Sua suavidade apazigua o espírito, sua verticalidade eleva os corações, o colorido feérico dos vitrais purifica a mente. Suas ogivas apontam a reta estrada, sua luz faz calar o poder das trevas. Pecadores nela encontram conversão; fiéis, o refúgio; poetas, a inspiração. Eis o estilo gótico…

 

Naqueles anos, Paris vivia o seu apogeu. Eram meados do século XIII e tudo parecia confluir para um auge cultural e espiritual. Os fiéis acorriam para ouvir a vigorosa pregação dos frades das ordens mendicantes, dominicanos e franciscanos; os estudantes de teologia admiravam a doutrina ensinada por São Tomás de Aquino; a sociedade civil assistia o despontar do grande rei Luís IX, ornado não apenas com as insígnias reais, mas, sobretudo, pela coroa da santidade. A bênção de Deus parecia pervadir os corações.

Na Cidade Luz, a natureza se harmonizava com a sociedade. Os campos e as montanhas no horizonte eram interrompidos apenas por torreões de castelos e fortificações. Na Île de la Cité, bem no coração da vila, duas maravilhas da construção gótica se destacavam: a Sainte-Chapelle e a Catedral de Notre Dame centro geográfico e eixo da vida espiritual de Paris.

Porém, nem todos se guiavam pela Catedral…

A história de Jacques, o sapateiro

Narra a lenda que um certo sapateiro de nome Jacques se distanciara, desde sua juventude, da Religião. De tal maneira se dedicara a acumular pecúlio e se deixara corromper por más amizades, que seu coração parecia insensível às coisas divinas. No entanto, nada pode apagar da alma humana o desejo do Absoluto, elo de nossa relação com Deus e clave das conversões.

No caso de Jacques, a Providência lhe proporcionara o privilégio de avistar de sua janela uma singular perspectiva das recém-construídas torres de Notre Dame. E sua ­sede de Absoluto consonou com aquele símbolo sagrado, despertando-lhe na alma o desejo de conhecê-las e explicitar seu significado mais profundo. Contudo, a mácula do pecado obnubilava sua inteligência e arrastava para o mal sua vontade: tinha tempo para o dinheiro, nunca para a Missa; dispunha de forças para o trabalho, jamais para empreender uma vida cristã; sentia anseios de visitar aquela catedral, mas o respeito humano prevalecia em seu espírito.

Passando certo dia pelo centro da cidade, Jacques viu-se de súbito perante o majestoso templo, banhado por um deslumbrante pôr do Sol. Surgiu então de sua alma um ímpeto de maravilhamento, seguido de um dilema:

—Agora… Entro? — era a voz da graça.

—Ou não entro? — era o príncipe das trevas a tentá-lo.

Ainda hesitante, aproximou-se do pórtico central, circundado pela representação do Juízo Final. Ao se deter para refletir sobre aquela cena, admiração, curiosidade e temor se confundiam em seu íntimo, terminando por levá-lo a entrar, pé ante pé, no sagrado recinto.

Aos poucos foi avançando pela nave principal enquanto contemplava a profusão de pedras esculpidas e a luminosa policromia dos vitrais. Diante de um deles, no cruzeiro norte, deteve-se extasiado. Representava São João Evangelista. De modo inexplicável a figura tomou vida e lhe disse: “As luzes e cores que aqui vês são expressões da perfeição divina. Procura em teu íntimo, aí encontrarás ainda mais cor e mais luz”. Maravilhado por essa visão, Jacques decidiu abraçar a vida religiosa e viveu como monge até o final de seus dias.

Real ou não, esta história bem reflete a ação da graça divina através daqueles vitrais, e nos introduz no profundo significado teológico das luzes que iluminaram o bom sapateiro da nossa lenda, ocasionando sua conversão. Pois, a arquitetura gótica se fundamenta na denominada “metafísica da luz”.

Na Basílica de Saint-Denis

Ábside da Basílica de Saint-Denis, França

“Nada de grande se faz de repente”, reza o ditado. E assim ocorreu com o nascimento da arte gótica.

A cerca de dez quilômetros de Notre Dame, ao norte de Paris, encontrava-se desde o século III o sepulcro de São Dionísio, primeiro Bispo de Paris. Com o tempo, o local tornou-se concorrido centro de peregrinação e, a partir do Rei Dagoberto I (†639), necrópole oficial dos soberanos franceses. Contígua a esta Basílica se encontrava a Abadia beneditina homônima, considerada das mais importantes da Idade Média. De modo paulatino, o complexo de Saint-Denis harmonizou seu destino espiritual com o da monarquia francesa, adquirindo com isso grande prestígio e preeminência.

