É possível viver sem sofrimento? Não seria esta a vida ideal a ser almejada? E para alcançar este objetivo, o melhor não seria fugir sempre da cruz e procurar satisfazer em tudo o nosso egoísmo? A vida sem dor é utopia, pura ilusão. E o pior sofrimento para o homem é o de não sofrer ordenadamente, em razão de uma finalidade que justifique a sua vida.
Evangelho do XXIX Domingo do Tempo Comum
“Naquele tempo, 35 Tiago e João, filhos de Zebedeu, foram a Jesus e Lhe disseram: ‘Mestre, queremos que faças por nós o que vamos pedir’. 36 Ele perguntou: ‘O que quereis que Eu vos faça?’. 37 Eles responderam: ‘Deixa-nos sentar um à tua direita e outro à tua esquerda, quando estiveres na tua glória!’.
38 Jesus então lhes disse: ‘Vós não sabeis o que pedis. Por acaso podeis beber o cálice que Eu vou beber? Podeis ser batizados com o batismo com que vou ser batizado?’. 39 Eles responderam: ‘Podemos’. E Ele lhes disse: ‘Vós bebereis o cálice que Eu devo beber, e sereis batizados com o batismo com que Eu devo ser batizado. 40 Mas não depende de mim conceder o lugar à minha direita ou à minha esquerda. É para aqueles a quem foi reservado’.
41 Quando os outros dez discípulos ouviram isso, indignaram-se com Tiago e João. 42 Jesus os chamou e disse: ‘Vós sabeis que os chefes das nações as oprimem e os grandes as tiranizam. 43 Mas, entre vós, não deve ser assim; quem quiser ser grande, seja vosso servo; 44 e quem quiser ser o primeiro, seja o escravo de todos. 45 Porque o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida como resgate para muitos’” (Mc 10, 35-45).
I – A Teologia do Sofrimento
É frequente encontrar, nas pessoas que começam a abrir os olhos para o estudo da Religião, manifestações de uma indignada reação análoga à de Clóvis, rei dos Francos, ao ouvir o relato da morte de Nosso Senhor Jesus Cristo: “Ah! Por que não estava eu lá com os meus francos?”. 1Custa imaginar como pôde o Divino Salvador, a Suma Bondade, ser morto de maneira tão injusta e cruel, sem que ninguém, nem mesmo algum dos numerosos beneficiados por seus milagres, se apresentasse para defendê-Lo.
A resposta para essa dificuldade, vamos encontrá-la na Liturgia deste domingo, a qual trata daquilo que se poderia denominar a “teologia do sofrimento”.
Pelo sofrimento, chega-se à “ciência perfeita”
Na primeira leitura, o profeta Isaías mostra ter Nosso Senhor padecido tudo quanto era possível, para redimir o gênero humano:2 “O Senhor quis macerá-lo com sofrimentos. Oferecendo sua vida em expiação, ele terá descendência duradoura e fará cumprir com êxito a vontade do Senhor. Por esta vida de sofrimento, alcançará luz e uma ciência perfeita. Meu Servo, o justo, fará justos inúmeros homens, carregando sobre si suas culpas” (Is 53, 10-11).
Nos divinos arcanos, aprouve ao Pai permitir que o Filho, o Servo de Javé, fosse “macerado com sofrimentos”. Expressão categórica que significa moer o trigo ou pisar a uva no lagar. E como passou Ele por essa “maceração”? Sereno, tranquilo, suportando tudo como um cordeiro, sem nenhuma queixa, com inteira paciência e submissão aos desígnios do Pai. Com isso, ensina São Tomás, “mereceu a glória da exaltação pelo abatimento da Paixão”. 3
Pela via do sofrimento, explica o profeta, Jesus “alcançará luz e uma ciência perfeita”. Ora, o que poderia Nosso Senhor receber que ainda não tivesse? Ele é Deus, portanto, o Conhecimento e a Verdade em substância! A que ciência perfeita faz referência Isaías?
