Evangelho do XXIV Domingo do Tempo Comum
“Naquele tempo, 1 os publicanos e pecadores aproximavam-se de Jesus para O escutar. 2 Os fariseus, porém, e os mestres da Lei criticavam Jesusd1. ‘Este homem acolhe os pecadores e faz refeição com eles’.
3 Então Jesus contou-lhes esta parábola: 4 ‘Se um de vós tem cem ovelhas e perde uma, não deixa as noventa e nove no deserto, e vai atrás daquela que se perdeu, até encontrá-la? 5 Quando a encontra, coloca-a nos ombros com alegria, 6 e, chegando a casa, reúne os amigos e vizinhos, e diz: ‘Alegrai-vos comigo! Encontrei a minha ovelha que estava perdida!’. 7 Eu vos digo: Assim haverá no céu mais alegria por um só pecador que se converte, do que por noventa e nove justos que não precisam de conversão. 8 E se uma mulher tem dez moedas de prata e perde uma, não acende uma lâmpada, varre a casa e a procura cuidadosamente, até encontrá-la? 9 Quando a encontra, reúne as amigas e vizinhas, e diz: ‘Alegrai-vos comigo! Encontrei a moeda que tinha perdido!’. 10 Por isso, eu vos digo, haverá alegria entre os Anjos de Deus por um só pecador que se converte’.
11 E Jesus continuou: ‘Um homem tinha dois filhos. 12 O filho mais novo disse ao pai: ‘Pai, dá-me a parte da herança que me cabe’. E o pai dividiu os bens entre eles. 13 Poucos dias depois, o filho mais novo juntou o que era seu e partiu para um lugar distante. E ali esbanjou tudo numa vida desenfreada.
14 Quando tinha gasto tudo o que possuía, houve uma grande fome naquela região, e ele começou a passar necessidade. 15 Então foi pedir trabalho a um homem do lugar, que o mandou para seu campo cuidar dos porcos. 16 O rapaz queria matar a fome com a comida que os porcos comiam, mas nem isto lhe davam.
17 Então caiu em si e disse: ‘Quantos empregados do meu pai têm pão com fartura, e eu aqui, morrendo de fome. 18 Vou-me embora, vou voltar para meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra Deus e contra ti; 19 já não mereço ser chamado teu filho. Trata-me como a um dos teus empregados’.
20 Então ele partiu e voltou para seu pai. Quando ainda estava longe, seu pai o avistou e sentiu compaixão. Correu-lhe ao encontro, abraçou-o e cobriu-o de beijos. 21 O filho, então, lhe disse: ‘Pai, pequei contra Deus e contra ti. Já não mereço ser chamado teu filho’.
22 Mas o pai disse aos empregados: ‘Trazei depressa a melhor túnica para vestir meu filho. E colocai um anel no seu dedo e sandálias nos pés. 23 Trazei um novilho gordo e matai-o. Vamos fazer um banquete. 24 Porque este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado’. E começaram a festa.
25 O filho mais velho estava no campo. Ao voltar, já perto de casa, ouviu música e barulho de dança. 26 Então chamou um dos criados e perguntou o que estava acontecendo. 27 O criado respondeu: ‘É teu irmão que voltou. Teu pai matou um novilho gordo, porque o recuperou com saúde’.
28 Mas ele ficou com raiva e não queria entrar. O pai, saindo, insistia com ele. 29 Ele, porém, respondeu ao pai: ‘Eu trabalho para ti há tantos anos, jamais desobedeci a qualquer ordem tua. E tu nunca me deste um cabrito para eu festejar com meus amigos. 30 Quando chegou esse teu filho, que esbanjou teus bens com prostitutas, matas para ele o novilho cevado’.
31 Então o pai lhe disse: ‘Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. 32 Mas era preciso festejar e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido, e foi encontrado’” (Lc 15, 1-32).
I – Uma concepção errada da justiça e da misericórdia
Os homens costumam julgar as atitudes alheias, em geral, com o seguinte critério: Agiu bem? Merece prêmio e estima. Agiu mal? Merece castigo e repulsa. Tal mentalidade, além de conspurcar a pureza de intenção das boas obras, levando a pessoa a fazer o bem pelo simples interesse de receber uma recompensa, cria na alma condições favoráveis ao desenvolvimento de toda sorte de vícios, semeados pelo amor-próprio ferido, tais como a vingança, o ressentimento e o rancor. No relacionamento com Deus, em consequência, muitos se baseiam na mesma concepção e O imaginam como um intransigente legislador, a quem a menor infração encoleriza e faz desfechar sobre o faltoso, de imediato, o merecido castigo. Ainda de acordo com esse critério, a benevolência divina apenas incide, em forma de bênçãos, consolações e demais favores sobrenaturais, sobre aqueles que, tendo cumprido de modo exímio os Mandamentos, merecem ser recompensados.