No começo do século XII, contudo, Saint-Denis passou por sérios problemas de secularização, sob a direção do abade Adão. Quando este faleceu, em 1122, sucedeu-lhe Suger, varão enviado por Deus, segundo seu principal biógrafo, “para iluminar não só aquele local, mas todo o império dos francos”.1 De fato, é muito apropriado o uso desse termo, pois o este superior, além de enriquecer Saint-Denis com novas luzes materiais através da arte gótica e com o esplendor litúrgico, proporcionou luzes espirituais, primeiro para a Abadia e depois para toda a França. Basta dizer que nesta nação, apenas entre os anos 1180 e 1270, foram construídas 80 catedrais góticas, sem contar igrejas abaciais e outros edifícios religiosos.2

Desde sua entrada em Saint-Denis como oblato, com apenas 10 anos, a ideia da implantação de uma nova arte maturou de forma gradativa na alma de Suger. Sonhava em reformar a Basílica. Sua formação monástica teve papel preponderante na elaboração de seu plano, sobretudo pela leitura da obra A hierarquia celeste, na qual Dionísio († séc. VI), ao tratar dos Anjos, desenvolve o que se chamou de “metafísica da luz”.

A metafísica da luz

“Santo Ambrósio”, por Giovanni di Paolo –
Metropolitan Museum of Art, Nova York

Poder-se-ia afirmar que a luz material é um mero fenômeno físico, não possuindo qualquer relação com Deus ou o sobrenatural. No entanto, por ser intocável, diáfana e pura, e ser fundamental para a vida, ela espelha de alguma forma o espiritual. E vice-versa, a manifestação do espiritual tende à luminosidade. A Bíblia e as revelações privadas o atestam. Em outras palavras, a luz era entendida como uma espécie de ponte entre o natural e o sobrenatural.

A luz tem sua origem, como todas as coisas, no próprio Deus. Nos Salmos, Ele, Ser imaterial, é comparado com o Sol do meio-dia que nos ilumina (cf. Sl 36, 6; 42, 3) e faz resplandecer sobre nós a luz de sua face (cf. Sl 66, 2). Os Padres da Igreja corroboram esta ideia, utilizando expressões semelhantes. Para Santo Hilário, por exemplo, Deus é “todo luz”;3 para Santo Ambrósio, é o “eterno esplendor”;4 e para Santo Agostinho, o “Sol espiritual”.5

Em suma, Deus é Luz por essência e “Pai das luzes” (Tg 1, 17). Esta paternidade, com efeito, é bem expressa pela própria Criação como ato luminoso: “Deus disse: ‘Faça-se a luz!’ E a luz se fez” (Gn 1, 3). Numa perspectiva teológica, o Criador, ao dar a existência aos seres, “ilumina-os” em proporção de uma maior ou menor aproximação d’Ele. Isto ocorre de modo análogo ao fogo: as coisas são mais ou menos quentes em razão de sua proximidade com ele. Assim, quanto mais próximos de Deus mais iluminados são os seres, e vice-versa.

Ora, essa maior ou menor iluminação das criaturas em função da maior ou menor distância de Deus está muito ligada à teoria da beleza. Assim, segundo a filosofia de Dionísio, a manifestação da luz — isto é, a claridade (claritas) e o esplendor (splendor) — é qualidade fundamental e objetiva das coisas belas, pois todas elas são, lato sensu, de alguma forma iluminadas. E isto pode ser explicado, em parte, por nossa própria experiência estética: não é verdade que nos admiramos ao contemplar um belo panorama iluminado, o brilho das estrelas ou mesmo a água cristalina de uma cachoeira? Do mesmo modo, a beleza se dirige, acima de tudo, para o espiritual ou para o intelectual. Por isso denominamos de “filho da luz” quem possui beleza de alma; de “iluminação divina”, as inspirações proféticas; e de “lúcido”, o homem de ideias claras.

Resumindo, Deus é a “verdadeira Luz” que “ilumina todo homem” (Jo 1, 9), de modo direto ou através das “luzes materiais” que Ele nos oferece.

E como ocorre esta iluminação?

