamentos, acabou sendo fichado pela autoridade civil como “elemento perigoso”. Sua escola foi fechada e ele viu-se forçado a sair da diocese.
Três anos de “aprendizagem” com Dom Bosco
Atraído pela pessoa de São João Bosco, optou por se dirigir a Turim. Ali passou três anos (1875-1878) em “aprendizagem”, como diria depois, seguindo os passos do fundador dos salesianos no caminho da santidade e colaborando com sua obra pedagógica em favor da juventude. Nesta mesma ocasião, conheceu a obra caritativa de São José de Cottolengo, a qual também deixou profundas impressões em sua alma.
Contudo, tinha muitas dúvidas e inquietações. Estaria seguindo o caminho para o qual se sentia chamado? Onde ficava a realização de tudo quanto vira no dia de sua Primeira Comunhão? Em seu coração continuava a soar a voz da Providência, incitando-o a fundar uma instituição própria, para o que muito colaborou todo esse tempo de provações e experiência.
Convocado por seu Bispo, regressou à Diocese de Como. Sair de Turim, separar-se dos salesianos e principalmente de Dom Bosco, foi-lhe muito doloroso. “Não senti tamanha dor nem mesmo quando faleceram meus pais, tendo-os em meus braços” 9, afirma em sua Autobiografia.
Primeira casa da Divina Providência
Na paróquia de Traona, para onde foi enviado em 1878, com a missão de ajudar o pároco enfermo, tentou transformar um antigo convento em escola para jovens pobres aspirantes ao sacerdócio, no estilo salesiano. Entretanto, era ainda considerado um “padre sob suspeita” e não conseguiu a necessária autorização do poder civil.
O Bispo transferiu-o, em 1881, para Olmo, paróquia confinada entre altas montanhas, onde talvez pudesse ficar livre da desconfiança de exercer “perigosas influências” contra o governo. Ali, sentia-se exilado e abandonado por Deus, vendo impossível a realização de seu chamado.
Poucos meses depois, recebeu ordem de ir para Pianello, onde haveriam de cessar essas provações. Encontrou ali um orfanato e um asilo fundados por seu predecessor recém-falecido, o padre Carlos Coppini, postos sob os cuidados de algumas jovens aspirantes à vida religiosa. Foi a partir deste empreendimento que se originou, em 1886, sua primeira fundação, a Congregação das Filhas de Santa Maria da Providência, contando com a valiosa colaboração da Madre Marcelina Bosatta e de sua irmã, a Beata Clara Bosatta.
Sempre dócil à vontade divina, dizia Dom Guanella: “O segredo da perfeição é fazer a vontade de Deus”. 10 Abriu por fim, em Como, a primeira Casa da Divina Providência — mesmo nome utilizado por São José de Cottolengo —, com o objetivo de atender os pobres e necessitados. A instituição começou a crescer e não faltaram generosos benfeitores nem almas dispostas a se dedicarem àquela obra de caridade.
Numa viagem a Turim, pediu orientação a Dom Bosco sobre seu desejo de fundar também um instituto masculino. Este lhe mostrou a conveniência de tal empresa e nasceu, assim, sob as bênçãos do Arcebispo de Milão, Beato André Carlos Ferrari — que até 1874 fora Bispo de Como — a Congregação dos Servos da Caridade.
Erigida a obra canonicamente, com a colaboração dos padres Aurélio Bacciarini e Leonardo Mazzucchi, no dia 24 de março de 1908, chegou o momento tão longamente aguardado: Dom Guanella e um pequeno grupo de sacerdotes emitiram diante do sacrário os votos perpétuos de pobreza, castidade e obediência.
Chamados a pertencer à família divina
A espiritualidade do santo fundador baseava-se na compreensão do Evangelho como a história de amor de um progenitor para com seus filhos: Deus é Pai de todos, e Pai Providente, que cuida de cada um, especialmente dos mais débeis e necessitados.
Por meio de Jesus Cristo, todos são chamados a fazer parte da família divina. E nela merecem especial ajuda as pessoas mais necessitadas, como os anciãos abandonados, os órfãos, os enfermos terminais desenganados, ou os deficientes físicos e psíquicos.
Resumia ele a formação a ser dada dentro dessa família divina com o lema “Pão e Senhor”. 11 O “Pão” seria o desenvolvimento integral da pessoa: físico, intelectual, psíquico e social. E por “Senhor” entendia o atendimento das “necessidades mais profundas da alma humana, chamada a descobrir sua plenitude na vida de fé, esperança e caridade”. 12
Nessa família destaca-se a indispensável figura da Mãe, que encaminha todos a Cristo. Passava ele horas diante da imagem da Nossa Senhora da Divina Providência. Nunca duvidava da intercessão d’Aquela que lhe mostrara em sua infância a envergadura de sua obra: “Ficai perto de Maria e procedei com segurança” 13, recomendava a seus discípulos.
Mais necessário é morrer bem…
Depois de passar inúmeras vicissitudes e provas, Dom Guanella viu, no fim de sua existência, sua obra expandir-se por quatro continentes. Convencido de que os homens são meros instrumentos, pois “è Dio che fa” — quem faz é Deus —, o fundador estimulava o ardor missionário dos seus filhos e filhas dizendo-lhes: “Vossa pátria é o mundo”. 14 Ele próprio acompanhou a fundação de novas casas em outros países, como a dos Estados Unidos, em 1912.
A obra guanelliana contou com valiosos apoios, inclusive do Papa São Pio X, que distinguia o fundador com sua amizade. Ele mesmo lhe propôs a fundação, perto do Vaticano, da Paróquia de São José al Trionfale, hoje basílica menor, com uma casa assistencial para auxiliar as famílias que ali viviam em tugúrios.
Em meio a tantas atividades, ainda encontrou tempo para escrever numerosas obras de formação cristã, além de mais de três mil cartas nas quais transparecem suas virtudes, seu senso profético e seu particular amor aos pobres e abandonados.
Um de seus últimos empreendimentos, e talvez o mais popular, foi a Pia União do Trânsito de São José, erigida em 1913, para a assistência aos moribundos. “Existe uma necessidade de viver bem”, dizia ele, “mas mais necessário é morrer bem. Uma boa morte é tudo, especialmente na atualidade, quando as pessoas só pensam nas coisas materiais e em divertir-se, rejeitando a eternidade”. 15
Coroando uma vida santa, essa boa morte chegou também para Dom Guanella, em 24 de outubro de 1915, aos 73 anos de idade. Possa sua elevação à honra dos altares desvelar ao mundo de hoje, tão confiante em si mesmo, o segredo de sua santidade como modelo a ser seguido: abandonar-se nas mãos da Providência Divina, certo de que, por mais que os homens atuem, “è Dio che fa”! ◊