Ora, essa visão da perfeição infinita de Deus é muito deformada, pois Lhe atribui uma justiça conforme os limitados critérios humanos e ignora sua misericórdia. E tal atributo é n’Ele tão vigoroso que chega a vencer a própria justiça. Uma prova da insuperável força de sua compaixão são as palavras dirigidas aos nossos primeiros pais, logo após o pecado original: antes de sentenciar os sofrimentos aos quais a natureza humana estaria sujeita na terra de exílio, Ele lhes prometeu a vinda de um Salvador, nascido da descendência de Adão (cf. Gn 3, 15). Mal o homem havia pecado, o Senhor garantiu-lhe o perdão. Por isso, poderíamos parafrasear a afirmação de São João e dizer que, no “fiat!” de Maria Santíssima, o perdão de Deus se fez carne e habitou entre nós (cf. Jo 1, 14).
Durante sua vida mortal, Jesus manifestou com largueza o desejo de salvar, acolhendo com indulgência os pecadores arrependidos que a Ele acorriam, confiantes de ali encontrar o perdão. Entretanto, a mesma misericórdia que tanto atraía uns, despertava acirrada indignação em outros…
II – A misericórdia posta em parábolas
“Naquele tempo, 1 os publicanos e pecadores aproximavam-se de Jesus para O escutar. 2 Os fariseus, porém, e os mestres da Lei criticavam Jesus. ‘Este homem acolhe os pecadores e faz refeição com eles’”.
Para entendermos a fundo o motivo de tal objeção, basta considerar que os fariseus e mestres da Lei exemplificam de modo cabal a mentalidade deformada à qual nos referimos. Para eles “Deus é, sobretudo, Lei; julgam-se em relação jurídica com Deus e, sob este aspecto, quites com Ele”,1 comenta o Papa Bento XVI. Era também segundo o mesmo critério que avaliavam os outros, discriminando como pecadores — e, enquanto tais, objeto da ira divina e do desprezo dos homens — todos os judeus negligentes no cumprimento das prescrições legais relativas à pureza ritual ou alimentar. Na mesma categoria incluíam os publicanos, pois, além de colaborarem com o domínio pagão exercido por Roma, muitas vezes eram desonestos ao arrecadar os impostos, cometendo extorsões em benefício próprio. Todavia, o principal alvo de repulsa eram os pagãos, devido à errônea ideia, muito difundida entre os judeus, de que a eleição divina do povo hebreu era sinônimo da condenação eterna de todas as outras nações. Desta forma, se para os israelitas não observantes da Lei e para os cobradores de impostos havia ainda uma longínqua possibilidade de salvação, caso se arrependessem e se reconciliassem com Deus, tal hipótese não se aplicava a um estrangeiro, pelo simples fato de não ser beneficiário das promessas feitas aos patriarcas.
Nada poderia contundir de modo tão veemente essa mentalidade quanto o modo de Nosso Senhor proceder. A cura do servo do centurião romano (cf. Lc 7, 1-10; Mt 8, 5-13), a pecadora perdoada na casa de Simão, o fariseu (cf. Lc 7, 36-50), e a incorporação de um coletor de impostos ao Colégio Apostólico, com o chamamento de Levi (cf. Mt 9, 9-17; Mc 2, 13-22; Lc 5, 27-39), são alguns exemplos de atitudes escandalizantes para os fariseus, a cujos ouvidos soavam como blasfêmias as palavras: “Não vim chamar os justos, mas sim os pecadores” (Lc 5, 32). Por esta razão, a todo momento procuravam mostrar sua ferrenha oposição a Ele, conforme nos narra o início do Evangelho deste domingo.2
No entanto, como Jesus desejava salvar a todos — inclusive os fariseus e mestres da Lei —, sua resposta a tais objeções foi uma tríade de parábolas, registradas por São Lucas à maneira de um mesmo argumento apresentado sucessivamente, sob diferentes invólucros. Em cada uma delas, Nosso Senhor visava não só incentivar os pecadores que O ouviam a confiarem no perdão, como também convencer os opositores acerca da necessidade da misericórdia, sem a qual ninguém pode se salvar.