Célebre é a sentença de São Paulo a respeito do conhecimento de Deus através das criaturas. “As perfeições invisíveis de Deus”, afirma ele, “se tornam visíveis à inteligência, por suas obras” (Rm 1, 20). Em outras palavras, a contemplação das maravilhas da Criação favorece o conhecimento do Criador e de seus atributos. Ora, isso ocorre de modo simbólico (συµβολικῶς), isto é, através de sinais visíveis podemos conhecer o invisível; e anagógico (ἀναγωγικῶς), ou seja, por via das coisas naturais nos elevamos às sobrenaturais.6 Neste sentido, São Tomás de Aquino nos compara a corujas incapazes de fitar a luz diretamente.7 Daí nossa necessidade de recorrer àquilo que nos é conatural para alcançar este conhecimento ainda nesta Terra.

Mas essa elevação a Deus não passa apenas através da Criação pura e simples. Ela pode ser auxiliada por meio de imagens poéticas, das Escrituras ou de metáforas que significam as maravilhas ou o sobrenatural e que superam o nosso conhecimento experimental. Os símbolos, com efeito, quando denotam realidades superiores, freiam a nossa natural tendência para o material, favorecendo a parte superior da alma desejosa, por sua natureza, das coisas do alto.8 Daí a importância da utilização da arte como meio de expressão dos atributos divinos.

O estilo gótico, como veremos, possui um caráter profundamente simbólico, sobretudo segundo a perspectiva acima apresentada. Mas ele tem uma importante particularidade: logrou de maneira extraordinária transpor para a matéria a metafísica da luz.

Da teologia à arte, da arte a Deus

A teologia que acabamos de comentar se reflete nos relatos de Suger concernentes à reforma da Basílica de Saint-Denis: um sobre a sua consagração (De consecratione) e outro sobre a administração (De administratione).

Depois de ordenar a Abadia segundo a regra beneditina, Suger passa aos aprimoramentos da Basílica, como a ampliação do esplendor litúrgico e a aquisição de bens, sempre evitando o supérfluo e o excesso.

Mais tarde, nasceu a obra que o honraria com o título de “fundador do gótico”. Tratava-se da reestruturação da fachada e do coro da então carolíngia Basílica de Saint-Denis. Graças ao auxílio divino e ao empenho do clero, dos nobres, do povo, sobretudo dos melhores artistas, a reforma se realizou em apenas três anos e três meses. A esplendorosa cerimônia de consagração, em 11 de junho de 1144,9 contou com a presença do rei e da rainha, além dos mais altos dignitários do clero e da nobreza. De fato, a julgar pelos relatos, foi uma verdadeira prefiguração do Reino dos Céus.

Aquela sublime liturgia se harmonizava com o majestoso ambiente, guarnecido por uma imponente estrutura. Para formar a desejada armadura de luz, colheram-se elementos da arquitetura da Burgúndia (arcos ogivais) e da Normandia (arcos cruzados nas abóbodas), aliados à grande inovação estrutural desta obra, os arcobotantes: os componentes principais para o nascimento do gótico. De fato, a partir desta última invenção, engenhosa e ao mesmo tempo estética, garantiu-se segurança e grandiosa beleza àquela nova obra, a qual logo se difundiu por toda a França.10

No entanto, como já foi dito, o estilo gótico não se reduzia a um simples estilo arquitetônico, mas se tratava notadamente de uma verdadeira obra de teologia da luz transposta para a matéria. Seu êxito foi tal que logrou proporcionar uma verdadeira transfiguração na arte religiosa europeia, cujos frutos se estendem até o presente. Pois seu predecessor, o românico — devido à sua estrutura, sua forma de arcos arredondados e suas grossas paredes — não permitia a introdução de grandes janelas. A consequência óbvia era a diminuição da entrada da luz solar.

Ora, encontramos aqui a originalidade da arte gótica e sua relação com a luz. Com propósito de obter maior luminosidade, são introduzidos os arcos ogivais, propiciando ao edifício paredes vazadas, colunas esguias e tetos mais altos. Por fim, ao coordenar o cumprimento, a altura e a largura, numa perfeita proporção, traduziu-se na arte a beleza geométrica da Criação, disposta com “medida, número e peso” (Sb 11, 20).

Deste modo, com grande genialidade criaram-se as condições para, sem comprometer a estrutura do edifício, introduzir maiores vitrais e, por conseguinte, mais luz, principal “material de construção” desta arte. Assim, o espiritual foi incorporado pela luz, e Deus, “Luz imaterial”, se tornou “visível” na matéria. E eis que a luz se fez na arquitetura!