Em Jesus Cristo podemos distinguir quatro conhecimentos: o divino, pois Ele é Deus; o beatífico, decorrente de sua alma ter sido criada na visão beatífica; a ciência infusa, recebida no instante de sua concepção humana; e o experimental, em sua humanidade, o único passível de aumento, pois “exercia-se nas condições históricas de sua existência no espaço e no tempo”,4 à medida em que Ele ia tendo contato com as coisas.
Em sua vida terrena, para merecer o seu próprio conhecimento e, mais ainda, comprar o conhecimento para os outros, devia Jesus padecer. Ele comprovava pelo conhecimento experimental o que já sabia pelos outros três, alcançando assim a ciência perfeita a partir da vida da dor.
Pela via do sofrimento, chega-se à perfeição
Dessa maneira, mostra-nos Isaías o quanto é pela via do sofrimento que, à imitação do Messias, se chega à perfeição. Vê-se, em consequência, ser a dor bem aceita a única maneira de atrair as bênçãos divinas para a perpetuidade de uma obra sobrenatural. Não há outra via! Jesus apontou-nos apenas um caminho para segui-Lo: “tomar a cruz” (cf. Mc 8, 34), através da qual cumprimos a vontade do Senhor.
Ora, nossa natureza é avessa à cruz, tem verdadeiro pânico do sofrimento e o instinto de conservação nos leva a fugir da dor. Esta situação, tão comum à condição humana, nos é apresentada pelo Evangelho do 29º Domingo do Tempo Comum, analisado em sua profundidade.
II – A última subida a Jerusalém
O Divino Redentor está subindo para Jerusalém pela derradeira vez. Os Apóstolos tentaram dissuadi-Lo, alegando o quanto punha em risco sua vida (cf. Jo 11, 7-8), devido ao tremendo ódio das autoridades religiosas contra Ele. Mas o Mestre está decidido. Ficam eles, então, entre a insegurança do instinto de conservação — pois se interessavam certamente por Jesus, mas também temiam pela própria vida — e a confiança naquele poder misterioso manifestado por Ele em tantas circunstâncias.
De fato, os Apóstolos tinham dificuldade de entender a possibilidade da morte de Jesus. Imaginavam um Messias de acordo com a inteligência especulativa deles, com uma perfeição segundo seus critérios humanos, que deveria assumir o governo político da nação. Julgavam que Nosso Senhor não poderia morrer, pois, mediante os extraordinários poderes com os quais curava e ressuscitava, tinha meios de viver indefinidamente, e desse modo organizar um reino terreno sem igual.
Entretanto, as cogitações e as vias do Salvador eram bem outras, e rumavam em direção oposta. Ao longo do caminho, revelou-lhes com toda clareza o que iria acontecer: “Eis que estamos subindo para Jerusalém e o Filho do Homem vai ser entregue aos sumos sacerdotes e aos doutores da Lei. Eles O condenarão à morte e O entregarão aos pagãos. Vão zombar d’Ele, cuspir n’Ele, vão torturá-Lo e matá-Lo. E, depois de três dias, Ele ressuscitará” (Mc 10, 33-34). Mais explícito, realmente, Ele não poderia ter sido!
Logo em seguida a esta revelação, parecendo fazer abstração completa do que acabavam de ouvir, os irmãos Tiago e João formulam a Jesus um pedido de uma ousadia surpreendente. Observa, a este propósito, Lagrange: “Parece, pois, que a lição dos sofrimentos ainda não causou séria impressão aos discípulos; não suspeitam qual a finalidade destes na obra messiânica. Talvez até julguem que o Mestre Se deixe impressionar por engano. De qualquer modo, porém, Ele mesmo falou de ressurreição. Todo o resto não passa de um episódio sobre o qual o pensamento deles desliza para deter-se nessa glória”.5
Um pedido despropositado acolhido com bondade
“Naquele tempo, 35 Tiago e João, filhos de Zebedeu, foram a Jesus e Lhe disseram: ‘Mestre, queremos que faças por nós o que vamos pedir’”.