A ovelha desgarrada
3 “Então Jesus contou-lhes esta parábola: 4 ‘Se um de vós tem cem ovelhas e perde uma, não deixa as noventa e nove no deserto, e vai atrás daquela que se perdeu, até encontrá-la?’”.
O pastor e o rebanho, realidades tão comuns na sociedade judaica daquela época, adquirem nesta parábola seu mais elevado simbolismo. Embora tal imagem já houvesse sido utilizada no Antigo Testamento para representar o zelo de Deus por seu povo (cf. Ez 34), sua força de expressividade é sublimada pelos detalhes acrescentados pelo Divino Mestre, a fim de fazê-la significar o mistério da Redenção.
Em primeiro lugar, ao mencionar a quantidade exata de ovelhas, Nosso Senhor “refere-se a toda a multidão de criaturas racionais que Lhe estão subordinadas, porque o número cem, composto de dez dezenas, é perfeito. Mas destas, perdeu-se uma, que é o gênero humano”,3 explica São Cirilo. Na vida cotidiana o pastor toma-se de aflição ao notar a falta de uma ovelha e, deixando de lado o rebanho, não mede esforços para recuperar a desgarrada, nela concentrando toda a sua atenção. Análoga é a atitude de Deus na Redenção: ao Se encarnar, o Filho deixou no Céu “inumeráveis rebanhos de Anjos, Arcanjos, Dominações, Potestades, Tronos”,4 para, na Terra, resgatar a humanidade, perdida pelo pecado.
A alegria do pastor ao encontrar a ovelha
5 “Quando a encontra, coloca-a nos ombros com alegria, 6 e, chegando a casa, reúne os amigos e vizinhos, e diz: ‘Alegrai-vos comigo! Encontrei a minha ovelha que estava perdida!’”.
Além de não castigar a tresmalhada quando a encontra, o pastor a trata com extremo carinho e a carrega aos ombros, com um cuidado que ele não teve com nenhuma das ovelhas obedientes. Tal desvelo representa os afagos do perdão restaurador de Deus destinado aos pecadores arrependidos: ao invés de puni-los pelas ofensas recebidas e assim satisfazer os clamores da justiça, Ele prefere manifestar sua onipotência atendendo aos apelos da misericórdia. É o infinito desejo de salvar, que suplanta inclusive a maldade humana, como aponta São Gregório Magno: “Separamo-nos d’Ele, mas Ele não Se separa de nós. […] Demos as costas ao nosso Criador, e Ele ainda nos tolera; afastamo-nos d’Ele com soberba, mas Ele nos chama com suma benignidade e, podendo nos castigar, ainda promete prêmios para que voltemos”.5
Contudo, nossa primeira atenção, ao considerar esta parábola, deve se centrar na efusiva alegria do pastor ao recuperar a ovelha, convidando outros a regozijarem-se com ele. É este o principal pormenor da narração, com o qual Nosso Senhor quer significar o agrado de Deus ao encontrar uma alma dócil à ação da graça e, apesar de se ter desviado das sendas da virtude, abandona-se aos cuidados do Bom Pastor e se deixa reconduzir por Ele. Tal flexibilidade é a única exigência para perdoar e restaurar o pecador. Com isso a alma é tomada pela felicidade de se ver novamente em ordem com Deus e em paz com sua consciência, dando-Lhe a alegria de poder manifestar sua misericórdia. E, por conseguinte, participarão desse contentamento todos aqueles que O amam de verdade.
7 “Eu vos digo: Assim haverá no céu mais alegria por um só pecador que se converte, do que por noventa e nove justos que não precisam de conversão”.
O pecador e os noventa e nove justos simbolizam, segundo alguns, a humanidade e os Anjos, pois apenas estes últimos são “justos que não precisam de conversão”. Ao ressaltar a desproporção entre uns e outros, o Mestre nos dá um precioso ensinamento acerca da superioridade numérica do mundo angélico, o qual “excede o restrito campo de nossos números físicos”.6
Por outro lado, vê-se a força do perdão: seus efeitos repercutem entre os Anjos, causando-lhes maior júbilo do que sua própria perseverança. É um incentivo para nunca nos desesperarmos quando percebermos, arrependidos, que nos afastamos do rebanho, seguindo nossas más inclinações. No Sacramento da Penitência, o próprio Jesus nos aguarda, disposto a nos levar aos ombros com todas as nossas misérias.
Um exemplo para o público feminino
8 “E se uma mulher tem dez moedas de prata e perde uma, não acende uma lâmpada, varre a casa e a procura cuidadosamente, até encontrá-la?. 9 Quando a encontra, reúne as amigas e vizinhas, e diz: ‘Alegrai-vos comigo! Encontrei a moeda que tinha perdido!’. 10 Por isso, eu vos digo, haverá alegria entre os Anjos de Deus por um só pecador que se converte”.
Sem dúvida, considerável era o contingente feminino no público presente à pregação de Nosso Senhor. Por isso, Ele compõe uma segunda parábola, adaptando o enredo anterior a uma situação na qual a protagonista é uma dona de casa, responsável pela administração das economias domésticas, segundo os costumes judaicos. Empregando tais energias para reaver a moeda perdida, esta mulher é apresentada por Jesus como imagem do incansável empenho de Deus em fazer com que “todos os homens se salvem e cheguem ao pleno conhecimento da verdade” (I Tim 2, 4). Tendo sofrido a Paixão e Morte na Cruz para redimir a humanidade, Cristo ama a cada um de nós individualmente. Uma alma, mesmo que pareça insignificante ao lado dos inesgotáveis tesouros de sua onipotência, é uma “moedinha” de valor infinito, porque vale o preço de seu Preciosíssimo Sangue. Mais uma vez, o Salvador salienta o júbilo causado entre os Anjos pela conversão de “um só pecador”.
Narradas pelo Divino Mestre, tais cenas corriqueiras da vida pastoril e doméstica tornam mais acessível à nossa compreensão o sublime mistério do amor de um Deus que, fazendo-Se homem, “veio procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19, 10).
III – A parábola do Pai perfeito
A semelhança de um bom vinho, cujo cambiante sabor surpreende o paladar a cada degustação, de modo que nunca seus apreciadores podem afirmar que o conhecem completamente, a terceira parábola contada por Nosso Senhor nesta ocasião possui tal riqueza de ensinamento que sempre traz novos aspectos a serem considerados. É o célebre drama do filho pródigo, uma das mais belas páginas das Sagradas Escrituras. Tendo já sido abordada neste ciclo litúrgico, por ocasião da Quaresma,7 hoje ela nos é apresentada uma vez mais, a partir de outra perspectiva.
O pai entrega os bens
11 “E Jesus continuou: ‘Um homem tinha dois filhos. 12 O filho mais novo disse ao pai: ‘Pai, dá-me a parte da herança que me cabe’. E o pai dividiu os bens entre eles’”.
O pai, sem dúvida, foi tomado por um profundo desgosto ao receber o pedido do filho menor. Além de denunciar a intenção do jovem de abandonar a casa paterna — pois só neste caso se fazia a repartição da herança antes da morte do pai 8 —, a solicitação confirmava suas apreensões a respeito daquele filho, em cuja alma já discernira o tumultuar das paixões desordenadas. Com dor, previu os caminhos tortuosos pelos quais o jovem se embrenharia; entretanto, percebendo ser impossível fazê-lo desistir de seus intentos, não tomou nenhuma atitude para impedi-lo e entregou-lhe sua parte da fortuna. É exatamente como Deus age conosco: concede-nos em abundância suas graças e dons, apesar de conhecer, em sua onisciência, o mau uso que poderemos fazer desses bens, quer valorizando-os pouco, quer negligenciando-os ou até mesmo usando-os para pecar.
Paciência: um dos nomes da misericórdia
13 “Poucos dias depois, o filho mais novo juntou o que era seu e partiu para um lugar distante. E ali esbanjou tudo numa vida desenfreada”.
O filho trocou a inocência do lar pela vida devassa. Expressiva imagem de todos os batizados que, desprezando a condição de filhos de Deus, abandonam o estado de graça ao cometer uma falta grave! Esbanjando o tesouro sobrenatural entregue pelo Pai celeste, preferem o prazer fugaz do pecado à felicidade do convívio com Deus e Maria Santíssima, na eternidade.
Por sua vez, em nenhum momento o pai se esqueceu do jovem e, sem jamais perder as esperanças de reencontrá-lo, continuamente elevava ao Céu aflitas orações por sua conversão. Com igual indulgência Deus reage conosco quando O ofendemos e, em sua bondade, nunca nos desampara, mesmo quando nos afastamos d’Ele com o pecado. Refletindo sobre esta clemência, escreve Santo Afonso de Ligório: “Se tivésseis insultado um homem como insultastes a Deus, ainda que fosse vosso melhor amigo ou ainda vosso próprio pai, não teria ele outra resposta senão vingar-se. Quando ofendias a Deus, poderia ter-vos castigado no mesmo instante; tornastes a ofendê-Lo e, ao invés de castigar-vos, devolveu-vos bem por mal, conservou-vos a vida, rodeou-vos de todos os seus cuidados providenciais, fingiu não ver os pecados, na expectativa de que vos emendásseis e cessásseis de injuriá-Lo”.9 Por conseguinte, enquanto as duas parábolas precedentes ressaltam a iniciativa de Deus na conversão dos homens, esta ilustra outro aspecto da misericórdia d’Ele, o qual se cifra na paciência em esperar que “o pecador caia em si, e possa perdoá-lo e salvá-lo”.10
Na extrema decadência, lembrança da bondade do pai
14 “Quando tinha gasto tudo o que possuía, houve uma grande fome naquela região, e ele começou a passar necessidade. 15 Então foi pedir trabalho a um homem do lugar, que o mandou para seu campo cuidar dos porcos. 16 O rapaz queria matar a fome com a comida que os porcos comiam, mas nem isto lhe davam”.
O jovem, outrora abastado, tornou-se um indigente faminto, cuja situação desesperadora o fez aceitar o humilde trabalho de guardador de porcos. É um símbolo da completa miséria à qual o pecado mortal reduz a alma, arrancando-lhe todos os méritos e tornando-a merecedora do inferno, realidade tão mais terrível que a do filho pródigo. “Não há catástrofe nem calamidade pública ou privada que possa ser comparada à ruína causada na alma por um só pecado mortal. É como um desmoronamento instantâneo de nossa vida sobrenatural, um verdadeiro suicídio da alma em relação à vida da graça”.11
Não é raro, porém, Deus permitir que o pecador caia neste ínfimo estado para então fazer nascer em sua alma as saudades da inocência perdida.
17 “Então caiu em si e disse: ‘Quantos empregados do meu pai têm pão com fartura, e eu aqui, morrendo de fome. 18 Vou-me embora, vou voltar para meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra Deus e contra ti; 19 já não mereço ser chamado teu filho. Trata-me como a um dos teus empregados’”.
Só então, em meio às amargas frustrações do pecado, o jovem começou a refletir, contrastando a penúria em que se encontrava com a abundância da casa paterna. Veio-lhe à recordação a bondade e o afeto de seu pai, o maior bem perdido com a vida desregrada que levara. Suas palavras deixam transparecer essa disposição de alma, pois se referem não a um simples retorno ao lar, mas a um desejo de pôr-se novamente sob tal amparo: “Vou voltar para meu pai”.
No entanto, jamais teria ele decidido abandonar o pecado se não houvesse a ação da graça em sua alma, pois é impossível ao homem converter-se movido apenas pela própria força de vontade, conforme sublinha Santo Agostinho: “Ninguém se arrependeria de seu pecado se não houvesse um chamado de Deus”.12
A inesperada acolhida
20 “Então ele partiu e voltou para seu pai. Quando ainda estava longe, seu pai o avistou e sentiu compaixão. Correu-lhe ao encontro, abraçou-o e cobriu-o de beijos”.
É bem provável que o pai tenha sentido acenderem-se, muitas vezes, suas esperanças quanto à volta do filho. Dirigia-se, então, a um local de onde podia divisar os caminhos da região e ali passava longos períodos rezando, numa confiante espera… Até o dia em que “o avistou e sentiu compaixão”. O jovem, maltrapilho e com a fisionomia desfigurada pela vida de pecado, estava bem mudado em relação à última vez que o pai o vira. Muito mais profunda, todavia, era sua transformação interior. Saíra de casa orgulhoso e julgando-se autossuficiente; retornava humilde, consciente da própria fraqueza e confiante na bondade do pai. Tendo corrido ao seu encontro, o pai logo constatou tal câmbio e, vencendo toda a repugnância que a aparência miserável do filho lhe causava, não hesitou em manifestar-lhe com profusão seu afeto.
Esta enternecedora cena narrada por Jesus representa, de maneira eloquente, a acolhida do Pai celeste às almas arrependidas, que não é senão uma vigorosa manifestação de seu amor infinito. “Com quanta ternura Deus abraça o pecador que se converte! […] É o Pai que, ao retornar o filho perdido, sai a seu encontro, abraça-o, beija-o e, ao recebê-lo, não pode conter a alegria que o embarga. […] Mal o pecador se arrepende, lhe são perdoados seus pecados e [Deus] deles se esquece, como se nunca O tivesse ofendido”,13 ressalta Santo Afonso de Ligório.
Alegria pelo retorno do filho
21 “O filho, então, lhe disse: ‘Pai, pequei contra Deus e contra ti. Já não mereço ser chamado teu filho’. 22 Mas o pai disse aos empregados: ‘Trazei depressa a melhor túnica para vestir meu filho. E colocai um anel no seu dedo e sandálias nos pés. 23 Trazei um novilho gordo e matai-o. Vamos fazer um banquete. 24 Porque este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado’. E começaram a festa”.
A boa disposição de alma com que o jovem se apresentava, reconhecendo com humildade seu erro, era suficiente para o coração paterno transbordar de contentamento e tomar providências para uma grande comemoração. Acentuando pela terceira vez a alegria de Deus ao perdoar — personificado aqui pelo pai —, Nosso Senhor também ensina neste trecho quanto o verdadeiro arrependimento pode conceder à alma um grau maior de graça do que o perdido com o pecado,14 pois o filho jamais fora honrado com uma festa de tal porte quando vivera em casa, antes de perverter-se.
Ainda nesta passagem, nossa atenção se volta para um pequeno detalhe: qual a procedência do traje que o pai manda trazer para vestir o filho, em substituição dos andrajos com os quais se cobria, uma vez que o jovem reunira “tudo o que era seu” antes de partir? Talvez tenha sido retirado dos pertences do filho mais velho… Nesse caso, aplicar-se-ia a afirmação do Mestre: “Ao que tem, se lhe dará; e ao que não tem, se lhe tirará até o que tem” (Mc 4, 25). Nota-se, pois, que embora o caçula estivesse na miséria, possuía algo que havia muito o primogênito deixara de ter, um bem inestimável: o amor pelo pai. Os próximos versículos oferecem dados elucidativos que confirmam tal hipótese.
Um filho sem amor pelo pai
25 “O filho mais velho estava no campo. Ao voltar, já perto de casa, ouviu música e barulho de dança. 26 Então chamou um dos criados e perguntou o que estava acontecendo. 27 O criado respondeu: ‘É teu irmão que voltou. Teu pai matou um novilho gordo, porque o recuperou com saúde’. 28a Mas ele ficou com raiva e não queria entrar”.
Seria compreensível que, num primeiro momento, o impacto da festa suscitasse certa indignação no filho mais velho, por lhe trazer à lembrança a ingratidão do irmão para com o pai e o profundo desgosto que este sofrera por causa disso. Não obstante, ao se inteirar do júbilo em que ele agora se encontrava pelo regresso deste irmão, tal sentimento deveria ser logo controlado e, demonstrando uma consonância afetiva com o pai, teria entrado de imediato para a festa.
Bem outra, entretanto, foi sua reação. O que a teria motivado? Sob um prisma humano, o primogênito agira com maior astúcia que o outro, permanecendo no lar enquanto o irmão se lançava nos riscos do mundo. Em uma cômoda situação, com todas as necessidades materiais garantidas, servia o pai por interesse, vivendo em casa mais como um hóspede do que como um filho. Sua obediência à autoridade paterna se originava em motivos de conveniência e não no afeto filial. Apesar de estar fisicamente próximo ao pai, encontrava-se dele separado pelas gélidas distâncias da indiferença. Tal disposição de alma é indicada por Nosso Senhor ao dizer que o jovem “estava no campo”, ou seja, dedicado “às obras terrenas, longe da graça do Espírito Santo, alheio aos desígnios de seu pai”,15 explica São Jerônimo.
Conjecturas sobre a atitude do primogênito
Sendo tal seu desamor, é provável ter ele ficado em casa devido a certa ambição de apropriar-se do restante da fortuna do progenitor, quando este viesse a falecer. E, enquanto o mais novo fugira do olhar paterno, indo dissipar seus bens num “lugar distante”, o primogênito, sob a aparência de uma conduta correta, também fazia mau uso dos bens de família, tentando dissimular ao pai os caminhos tortuosos nos quais andava. O acesso de raiva com o retorno do irmão não terá sido, portanto, a manifestação de uma consciência pesada e de uma alma amargurada pelas frustrações do pecado, consumindo-se de inveja ao ver o outro gozando das alegrias do perdão? E não terá sua cólera aumentado ainda mais ao pensar que a reintegração do irmão ao núcleo familiar impediria a realização de sua cobiça, implicando numa nova divisão de bens entre os dois herdeiros?
Por isso, embora a interpretação clássica desta parábola considere os dois filhos como imagem do povo judeu e dos gentios,16 respectivamente, há uma dimensão de significado muito mais ampla em ambas as figuras. O caçula é o pecador público, o qual não esconde seus desregramentos e, para amortecer a consciência, procura esquecer-se de Deus, afastando-se de tudo o que possa reavivá-Lo na lembrança. O primogênito é o pecador oculto, com a fisionomia tranquila e atitudes exteriores conformes à virtude, parecendo justo aos olhos dos homens; por dentro, porém, está cheio de hipocrisia e iniquidade (cf. Mt 23, 28).
28b “O pai, saindo, insistia com ele. 29 Ele, porém, respondeu ao pai: ‘Eu trabalho para ti há tantos anos, jamais desobedeci a qualquer ordem tua. E tu nunca me deste um cabrito para eu festejar com meus amigos. 30 Quando chegou esse teu filho, que esbanjou teus bens com prostitutas, matas para ele o novilho cevado’”.
Esta insolente resposta confirma não se trata de uma revolta contra os desvarios do irmão, mas sim contra a benevolente acolhida do pai. Julgando-se digno de recompensa e o outro merecedor de castigo, sentia-se injustiçado ao ver a bondade paterna agir de modo diferente, não só perdoando ao faltoso, como também dando-lhe mostras de extremo afeto. É a reação característica daqueles que nunca experimentaram os efeitos do perdão e não conseguem compreender a misericórdia com a qual os outros são tratados. A este filho invejoso, caberia ao pai responder com as palavras postas por Jesus nos lábios do dono da vinha ao dirigir-se aos operários inconformados com o generoso pagamento feito aos trabalhadores da última hora: “Porventura vês com maus olhos que eu seja bom?” (Mt 20, 15). O pai, contudo, até esta desrespeitosa acusação refuta com benignidade.
Aviso aos que rejeitam a misericórdia
31 “Então o pai lhe disse: ‘Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. 32 Mas era preciso festejar e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido, e foi encontrado’”.
Aparece aqui um novo matiz da bondade paterna: esclarecendo o real motivo da festa — não se tratava de uma homenagem aos vícios de quem fora até então esbanjador, e, sim, uma comemoração de seu retorno —, o pai “não leva em consideração o que o filho afirma a respeito de não ter faltado a nenhuma de suas ordens. Ele não confirma ser verdade o que este dissera, mas trata de acalmar sua ira por outro caminho: ‘Filho, tu estás sempre comigo’”.17 Dessa forma, prova ter conhecimento das vias estranhas à virtude em que o filho andava e, ao mesmo tempo, lhe demonstra o quanto também era ele objeto de sua paciência misericordiosa, pois suportava tal hipocrisia e desamor no dia a dia, na confiante espera de uma regeneração.
Finalizando a parábola, Jesus repreendia tacitamente os fariseus e mestres da Lei, apontando a necessidade de sempre ajustar os próprios critérios de acordo com a ação de Deus, nunca analisando o atuar divino segundo a tacanha visualização humana. E, nas entrelinhas da narrativa dava-lhes um aviso, a eles e a todos os que se fecham ao perdão: “Conheço vossos pecados desde toda a eternidade, e desejo perdoar-vos, assim como perdoo a estes que a Mim recorrem. Entretanto, vós vos recusais receber a minha compaixão e vos revoltais ao ver outros beneficiados por ela. Agindo desse modo colocais em risco vossa salvação, porque aos que rejeitam a misericórdia nesta vida está reservada minha justiça na eternidade”.
IV – Conclusão
A sequência de parábolas apresentada no Evangelho deste 24º Domingo do Tempo Comum surge diante de nós como um prisma através do qual a História da Salvação ganha um colorido especial. Para resgatar a humanidade perdida pelo pecado, o Bom Pastor assumiu nossa natureza, morreu na Cruz, e de seu lado aberto pela lança fez nascer a Igreja, autêntico redil de Cristo, no qual os homens são introduzidos pelas águas do Batismo, conferindo-lhes ainda a superior dignidade de se tornarem filhos de Deus. Dóceis à graça, os homens produziram frutos à altura de sua condição de herdeiros do Céu, construindo uma civilização alicerçada nos ensinamentos do Evangelho.
Sem embargo, com o passar do tempo a humanidade começou a menosprezar essa filiação divina e foi-se afastando do Pai celeste. Em nossos dias, muitos são os que vivem como se Ele não existisse. Entregando-se ao pecado, dissiparam os tesouros que lhes haviam sido confiados com a vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo ao mundo e caminharam de desvario em desvario. Se traçássemos um paralelo entre a humanidade atual e o filho pródigo, com tristeza veríamos não estar ela muito distante do estágio no qual, reduzido à completa miséria, o jovem quis se alimentar com as bolotas dos porcos. Permitindo que os homens caiam nos horrores de um mundo contrário à virtude, Deus espera pacientemente o momento exato para lhes conceder as luzes de sua misericórdia, através de uma ação do Espírito Santo. Tal ação lhes fará ver com clareza seu deplorável estado e lhes suscitará as saudades das maravilhas da graça, abandonadas já há tantos séculos.
Os símbolos, porém, sempre claudicam em relação à realidade, e a fé nos faz crer que o futuro dos homens superará em muito o desfecho da parábola, sobretudo por causa de um elemento. Na narração, não aparece uma figura que na História tem papel fundamental: Maria Santíssima, a quem Deus constituiu Advogada e Refúgio dos pecadores, Mãe dos homens. Quando a humanidade pródiga começar a empreender o caminho de volta, essa Mãe virá ao seu encontro e a receberá com incomensurável bondade. Bastará então que Lhe seja dirigida a súplica humilde e confiante: “Pecamos contra Deus e contra Vós; já não merecemos ser chamados vossos filhos. Tratai-nos como se fôssemos servos”. Ela mesma intercederá, então, junto a seu Filho, levando-Lhe o pedido de clemência. Nesse momento em que os homens se apresentarem diante do trono da Divina Misericórdia, colocando-se na condição de escravos da Sabedoria Eterna e Encarnada, pelas mãos de Maria, estará concedido o perdão restaurador.
E assim como o pai festejou o jovem arrependido, Deus tratará como filhos prediletos a estes que se entregarem sem reservas, e promoverá a comemoração inaugural de um novo regime de graças no plano da salvação: o Reino de Maria, era histórica da misericórdia, constituída por almas que, reconhecendo-se pecadoras, se terão deixado transformar pela força do perdão. ◊
Notas
1 BENTO XVI. Jesús de Nazaret. Primera parte. Desde el Bautismo a la Transfiguración. Bogotá: Planeta, 2007, p.252-253.
2 O espírito objetante de que os fariseus davam mostras em diversas circunstâncias fica insinuado no original grego. O tempo verbal empregado por São Lucas é o imperfeito διεγόγγυζον, indicando continuidade de ação. Não se tratava de um ato, mas de uma constante atitude de crítica.
3 SÃO CIRILO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea. In Lucam, c.XV, v.1-7.
4 SANTO AMBRÓSIO. Tratado sobre el Evangelio de San Lucas. L.VII, n.210. In: Obras. Madrid: BAC, 1966, v.I, p.456.
5 SÃO GREGÓRIO MAGNO. Homiliæ in Evangelia. L.II, hom.14, n.17. In: Obras. Madrid: BAC, 1958, p.722.
6 DIONÍSIO AREOPAGITA. La Jerarquía Celeste. C.XIV, 321 A. In: Obras Completas. Madrid: BAC, 1990, p.175.
7 Cf. CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. O Filho Pródigo: Justiça e Misericórdia. In: Arautos do Evangelho. São Paulo. N.27 (Mar., 2004); p.6-11; Comentário ao Evangelho do IV Domingo da Quaresma – Ano C. In: O inédito sobre os Evangelhos. Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2012, v.V, p.223-234.
8 Cf. SÁENZ, SJ, Alfredo. Las Parábolas del Evangelio según los Padres de la Iglesia. La misericordia de Dios. 2.ed. Guadalajara: APC, 2001, p.160-161.
9 SANTO AFONSO MARIA DE LIGÓRIO. Obras Ascéticas. Madrid: BAC, 1954, t.II, p.697.
10 Idem, p.698.
11 ROYO MARÍN, OP, Antonio. Teología de la salvación. 3.ed. Madrid: BAC, 1965, p.68-69.
12 SANTO AGOSTINHO. Epistolæ ad Romanos inchoata expositio, n.9. In: Obras. Madrid: BAC, 1959, v.XVIII, p.76.
13 SANTO AFONSO MARIA DE LIGÓRIO, op. cit., p.699-700.
14 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.89, a.2.
15 SÃO JERÔNIMO. Epistola ad Damasum XXI, 28. In: Cartas. Madrid: BAC, 1962, v.I, p.143.
16 Cf. SÃO BEDA. In Lucæ Evangelium. L.IV, c.XV: ML 92, 526; SÃO JERÔNIMO, op. cit., 27, p.142-149; SANTO AGOSTINHO. Sermo CXXXVI, n.8. In: Obras. Madrid: BAC, 1952, v.X, p.520-521; SANTO AMBRÓSIO, op. cit., p.470-472.
17 SÃO JERÔNIMO, op. cit., 34, p.146.