Um tratado de teologia ilustrado

“Viagem dos Reis Magos” e “Nosso Senhor Jesus Cristo entre os doutores” – Abadia de Saint-Denis

Esses mosaicos de vidro translúcido não se restringiam, é evidente, a permitir a entrada da luz. Tinham também uma alta função estética e o objetivo de permitir que toda a Igreja brilhasse “de uma luz admirável e contínua de vitrais luminosíssimos a permear a beleza interior”.11 Por outra parte, eram destinados a ilustrar, sobretudo, cenas do Evangelho ou da vida dos santos. No entanto, esta função foi acrescida por outra originalidade de Suger na Basílica de Saint-Denis: tratava-se da criação dos chamados “vitrais exegéticos”.12 Neste caso, a arte transcendia a imagem, ao oferecer, ademais, uma interpretação das Sagradas Escrituras.13 Assim, com poucas imagens, poder-se-ia brindar os espectadores com um verdadeiro tratado de teologia ilustrado.

De fato, o mais famoso vitral de Saint-Denis, conhecido como “vitral anagógico”, ou ainda “vitral das alegorias paulinas”, é composto por cinco medalhões que representam, através de tipologias e alegorias, a concordância dos dois testamentos.14 Num dos medalhões, por exemplo, conhecido como “moinho místico”, São Paulo aparece recebendo os sacos de trigo oriundos do Antigo Testamento e os despeja num moinho. Na outra extremidade extrai-se a farinha para fazer o “verdadeiro pão […], nosso alimento eterno e angélico”.15

Noutra cena é representado Nosso Senhor como Aquele que despoja o véu de Moisés, cuja face estava até então encoberta diante dos israelitas, pois em Cristo o véu é removido (cf. II Cor 3, 13-16); ou, como explica Suger: “O que Moisés vela, a doutrina de Cristo revela”.16

Por último, no medalhão talvez mais conhecido de todos, representa-se Deus Pai no centro de alegorias dos sete dons do Espírito Santo, ladeado por duas mulheres, uma símbolo da Igreja, outra, da Sinagoga. Com a mão esquerda, Ele tira o véu da Sinagoga, enquanto com a direita coroa a Igreja.

Assim, reversibilidades até então inéditas na iconografia eram decifradas por uma simples “ilustração” (palavra, aliás, derivada do verbo latino illustrare, que significa “esclarecer, alumiar”).

Os vitrais desempenhavam, portanto, também a significativa função pedagógica de “ilustrar”, a qual se resume na conhecida expressão “Bíblia dos pobres”. Tinham eles a excelente capacidade de “conferir à matéria a mais alta preciosidade do trabalho que a transforma e conferir às imagens a preciosidade da especulação intelectual”.17

“As bodas de Caná” e “Santo Estêvão Protomártir” – Catedral de Notre-Dame, Paris

Luz e esplendor na casa de Deus

O esplendor da iluminação da Basílica não se devia apenas a seus preciosos vitrais — sobretudo os de cor azul, de beleza comparável à da safira — mas também à utilização de metais e joias para a ornamentação da Igreja e seus objetos.18 De fato, Suger agradece a munificência divina por tê-la engalanado com “ouro, prata, pedras preciosíssimas, além de excelentes tecidos”.19 Empregou, ademais, os melhores pintores de diversas regiões a fim de guarnecer as paredes com “ouro e cores preciosas”.20

Graças aos seus esforços, naquele templo erguido como um monumental caleidoscópio, “brilhando com a glória de Deus” (Ap 21, 11), se harmonizava a luz dos vitrais com o esplendor do culto divino, o material com o imaterial, o corporal com o espiritual, o humano com o divino. Em suma, à guisa da ogiva, visava-se promover o verdadeiro encontro entre o Céu e a Terra numa única república,21 ou por outra, formar “a nova Jerusalém” mencionada no Apocalipse (21, 2).

Tendo presente a “metafísica da luz” de Dionísio e sua teoria a respeito das propriedades das pedras, aliadas à narração do Apocalipse (21, 19-21) e de Ezequiel (28, 13), Suger, “por amor à beleza da casa de Deus”,22 transpõe a filosofia e a Revelação para a matéria, empregando no templo e nos objetos litúrgicos diversos tipos de pedras: “sardônica, topázio, jaspe, crisólito, ônix, berilo, safira, carbúnculo e esmeralda”.23

Por fim, o homem pode, pela experiência estética, passar da contemplação das “luzes materiais” — os vitrais, as pedras preciosas, o ouro, as pérolas, etc. — para a “Luz imaterial”, ou melhor, “se transportar, pela graça de Deus, deste [mundo] inferior para o superior de modo anagógico”.24 Eis aqui a maravilhosa convergência entre a metafísica da luz e a arte cristã.