Eles expõem esta demanda a Nosso Senhor com toda confiança e intimidade, diante dos outros. Dir-se-ia ser um pedido despropositado, feito de modo pouco educado e de todo inadequado. Portanto, reuniria as condições para não ser atendido. Surpreendente, porém, será a reação do Divino Mestre.
36 “Ele perguntou: ‘O que quereis que Eu vos faça?’”.
Embora conhecesse muito bem a intenção deles, o Senhor os acolhe com bondade, mostrando-Se disposto a atender. Ou seja, até pedidos na aparência absurdos, Deus os toma com benevolência. Por quê? Porque é tal o seu desejo de nos facilitar os caminhos para a salvação que, ainda quando nos comportamos de maneira inconveniente, Ele nos recebe como Pai insuperável.
Pedem uma glória humana, recebem a felicidade eterna
37 “Eles responderam: ‘Deixa-nos sentar um à tua direita e outro à tua esquerda, quando estiveres na tua glória!’”.
Ao lermos este versículo hoje, quase dois mil anos depois do fato, ficamos pasmos: como chegaram a proceder desta forma São Tiago e São João? Desconcerta. Percebe-se estarem ambos supondo uma glória terrena, com Nosso Senhor tornando-Se rei de Israel, ou seja, a glória de um Messias humano conquistando o poder político, social e financeiro da nação eleita. Tinham a impressão de que isso não estava longe de acontecer, e calculavam poder obter bons postos, a julgar pelas prerrogativas com as quais o Mestre já antes os distinguira.
Ora, o mais impressionante é que Jesus, em certo sentido, dispõe-Se a atendê-los, concedendo não o que pretendiam, mas muito mais: a felicidade eterna no Céu. Nosso Senhor transferirá o pedido deles da Terra para a glória celeste, dando-lhes “o presente dessa enorme graça que é o amor à Cruz”.6
Nosso Senhor sempre quer nos dar o melhor
38a “Jesus então lhes disse: ‘Vós não sabeis o que pedis’”.
Julgam alguns estar neste versículo condenado todo e qualquer desejo de proeminência, mas não há na resposta de Nosso Senhor base para essa interpretação. Ele dá a entender que os dois irmãos estão pedindo pouca coisa. A natureza humana deles está ávida de glórias mundanas, passageiras, enquanto o Mestre os quer convidar para as celestes, eternas. Por isso, não nega o pedido, cuja verdadeira dimensão eles ignoram. Eles não sabiam o que estavam pedindo porque se equivocavam quanto ao gênero de honra desejado.
Isto mostra que é legítimo aspirar a uma proporcionada grandeza terrena — desde que seja ela útil para a santificação de quem pede e dos outros —, pois, ensina São Tomás que, no tocante aos bens temporais, “o Senhor não proibiu a solicitude necessária, mas a solicitude desordenada”.7
O cálice da dor
38b “Por acaso podeis beber o cálice que Eu vou beber? Podeis ser batizados com o batismo com que vou ser batizado?”.
A resposta do Redentor denota que os filhos de Zebedeu desconheciam o caminho para chegar até essa glória que ambicionavam. Mas Nosso Senhor queria dá-la no plano sobrenatural: “Em vez de censurar logo de início a ambição dos dois irmãos, Jesus Se empenha em corrigir a ideia falsa que eles têm de sua missão”.8
Bem conhecia nosso Salvador o quanto Ele deveria padecer, por isso menciona o cálice e o batismo de sangue, ambos símbolos do sofrimento.9 E no Horto das Oliveiras chegará a pedir: “Abbá! Pai! Tudo é possível para Ti! Afasta de Mim este cálice! Contudo, não seja o que Eu quero, e sim o que Tu queres” (Mc 14, 36). Assim, Ele pergunta a São Tiago e a São João se estão preparados para beber o cálice que a primeira leitura descreve como sendo da dor, do sofrimento, do drama. E o batismo de sangue corresponderia à Paixão do Cordeiro: “Jesus fala da imersão como se Ele devesse ser mergulhado num abismo de tormentos”.10
Cegueira ante a perspectiva da dor
39a “Eles responderam: ‘Podemos’”.
Supunham os dois irmãos, sem dúvida, que o cálice e o batismo aludidos por Nosso Senhor representavam as dificuldades a serem transpostas para alcançar a glória temporal imaginada por eles, e que, portanto, valia a pena enfrentá-las… Possivelmente também, julgavam em seu otimismo ser feito de honra e prestígio esse batismo.
Ora, este equívoco é consequência da incompreensão da advertência de Nosso Senhor a respeito da sua Paixão e Morte, as quais Ele já mencionara três vezes, dando inclusive detalhes dos tormentos que padeceria (cf. Mc 8, 31-32; 9, 31; 10, 33-34). Ao mesmo tempo, tornavam-se cada vez mais claras as ameaças de isto vir a se efetivar (cf. Jo 10, 31-40; 11, 49-54).
Acontece que os Apóstolos, em sua cega esperança de felicidade mundana, se obstinavam na ideia do Messias temporal. Davam a essas previsões do Divino Mestre o valor de uma linguagem simbólica, talvez julgando que, afinal, Ele daria um golpe qualquer e seria proclamado Rei de Israel, como descendente que era de Davi. Por isso, Tiago e João respondem com ânimo à pergunta de Nosso Senhor: “Podemos”.
Os planos de Deus são inalteráveis
39b “E Ele lhes disse: ‘Vós bebereis o cálice que Eu devo beber, e sereis batizados com o batismo com que Eu devo ser batizado. 40 Mas não depende de Mim conceder o lugar à minha direita ou à minha esquerda. É para aqueles a quem foi reservado’”.
Ao pedido formulado num plano meramente natural e segundo critério equivocado, Nosso Senhor replica a partir de uma perspectiva sobrenatural: desde toda a eternidade Deus Pai escolheu o lugar de cada qual segundo o sapiencial plano traçado por Ele. Portanto, apesar de ser legítimo o desejo dos filhos de Zebedeu, era preciso acima de tudo fazer a vontade do Pai.
Com efeito, as palavras do Mestre sobre os dois irmãos se confirmaram: relata-nos a História ter sido São Tiago o primeiro Apóstolo a beber o cálice do martírio, em Jerusalém, pelo ano 44 (cf. At 12, 1-2). Quanto a São João, consta ter tido morte natural, muito idoso, pelo ano 104. O discípulo amado não deixou de “beber do cálice”, pois foi o único Apóstolo a acompanhar de perto a Paixão do Senhor e a sofrer junto com Ele; e, segundo antiquíssima tradição, teria sido lançado mais tarde numa caldeira de azeite fervente, e saído milagrosamente ileso.11 Portanto, em ambos se realizou o predito por Jesus: eles beberam o cálice e passaram pelo batismo de sangue.
As disputas no Colégio Apostólico antes de Pentecostes
41 “Quando os outros dez discípulos ouviram isso, indignaram-se com Tiago e João”.
A certa distância, os demais Apóstolos acompanhavam com atenção a conversa, e se indignaram ao ouvir o pedido dos dois irmãos. Certamente, não por verdadeiro zelo em relação a Jesus, mas, quiçá, por cada qual julgar-se mais digno de receber a almejada honraria. Afinal de contas, desejavam também eles participar dessa disputa. Isso torna evidente o quanto essas doze magníficas colunas sobre as quais se levantaria o sagrado edifício da Igreja tinham, antes da descida do Espírito Santo, uma visão humana e político-social de Jesus Cristo e estavam com os olhos fixos na conquista do poder temporal.
42 “Jesus os chamou e disse: ‘Vós sabeis que os chefes das nações as oprimem e os grandes as tiranizam’”.
Com essa referência aos governantes da época, Cristo advertia seus Apóstolos de que quem deseja a glória mundana e assume o poder por amor-próprio acaba sendo um tirano. De fato, sem o auxílio da graça e a prática da virtude, a tendência do poderoso é oprimir os subalternos. E, tendo sido os judeus escravizados diversas vezes, disso eles tinham as cicatrizes de amargas experiências…
O critério de precedência entre os bons
43 “Mas, entre vós, não deve ser assim; quem quiser ser grande, seja vosso servo; 44 e quem quiser ser o primeiro, seja o escravo de todos”.
Entre os bons, qual deve ser o critério de precedência? Nosso Senhor insistirá por duas vezes que é o da submissão: ser servo e ser escravo. Dentro da instituição que Ele está fundando, deve-se aprender a servir: quem mais serve, maior será; e quem menos serve, menor será. O que qualifica para o Reino de Deus é a disposição de servir.
Nosso Senhor não condena, pois, o desejo de ser o primeiro na linha do bem, mas sim o meio errado de chegar a essa posição. “Ele não Se espanta com a preocupação dos discípulos, e não contesta o princípio da hierarquia, mas insinua o espírito novo que deve animar os chefes”.12 O caminho, isto sim, é aquele cujo exemplo foi dado por Ele mesmo: serviço e escravidão.
O exemplo do Filho do Homem
45 “Porque o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida como resgate para muitos”.
Já na infância, Jesus Se colocou na mais plena sujeição e a serviço de Maria Santíssima e de São José, embora sendo Deus e o Criador de ambos. Mais ainda, pôs-Se na submissão a todos quantos precisavam d’Ele, para não dizer a todo o gênero humano que Ele haveria de redimir na Cruz.
Essa é a via por onde Ele resgata e ordena toda a criação. Com efeito, ensina o Apóstolo que “quase todas as coisas são purificadas com sangue, e sem derramamento de sangue não existe perdão” (Hb 9, 22). Cristo veio para nos perdoar e salvar, para servir e dar a vida por nós. E no Céu, por estar em nossa natureza mais próximo do trono do Pai, continua disposto a ajudar-nos.
III – A necessidade do Espírito Santo na Igreja
Antes de Pentecostes, podemos distinguir duas conversões nos Apóstolos.
A primeira deu-se quando, chamados por Jesus, se dispuseram a segui-Lo. Contudo, tinham ainda a ideia de um Messias temporal, comum a todos os judeus naquele tempo, sobretudo os formados na escola dos fariseus. E os Apóstolos, apesar de vários deles terem sido orientados e preparados por São João Batista, conservavam uma concepção a respeito do Reino de Deus inteiramente terrena, de acordo com os princípios farisaicos. Julgavam ter encontrado o Libertador de Israel, ao qual serviam de modo não inteiramente desinteressado.13
A segunda conversão operou-se quando, reconhecendo a própria miséria de ter abandonado o Divino Mestre na hora da Paixão, receberam uma especial graça de arrependimento e começaram a considerá-Lo dentro do mistério inefável da Cruz.14 Mas continuavam com uma perspectiva humana do Messias, a ponto de não terem acreditado, num primeiro momento, na sua Ressurreição (cf. Lc 24, 9-12). E na hora da Ascensão do Senhor manifestaram ainda seu desejo de ver restaurado o Reino de Israel, segundo esse conceito equivocado (cf. At 1, 6-9).
O absurdo de querer adaptar Deus à nossa mentalidade
Como constantemente procuravam os Apóstolos conformar à sua mentalidade anterior as revelações extraordinárias feitas por Nosso Senhor, permaneceram com uma visão distorcida da Boa-Nova até o dia da descida do Paráclito, no Cenáculo. Aí o próprio Espírito Santo assumiu as virtudes que haviam sido infundidas na alma deles, e fez com que os dons, que estavam passivos como um lustre apagado, se acendessem com todas as energias possíveis. Somente pela ação desses dons as virtudes infusas têm condições de atingir o seu pleno e perfeito desenvolvimento.15 Podemos, assim, avaliar o incomensurável alcance, para a vida da Igreja, do operar do Espírito Santo, a quem São Cirilo de Jerusalém denomina “o guardião e santificador da Igreja, o diretor das almas, o piloto das naves sob a tempestade, Aquele que ilumina os equivocados, premeia os combatentes e coroa os vencedores”.16
Afinal, com a efusão das graças de Pentecostes, morreu na alma dos Apóstolos essa visão humana a respeito de Nosso Senhor. Mas, sob diversas roupagens, continua ela ao longo da História e é possível inclusive que em nossa alma se encontrem laivos dela, como um verme a nos corroer por dentro, movendo-nos a agir em tudo por egoísmo, por puro interesse pessoal, considerando a Religião numa perspectiva social e política.
Necessidade do sofrimento para atingir a glória
Analisando a Liturgia de hoje, vemos que, para os bons, o verdadeiro e único triunfo se encontra no amor à cruz e na aceitação do sofrimento. Ensina-nos São Paulo, na segunda leitura: temos um Sumo Sacerdote eterno, “provado em tudo”, que intercede por nós e do qual, portanto, devemos nos aproximar com toda Fé e confiança (cf. Hb 4, 14-16).
Não é fácil essa via indicada por Nosso Senhor, mas recordemos o famoso verso de Corneille: “À vaincre sans péril, on triomphe sans gloire”.17 Quando se vence sem passar por perigos e riscos, não há glória. Afirma Santo Agostinho: “Ninguém se conhece antes de ser provado, nem pode ser coroado se não vencer, nem pode vencer sem ter combatido, nem lhe é possível lutar se não tiver inimigo e tentações”.18 Ora, esta vitória está reservada somente para as almas unidas a Deus, que põem sua confiança n’Ele e conseguem assim enfrentar todos os riscos.
Por nossa natureza, por nosso otimismo perante a vida e horror ao sofrimento, temos a ilusão de que triunfar significa nunca sofrer nem passar por desventura alguma. Não é o que nos mostra a dura existência terrena. Por isso, afirma o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira: “A vida da Igreja e a vida espiritual de cada fiel são uma luta incessante. Deus dá por vezes à sua Esposa dias de uma grandeza esplêndida, visível, palpável. Ele dá às almas momentos de consolação interior ou exterior admiráveis. Mas a verdadeira glória da Igreja e do fiel resulta do sofrimento e da luta. Luta árida, sem beleza sensível, nem poesia definível. Luta em que se avança por vezes na noite do anonimato, na lama do desinteresse ou da incompreensão, sob as tempestades e o bombardeio desencadeado pelas forças conjugadas do demônio, do mundo e da carne. Mas luta que enche de admiração os Anjos do Céu e atrai as bênçãos de Deus”.19
Assim como o carvão, para se transformar em diamante, precisa ser submetido às altíssimas temperaturas e pressões encontradas nas entranhas da Terra, nossas almas necessitam do sofrimento, neste vale de lágrimas, para merecermos a glória celeste. E para bem suportarmos os padecimentos que nos esperam, façamos, por intercessão da Bem-Aventurada Virgem Maria, o pedido contido no salmo de hoje: “Sobre nós venha, Senhor, vossa graça, pois em Vós esperamos” (Sl 32, 22). ◊
“A verdadeira glória da Igreja e do fiel resulta do sofrimento e da luta. Luta árida, sem beleza sensível, […] Mas luta que enche de admiração os Anjos do Céu e atrai as bênçãos de Deus”