A arte: para que serve?

“Nossa Senhora” – Sainte-Chapelle, Paris

Na cosmovisão medieval, o universo era entendido como um livro escrito por Deus, cujas “palavras” nos fazem remontar ao próprio Autor. Por outro lado, essas “palavras” podem formar ainda outras através do engenho humano, segundo a ideia expressa por Dante, de que a obra de arte é “neta de Deus”.25

Assim, para Suger, a técnica posta a serviço do culto divino há de fazer tudo da maneira mais perfeita possível, “a ponto de que se possa dizer: ‘a obra superou a matéria’”.26 Deste modo, a arte religiosa não deve visar o seu próprio serviço (ars gratia artis): ornar uma igreja significa adornar a própria Esposa de Cristo,27 e em última instância, render louvores ao Sumo Artista.

Ora, se nos holocaustos da Lei Antiga eram empregados objetos de grande valor para recolher o sangue de animais sacrificados, muito mais conveniente é utilizar “o ouro, as pedras preciosas e tudo quanto há de melhor para conter o Sangue de Jesus Cristo”.28 Com efeito, para o Santo Sacrifício da Missa se requer toda a pureza interior e toda a nobreza exterior, pois nosso Redentor há ser servido de maneira íntegra e universal.29

Esta pureza interior significa que a estética proposta pelo Abade de Saint-Denis possui também um claro objetivo de perfeição moral; ou seja, ao unir-se ao belo, nossa alma torna-se, ela mesma, bela. E quanto mais as coisas materiais são conformes à Beleza Divina, mais nosso espírito, ao contemplá-las, é iluminado pelo “Pai das luzes”. De modo inverso, quanto mais suprimimos a beleza na arte ou somos tisnados pela mancha do pecado, mais nos afastamos da Luz primeira. Donde Suger anatematizar aquele que “destruir o preclaro altar: Que pereça da mesma condenação de Judas”.30

Esta reflexão moral é bem sintetizada pelos versos dos pórticos da Basílica de Saint-Denis: “A obra nobre resplandece, mas que esta obra, nobremente resplandecente, ilumine as mentes, a fim de que se dirijam, pelas luzes verdadeiras, à Verdadeira Luz, onde Cristo é a verdadeira porta. A mente embotada se eleva à Verdade através das coisas materiais e, ao ver esta Luz, é ressuscitada de sua queda anterior”.31 O gótico é, pois, a “expressão arquetípica da alma cristã”.32

Em suma, a arte pode levar à santidade quando está de acordo com Deus; e à corrupção, quando nela prevalece o contrário.

E o gótico, para onde nos conduz?

Que luz procuramos?

“Jesus Cristo” – Sainte-Chapelle, Paris

A arquitetura gótica uniu num conjunto harmonioso, a robustez e a elegância, a simplicidade e a sofisticação, a proporção e a claridade, aproximou o Céu e a Terra e, ao mesmo tempo, ao desafiar as alturas, guiou os homens a estarem atentos às “luzes materiais” que direcionam à Luz Verdadeira.

Sua suavidade apazigua o espírito, sua verticalidade eleva os corações, o colorido feérico dos vitrais purifica a mente. Suas ogivas apontam a reta estrada, suas pedras pregam num silêncio cogente, sua luz faz calar o poder das trevas. Pecadores nela encontram conversão; fiéis, o refúgio; poetas, a inspiração.

Vimos que a luz, guiada pela teologia, pervadiu a arte; ressaltando a qualidade material, fez transparecer o sobrenatural; através de suas catedrais, o gótico cobriu como um manto o território europeu medieval; por sua aplicação simbólica somos convidados a ver a verdadeira Luz: In lumine tuo videbimus lumen (Sl 35, 10).

Destinado a marcar a história da arte com brilho incomparável, o gótico não só convida a refletir sobre o seu objeto material, mas, por suas eminentes características, incita o espírito a procurar as realidades sobrenaturais. Por seus símbolos e força moral, por sua bondade revestida de beleza, toca-nos discretamente a consciência.

Não é verdade que quando transpomos um umbral gótico ou mesmo de qualquer piedosa igreja, somos levados a imergir num outro mundo, alheio ao corre-corre hodierno? Lá, os mundanos anúncios dão lugar à singeleza dos ex-votos. O crepitar do neon publicitário é trocado pelas cores tamisadas dos vitrais. A fumaça carburante cede espaço ao perfume do incenso. O estrépito das máquinas é substituído pelo silêncio envolvente, interrompido apenas pelas vozes litúrgicas ou pelo balbuciar das orações, ou até mesmo o sussurrar instintivo dos fiéis, os quais, enquanto lá fora são simples anônimos, dentro se sentem unidos, por uma intimidade inexplicável, como filhos de um mesmo Pai.

Diante deste panorama que se revela, sentimos admiração ou aversão?

Cabe ao leitor refletir e concluir. O que é certo é que as “luzes materiais”, como vimos, são recursos excelentes para trilhar a via de Cristo; um convite a nos tornarmos, nós mesmos, luzeiros no mundo e distantes das trevas (cf. Fl 2, 15; I Jo 1, 5-7) até o supremo encontro com Ele na Pátria Celeste quando “já não haverá noite, nem se precisará da luz de lâmpada ou do Sol, porque o Senhor Deus a iluminará, e hão de reinar pelos séculos dos séculos” (Ap 22, 5).

É esta a luz que esperamos, acima de tudo, que se faça para nós.

 

Notas

1 GUILHERME DE SAINT-DENIS. Vita Sugerii, L.I. In: SUGER. Œuvres. Paris: Les Belles Lettres, 2008, v.II, p.297.
2 Cf. TOMAN, Rolf (ed.). Gothic: Architecture, Sculpture, Painting. Köln: Könemann, 2004, p.9.
3 SANTO HILÁRIO DE POITIERS. Epistola seu libellus, V, n.101: ML 10, 767B.
4 SANTO AMBRÓSIO. In Psalmum David CXVIII expositio, s.19, n.38: ML 15, 1481.
5 SANTO AGOSTINHO. Sermone Domini in monte secundum Matthæum Libri duo. L.II, c.XXIII, n.79: PL 34, 1269.
6 Cf. DIONÍSIO AREOPAGITA. De cælesti hierarchia, c.I, n.2. In: Corpus Dionysiacum II. Ed. G. Heil and A.M. Ritter. Berlin: De Gruyter, 1991 (Patristische Texte und Studien 36), p.7, l.13.
7 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. De malo, q.16, a.8, ad 2.
8 Cf. DIONÍSIO AREOPAGITA. De cælesti hierarchia, c.II, n.3 In: Corpus Dionysiacum II, op. cit., p.13, l.16-18.
9 Cf. SUGER. op. cit., v.I, p.12-14.
10 Cf. STANLEY, David. The Original Buttressing of Abbot Suger’s Chevet at the Abbey of Saint-Denis. In: Journal of the Society of Architectural Historians. California: v.65, N.3 (Set., 2006); p.334-355.
11 SUGER, op. cit., v.I, p.26.
12 Cf. RUDOLPH, Conrad. Inventing the Exegetical Stained-Glass Window: Suger, Hugh, and a New Elite Art. In: The Art Bulletin. New York. v.93, N.4 (Dez., 2011); p.399-422.
13 Cf. RUDOLPH, Conrad (ed.). A Companion to Medieval Art: Romanesque and Gothic in Northern ­Europe. Malden: Blackwell, 2006, p.180.
14 Cf. Idem, ibidem.
15 SUGER, op. cit., v.I, p.148.
16 Idem, ibidem.
17 GRODECKI, Louis. Etudes sur les vitraux de Suger a? Saint-Denis. Paris: Presses de l’Université de Paris-Sorbonne, 1995, v.II, p.74.
18 SUGER, op. cit., v.I, p.150.
19 Idem, p.108.
20 Idem, p.110.
21 Cf. Idem, p.52.
22 Idem, p.134.
23 Idem, ibidem.
24 Idem, p.134;136.
25 Cf. DANTE ALIGHIERI. Divina Comédia. Inferno, XI, 105.
26 SUGER, op. cit., v.I, p.132
27 Idem, p.122.
28 Idem, p.136.
29 Cf. Idem, p.138.
30 Idem, p.132.
31 Idem, p.116.
32 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Só a arte sacra pode ser cristã? In: Catolicismo. São Paulo. N.24 (Dez., 1952).

 

Artigo anteriorAi de quem escandalizar!
Próximo artigoHá vida sem sofrimento?

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui