Tudo em Nosso Senhor era de ilimitada perfeição. Naquela situação estabelecida consuetudinariamente através dos tempos, de nada adiantaria o emprego de brandura para persuadir aqueles que transformaram o Templo de Deus num autêntico bazar.
Evangelho do III Domingo da Quaresma
13 Estava próxima a Páscoa dos judeus, e Jesus subiu a Jerusalém. 14 Encontrou no Templo vendedores de bois, ovelhas e pombas, e os cambistas sentados às suas mesas. 15 Tendo feito um chicote de cordas, expulsou-os a todos do Templo, e com eles as ovelhas e os bois, deitou por terra o dinheiro dos cambistas e derrubou as suas mesas. 16 Aos que vendiam pombas disse: “Tirai isso daqui, não façais da casa de meu Pai casa de comércio”. 17 Então lembraram-se Seus discípulos do que está escrito: “O zelo da tua casa me consome” (Sl 68,10).
18 Tomaram então a palavra os judeus e disseram-Lhe: “Que sinal nos mostras para assim procederes?” 19 Jesus respondeu-lhes: “Destruí este Templo e Eu o reedificarei em três dias”. 20 Replicaram os judeus: “Este Templo foi edificado em quarenta e seis anos, e Tu o reedificarás em três dias?” 21 Ora, Ele falava do Templo do Seu corpo. 22 Quando, pois, ressuscitou dos mortos, os Seus discípulos lembraram-se do que Ele dissera e acreditaram na escritura e nas palavras que Jesus tinha dito.
23 Estando em Jerusalém pela festa da Páscoa, muitos acreditaram no Seu nome, vendo os milagres que fazia. 24 Mas Jesus não Se fiava neles, porque os conhecia a todos, 25 e não necessitava de que Lhe dessem testemunho de homem algum, pois sabia por Si mesmo o que há em cada homem (Jo 2, 13-25).
I – O Templo
“E imediatamente virá ao seu templo o Senhor que buscais, o Anjo da Aliança que desejais. Ei-lo que vem — diz o Senhor dos exércitos. Quem estará seguro no dia de sua vinda? Quem poderá resistir quando Ele aparecer? Porque Ele é como o fogo do fundidor, como a lixívia dos lavadeiros. Sentar-se-á para fundir e purificar a prata; purificará os filhos de Levi e os refinará, como se refinam o ouro e a prata” (Ml 3, 1b-3a).
Assim profetiza o Espírito Santo, pela pluma de Malaquias, sobre a abertura do ministério, da pregação oficial do Messias. Ou seja, deveria Ele começar no Templo que se localizava na cidade de Jerusalém.
Por essa revelação, tornava-se claro, para os que tivessem boas disposições de espírito, o quanto o surgimento do Rei esperado pelos judeus não deveria ser notado pela manifestação de um poder político ou financeiro (supremacia sobre todos os povos ou suspensão dos impostos), mas através de uma patente ação santificadora. Sim, Ele iria ao Templo para purificar e refinar os filhos de Levi.
Pela narração de São João, dera-se pouco antes o milagre das Bodas em Caná, após o qual Jesus se dirigiu para Cafarnaum, onde ficou por alguns dias com Maria e Seus discípulos. O momento escolhido por Ele para iniciar Sua missão pública, não poderia ser melhor. A Cidade Santa e o próprio Templo regurgitavam de homens e mulheres de todo o Israel.
Se o povo tivesse aceitado com fervor a pregação do Precursor — “Eu sou a voz que clama no deserto” (Jo 1, 23) —, estaria em condições de ver na entrada de Jesus no Templo, um inequívoco sinal da aparição do Messias: “…então eles serão para o Senhor aqueles que apresentarão as ofertas como convêm” — continua Malaquias — “e a oblação de Judá e de Jerusalém será agradável ao Senhor, como nos dias antigos, como nos anos de outrora” (Ml 3, 3b-4).
O Pátio dos Gentios
O conjunto de todos os edifícios que constituíam o Templo formava um quadrilátero de seus quinhentos côvados1 em cada lado, protegido por muralhas. Nele se entrava através de oito enormes portas guarnecidas por torres de defesa. Havia em seu interior três pátios especialmente santos: o dos sacerdotes, onde se encontrava o naos, uma construção também quadrada, em mármore branco revestido de ouro, localizada no ângulo noroeste; mais ao oriente, o pátio dos homens e, em seguida, o das mulheres.
Rodeando esses três pátios, havia um grande espaço delimitado por colunas, denominado Pátio dos Gentios, ou dos Pagãos, a única parte franqueada aos não judeus. Era ali que, por um consentimento tácito das autoridades do Templo, tinham-se instalado bancas de câmbio e um verdadeiro mercado.
Em contraste com os outros três, que eram considerados sagrados, este último pátio assumiu o caráter de uma espécie de bazar oriental. Nele se encontravam à venda sal, azeite, vinho, pombas — que as mulheres ofereciam para purificar-se —, ovelhas e até mesmo bezerros para os sacrifícios de maior porte. Trocavam-se também as moedas estrangeiras — gregas, ou romanas, por exemplo — pela sagrada, com a qual se pagava o imposto fixado pelo Senhor para a manutenção do Templo (cf. Ex 30, 13-16).
Acresce-se a isso que o Pátio dos Gentios facilitava o acesso aos demais, pois quem não o utilizava como atalho, via-se na contingência de dar a volta na esquina do Templo. Assim, um espaço que deveria ter certo ar de sagrado, transformou-se num dissipado e agitado “covil de ladrões”.
Oficializa-se a missão do Messias
O Templo era o ponto de referência mais denso de simbolismo religioso, e até mesmo nacional, de Israel. Não havia em toda a nação algo mais santo. Aquele local fora escolhido pelo próprio Deus para conviver com o Povo Eleito. Por essas e outras razões, nenhum judeu se consolaria caso visse chegar a hora de sua morte sem ter passado por seus pórticos, corredores e edifícios para rezar e oferecer sacrifícios. E ainda nos dias atuais, o grande sonho dos israelitas consiste em poder se encontrar diante daquelas ruínas para tocá-las, osculá-las, e banhá-las com suas lágrimas e, por esse meio, robustecer suas esperanças.
Cruzando o limiar de uma das oito portas exteriores, penetrava-se no imenso Pátio dos Gentios, aberto a todos: judeus ou pagãos, ortodoxos ou hereges, purificados ou impuros. A partir dele, para ingressar no pátio exclusivo dos judeus, havia treze portas e diante de cada uma delas uma coluna com inscrições, proibindo, sob pena de morte, o acesso a pessoas indignas.
É nesses pátios que muitas das cenas da vida pública de Nosso Senhor se passaram. E é justamente no episódio narrado por São João, no Evangelho de hoje, que se oficializa a missão do Messias. Até esse dia, ele frequentava o Templo como um simples judeu, sem emitir qualquer juízo sobre a conduta das autoridades locais.
II – Jesus expulsa os vendilhões
13 Estava próxima a Páscoa dos judeus, e Jesus subiu a Jerusalém.
Por ocasião das grandes festas, especialmente na celebração da Páscoa, Jerusalém via suas ruas abarrotadas de judeus vindos de todas as partes.
Jesus também cumpria os preceitos da Lei, porém, com uma impostação de espírito muitíssimo mais elevada que a de todos os outros judeus, conforme comenta Orígenes: “Queria Ele manifestar também a diferença existente entre a Páscoa dos homens — isto é, a daqueles que não a celebram de acordo com a vontade ou a intenção da Sagrada Escritura — e a Páscoa divina, a qual se realiza em espírito e em verdade; para distinguir, diz ‘a Páscoa dos judeus’ […] O Senhor deu-nos exemplo do grande cuidado que devemos ter acerca do cumprimento dos preceitos divinos”. 2
Já segundo Bossuet, “Jesus deverá apresentar-se no Templo, não só para tributar a Deus o culto supremo, mas também ‘como filho da casa’ (Hb 3, 6), para pôr ordem em tudo quanto Lhe havia prescrito o Pai que O enviara”. 3
E São Beda completa: “Chegando a Jerusalém, o Senhor dirigiu-Se ao Templo para orar; deu-nos assim o exemplo de que, ao chegarmos a qualquer lugar onde haja uma igreja, devemos ir lá apresentar a Deus nossa oração”. 4
O recinto sagrado foi transformado em bazar
14 Encontrou no Templo vendedores de bois, ovelhas e pombas, e os cambistas sentados às suas mesas.
Além da comum e corrente multidão das grandes festas, a circular pelo Templo, deparou-Se Jesus, mais uma vez, com um tumulto e uma agitação ruidosa. Cambistas gritavam, oferecendo um “bom negócio”: moeda sagrada em troca de moedas estrangeiras, as quais ali não podiam ser usadas; e dessa forma desprezavam a Lei e criavam um intolerável tráfico.
O vozerio das discussões sobre o valor destas ou daquelas moedas não era a única sonoridade dessacralizante. Os animais — verdadeiros rebanhos! —, cordeiros, ovelhas, bois e touros, acrescentavam seus mugidos aos pregões dos vendedores. Sem contar a tonalidade mais aguda das aves, pardais e pombos, que ofereciam sua contribuição àquela cacofonia chocantemente contrária a um ambiente de essência sagrada. Não era alheio a tudo isso a famosa, intérmina e múltipla discussão entre fariseus e saduceus.
Pode-se imaginar o quanto o interesse ganancioso de lucrar, da parte dos vendedores, e o de economizar, dos compradores, deveriam corromper o espírito religioso, elevado e recolhido com que os peregrinos desejavam ingressar no Templo de Deus. E assim esse edifício destinado à oração e ao sacrifício fora transformado numa feira de escandalosos e revoltosos abusos, num mercado profano e vulgar!
“Jesus entra no Templo, no Pátio dos Gentios, como se nota pelo comércio ali estabelecido. No entanto, devido à proximidade do Santuário, os rabinos proibiam — mais teórica que praticamente — usá-lo como simples atalho ou de forma menos decorosa. ‘Não se subirá ao Templo com bastão, nem com sandálias ou bolsa, nem mesmo com poeira nos pés. Não se deve passar pelo Templo como por um atalho para encurtar caminho’ (Berakoth 9.5; cf, STRACK-B. Kommentar II, p. 27). Precisamente este detalhe é registrado também por Marcos (11, 16). Contudo, apesar dessas boas medidas preventivas da santidade do Templo, esta não era respeitada, pois cometiam-se verdadeiras profanações no recinto sagrado”. 5
Ato de santa ira num temperamento perfeito
15 Tendo feito um chicote de cordas, expulsou-os a todos do Templo, e com eles as ovelhas e os bois, deitou por terra o dinheiro dos cambistas e derrubou as suas mesas. 16 Aos que vendiam pombas disse: “Tirai isso daqui, não façais da casa de meu Pai casa de comércio”.
Em outras ocasiões, havia já Jesus observado aquela profanação, um verdadeiro espetáculo de profundas consequências tendenciais e revolucionárias: o Templo não era mais casa de oração; tinha sido transformado em bazar. De outras vezes, sofreu em silêncio, retendo Sua indignação, mas chegara agora o momento de intervir.
Jesus é Deus e inteiramente Homem, com personalidade divina. Mais adiante Ele choraria sobre Jerusalém, como também pela morte de Lázaro; seriam lágrimas significativas de Sua misericórdia, bondade, ternura e amor. Aqui Ele empunha o látego de cólera, vingança e justiça. Esses dois extremos denotam a perfeição insuperável de Seu temperamento.
Tratou-se de um ato de santa ira. De si, a cólera é uma paixão do apetite irascível, neutra, ou seja, nem boa nem má. Se ela for conforme à reta razão, será boa; se não, será má. Em Cristo Jesus, todas as paixões sempre foram ordenadas e boas. Em concreto, no caso do Evangelho de hoje, não só jamais se poderia atribuir a esse Seu ato de vingança o caráter de pecado, ou até mesmo de imperfeição, mas, muito pelo contrário, consistiu ele na prática da virtude de zelo em grau heroico. Procurou Jesus, com essa atitude, reprimir os abusos e ofensas contra Seu adorado Pai. 6
Temamos a indignação do Senhor
Em suas Meditaciones de la vida de Cristo, São Boaventura assim comenta esta passagem: “Duas vezes o Senhor expulsou do Templo os que compravam e vendiam (cf. Jo 2; Mt 21), o que é contado como um de seus maiores milagres. Pois, embora em outras ocasiões O tivessem menosprezado, desta vez todos fugiram sem se defender, apesar de serem muitos, e Ele sozinho expulsou todos, armado apenas de uns cordéis. Fez tudo isso apresentando-Se-lhes com rosto terrível. Expulsou-os porque, com suas compras e vendas, desonravam o Pai exatamente no lugar onde Ele devia ser mais honrado. E Jesus, movido por um zelo ardente pela Casa de Deus, não podia tolerar tais desordens. Considera bem isso e compadece-te dEle, pois Ele está cheio de dor e de compaixão. E não deixes de temê-Lo, porque se nós — que fomos, por uma especial graça, escolhidos para templo e morada de Deus, e temos obrigação de estar sempre atentos ao Seu louvor — nos ocupamos e nos envolvemos em negócios do mundo, como faziam aqueles mercadores, podemos e devemos, com razão, temer que Ele Se indigne e nos expulse. Se não queres ser atormentado por esse temor, não te atrevas a, sob qualquer pretexto, intrometer-te nos cuidados e negócios temporais. Tampouco te ocupes com obras de mera curiosidade, que pertencem às pompas mundanas e roubam o tempo devido ao louvor a Deus”. 7
Tudo em Nosso Senhor era de ilimitada perfeição. Naquela situação estabelecida consuetudinariamente ao longo dos tempos, de nada adiantaria o emprego de brandura para persuadir os infratores. Devemos partir do infalível princípio: se foi este o procedimento de Jesus, nada poderia ter sido melhor. Argumentos lógicos, racionais e penetrados de suavidade, jamais se imporiam naquelas circunstâncias.
É preferível corrigir-se ao ser açoitado
Santo Agostinho, em seu incansável zelo pelas almas, tira desse episódio uma sábia aplicação à vida espiritual:
“O Senhor não os poupou. O que viria a ser flagelado por eles, flagelou-os primeiro. Irmãos, o Senhor fez um azorrague de cordas e açoitou os indisciplinados que negociavam no templo de Deus, e nisto há qualquer coisa de simbólico.
“Cada qual tece para si uma corda com os seus pecados. Já o Profeta diz: ‘Ai de vós os que arrastais a iniquidade como cordas compridas!’ (Is 5, 18). Quem faz essa corda? É o que ao pecado junta outro pecado. Como é que os pecados se juntam aos pecados? Quando se encobrem os pecados feitos com novos pecados.
“Quem furtou vai consultar um adivinho para não ser descoberto como autor do furto. Já seria muito que fosse tido como ladrão; por que quer juntar ao pecado outro pecado? Já tem dois pecados. Como lhe é proibido consultar o adivinho, blasfema do seu Bispo. Já são três pecados. Quando ele o expulsa da Igreja, diz: ‘Pois então vou para os donatistas’. Já são quatro pecados. A corda vai crescendo. É motivo de receio. É preferível que se corrija quando é açoitado, para não ouvir no fim esta sentença: ‘Atai-o de pés e mãos, e lançai-o às trevas exteriores’ (Mt 22, 13).
“‘Cada qual é ligado com as cadeias dos seus pecados’ (Pr 5, 22). Di-lo o Senhor e di-lo outro livro da Escritura. Em todo o caso é sempre o Senhor quem o diz. Os homens são atados com os seus pecados, e lançados nas trevas exteriores”. 8
Um feito maior do que converter a água em vinho
Essa atitude de Jesus deve ter encantado muitas pessoas, não só naquela ocasião, como também ao longo dos tempos. Vê-Lo proceder com intransigência contra os comerciantes, ainda que de coisas santas, dentro dos limites sagrados do Templo, prejudicando a devoção dos peregrinos e fiéis, certamente despertou simpatias. A ousadia de alguém que se levanta contra os abusos, sempre arranca aplausos da alma popular. Além disso, não nos deve causar estranheza que assim tenha reagido Aquele que é o Quam suavis, tal qual pondera Orígenes:
“Consideremos também — não nos pareça coisa enorme — que o Filho de Deus preparou uma espécie de chicote de cordas para expulsar do Templo. Para explicar isso, resta-nos uma poderosa razão: o divino poder de Jesus que, quando queria, podia contrarrestar a fúria de seus inimigos, mesmo sendo muitos, e desfazer suas tramas; porque o Senhor dissipa as determinações das gentes e reprova os pensamentos dos povos. Este episódio nos demonstra que Ele não teve para isto um poder menos forte do que para fazer milagres; mostra também que este seu feito é maior que o milagre de converter a água em vinho, porque naquele milagre lidou com matéria inanimada, mas aqui desbaratou os tráficos de muitos milhares de homens”. 9
O zelo de Jesus desperta a simpatia do povo
17 Então lembraram-se Seus discípulos do que está escrito: “O zelo da tua casa Me consome” (Sl 68,10).
Um varão ainda quase nada conhecido, apoiado exclusivamente em seus próprios recursos e forças, sem exercer nenhum cargo oficial, ao Se impor com tanto vigor, energia e intransigência para expulsar os vendilhões com seus animais e pertences, incutindo medo e respeito à multidão, aos guardas e aos próprios magistrados do Templo, não faz senão transluzir um poder divino. Aquele só poderia ser um profeta, um reformador, o Messias.
O que desacredita um homem tomado pela ira, é vê-lo proceder como quem perdeu o controle de si mesmo, e por isso, tornando-se um bruto. Na presente cena, pelo contrário, Jesus Se mantém todo tempo em plena majestade, senhor de Si, assumindo a atitude de um Homem que possui Sua Alma na visão beatífica de Deus. Trata-se de um zelo inflamado por um total amor a Deus. Aquele verdadeiro zelo, conforme afirma Alcuíno, “quando tomado no bom sentido, é um certo fervor da alma em que esta se inflama, sem qualquer respeito humano, em defesa da verdade”. 10
Não seria de se estranhar que o povo acolhesse com simpatia essa ousadia de Jesus. A atitude corajosa e destemida, sobretudo quando justa e religiosa, estimula o aplauso geral. Daí o fato de os quatro discípulos, ao testemunharem o triunfo de Jesus, terem ficado surpresos por constatar o quanto a bondade do Divino Mestre possuía um oposto extremo e harmonioso.
Porém, ao mesmo tempo que os discípulos viam, naquela atitude, a realização de uma antiga profecia e, assim, cresciam em sua fé, os judeus racionalizavam e objetavam.
III – Os judeus pedem um sinal
Pergunta carregada de incredulidade, inveja e animosidade
18 Tomaram então a palavra os judeus e disseram-Lhe: “Que sinal nos mostras para assim procederes?”.
Evidentemente, “os judeus”, aqui, são as autoridades do Templo. A pergunta é feita em caráter de hostilidade e tipicamente farisaica, pois exigir uma prova para dar legitimidade a uma ação que, debaixo do prisma moral, se justifica por si só, é querer a priori desacreditar o sinal que se lhes ofereça. Daí surgiria uma interminável discussão. Com razão, comenta São João Crisóstomo: “Necessitavam eles, então, de algum sinal para deixar de fazer o que estavam fazendo tão indevidamente? Estar tomado por um tão grande zelo pela casa do Senhor não era o maior de todos os sinais? Os judeus se lembravam das profecias e, contudo, pediam um sinal, certamente porque sentiam que seus lucros cessariam. Infames!”. 11
A pergunta vinha carregada de incredulidade, inveja e animosidade. Queriam uma segunda prova, sendo que a primeira era, de si, suficiente para convencer qualquer pessoa com um mínimo de bom senso.
São assim os que possuem mentalidade farisaica, pois, quando enviavam emissários ao Precursor, estavam dispostos a aceitar — segundo eles mesmos diziam — a afirmação de que este seria o Messias, mas não quiseram tolerar que João Batista indicasse Jesus Cristo como sendo o Salvador. Ou seja, quando os fatos prejudicam os interesses deles, não há sinal que os satisfaça.
Resposta misteriosa de Jesus
19 Jesus respondeu-lhes: “Destruí este Templo e Eu o reedificarei em três dias”. 20 Replicaram os judeus: “Este templo foi edificado em quarenta e seis anos, e Tu o reedificarás em três dias?” 21 Ora, Ele falava do templo do Seu corpo. 22 Quando, pois, ressuscitou dos mortos, os Seus discípulos lembraram-se do que Ele dissera e acreditaram na escritura e nas palavras que Jesus tinha dito.
Não seria esta a única vez que Jesus responderia de modo misterioso aos seus interlocutores. Nem sempre lhes eram compreensíveis as revelações feitas pelo Divino Mestre. Porém, o futuro as tornaria evidentes pela claríssima realização das mesmas, como aconteceu neste caso concreto, pois certamente foi colocando a mão sobre Seu sagrado peito que Ele disse: “Destruí este Templo…”.
Claro que todos interpretaram mal tal proposta, julgando estar Ele se referindo ao edifício do qual haviam sido desbaratados os vendilhões. Mas o estupor foi ainda maior ao ouvi-Lo afirmar que Ele tinha poder para reedificá-lo em três dias. Conhecemos a realidade dos fatos, por uma testemunha ocular merecedora de toda confiança e que provavelmente deve ter notado os gestos de mão do Divino Mestre, enquanto fazia essa profecia. Por isso mesmo, ao escrever seu Evangelho depois de realizado o que previra o Divino Mestre, São João não teve a menor dúvida sobre a exatidão e realidade daquelas palavras, e daí relatar com inteira segurança: “Ora, Ele falava do templo do Seu corpo”.
Os discípulos de Jesus aceitam o sinal
Concedeu-lhes ainda, por infinita misericórdia, um sinal inconfundível para alimentar a fé de todos, o de Sua Ressurreição. “Por que lhes dá como sinal a Ressurreição? Principalmente porque ela demonstrava que Jesus não era um simples homem; que Ele podia triunfar da morte e destruir em pouco tempo sua longa tirania”. 12
Entretanto, só mesmo os discípulos ali presentes aceitaram, sem entender o que lhes dizia o Divino Mestre. Iniciam eles um caminho pavimentado de fé e confiança, sem barreiras, nAquele que ainda não viam como Deus e Homem.
Depois de três anos, tudo se tornaria lúcido para eles, devido à fidelidade praticada apesar destas ou daquelas debilidades. Exemplo para nós de quanto devemos abraçar com amor os ensinamentos emanados da Santa Igreja, em especial os provenientes da infalível Cátedra de Pedro. Acatar com zelo a orientação da Santa Igreja é um ato de filial amor ao próprio Nosso Senhor Jesus Cristo: “Quem vos ouve, a Mim ouve!” (Lc 10, 16).
Tem muito valor a consideração que a esse propósito nos faz o Cardeal Isidro Gomá y Tomás: “O templo ao qual alude Jesus — diz Orígenes — não é só o templo de Seu Corpo, mas também a Santa Igreja, a qual, sendo construída de pedras vivas, que somos todos nós, cristãos, a cada dia se destrói nelas, porque a cada dia morrem os filhos da Igreja; e a cada dia da História parece morrer como instituição, porque, em seu conjunto, está sujeita a todas as tribulações e aparentes dissoluções das coisas humanas. Contudo, ressurge sempre, como o Corpo morto de Jesus. Ressurge neste mundo, pois às horas de tormenta e das aparentes derrotas sucedem a calma e o triunfo esplendoroso. Ressurgirá definitivamente quando vier o tempo do novo céu e da nova terra, de que fala o Apocalipse, pela ressurreição de todos os seus membros, que somos nós. Sejamos membros de Cristo, soframos com Ele e morramos com Ele: é a condição indispensável para ressuscitar com Ele. Esta doutrina é inculcada várias vezes pelo Apóstolo. Vivamos nessa santa Fé e doce Esperança”. 13
Profundo ressentimento dos detentores do poder
Os judeus não alcançaram o verdadeiro significado das palavras de Jesus, pois, como nos diz Santo Agostinho, “eram carnais. Só apreciavam as coisas pelo seu sabor carnal, e o Senhor falava-lhes no sentido espiritual”. 14 De fato, o orgulho e o amor próprio sempre cegam quem a eles se entrega, e acabam por substituir a ação de Deus pela pessoal e humana.
Condenando e castigando com tal violência aquelas desordens, Jesus manifestou o soberano e divino direito de Seu autêntico messianismo e de Sua eterna filiação. Essa cena se repetiria dois anos mais tarde, novamente sem resultado; tudo voltaria a ser como sempre. Porém, Jesus perpetuou, face à História, às autoridades religiosas e à própria multidão, a memória de quanto é Ele o verdadeiro Filho de Deus e, portanto, Senhor do Templo.
Apesar do encanto de alguns, o episódio causou profundo ressentimento aos detentores do poder. Ali se iniciou a contenda entre as autoridades religiosas e Ele, a qual não fará senão ir num crescendo até o grito: “o seu sangue caia sobre nós e nossos filhos” (Mt 27, 25). A tal ponto se sentiram feridos por essa justa intervenção, que souberam deturpar as palavras proferidas nessa ocasião pelo Salvador, para condená-Lo à crucifixão, acusando-O de ter querido destruir o Templo; crime hediondo e sacrílego que eles, sim, perpetraram quando se tornaram deicidas.
Jesus, por sua vez, nada mais fizera senão proclamar o quanto Ele viria a ser o vencedor da morte por meio de Sua autorressurreição, servindo esta como irrefutável prova da autêntica realidade de Sua missão, como Ele mesmo diria mais tarde: “Não temais! Eu venci o mundo!” (Jo 16, 33).
Reações volúveis e pragmáticas da multidão
23 Estando em Jerusalém pela festa da Páscoa, muitos acreditaram no Seu nome, vendo os milagres que fazia. 24 Mas Jesus não Se fiava neles, porque os conhecia a todos, 25 e não necessitava de que Lhe dessem testemunho de homem algum, pois sabia por Si mesmo o que há em cada homem.
Certamente é feita aqui uma referência à primeira Páscoa que Jesus passou em Jerusalém, logo após ter realizado o milagre das Bodas de Caná. E por que não Se fiava naqueles que passaram a crer por causa dos milagres?
Corações volúveis, inconstantes e pragmáticos, num primeiro instante pervadidos de admiração, mas em menos de três anos prefeririam Barrabás aos milagres. No fundo, não amavam a verdade em tese, e menos ainda em substância. Com alguma razão diria um político francês que o povo se vinga dos seus próprios aplausos.
“Qual a causa dessa inconstância que levava Cristo a não Se fiar plenamente neles? Os milagres os deslumbravam e lhes falavam como ‘sinais’ do poder e da dignidade messiânica de Cristo, mas restava neles um fundo, uma atitude de reserva. Provavelmente, mais que falta de Fé, era falta de uma entrega total a Cristo. Talvez tencionassem segui-Lo à maneira de um discípulo dos famosos mestres Hillel ou Shammaí, mas não entregar-se inteiramente a Ele, assumindo as consequências dessa entrega na ordem moral e religiosa (cf. Jo 3, 16.18.21; 6, 28.30). Já ‘desde este primeiro contato com as multidões de Jerusalém, mostram-se eles tal como aparecerão sempre no Evangelho de João: impressionáveis e rapidamente conquistáveis pelos milagres de Jesus, mas superficiais e de adesão precária’”. 15
Por outra parte, não poucas vezes, é cego o testemunho dos homens, pois baseia-se nas aparências exteriores. E quão pouca importância devemos atribuir aos discursos, pensamentos e relambórios de outros, a nosso respeito! Quando elogiosos, não nos levem eles à soberba; nem à perturbação, quando críticos e contrários. E, em nosso relacionamento com Jesus, o que Ele deseja é “nosso abandono, de pensamento e vontade, à sua direção; não quer que nos conservemos no egoísmo espiritual de quem regateia pensamento e vontade. Jesus sabe tudo: não precisa do testemunho de homem, porque penetra com seu olhar até o fundo de nosso pensamento e de nosso coração. Não nos escusemos, entreguemo-nos generosamente a suas graças”. 16
IV – Considerações finais
As igrejas são casas de Deus. Edifícios sagrados, nos quais o Cordeiro de Deus é imolado todos os dias sobre o altar. Ali, somos elevados à dignidade de filhos de Deus, purificados de nossos pecados, alimentados com o Pão dos Anjos, instruídos pelas verdades da salvação, santificados pela graça.
Respeito, devoção e piedade, são algumas virtudes indispensáveis para penetrar num tão sagrado recinto. Rezemos com confiança, santo temor e entusiasmo em seus oratórios. Ouçamos com avidez a Palavra de Deus, proferida por seus ministros, ou aquela voz interior do Espírito Santo. Recebamos com gratidão os Sacramentos. Abracemos a firme resolução de frequentar assiduamente a igreja para adorar o Bom Jesus e crescer na devoção a Maria. E temamos ser objeto da divina cólera, devido a um mau comportamento, tal qual advertia Alcuíno: “O Senhor entra espiritualmente todos os dias em suas igrejas, e observa como cada um se comporta. Portanto, dentro delas, evitemos conversas, risadas, ódios e ambições: não nos aconteça que o Senhor chegue quando menos esperamos a nos expulsar a chicotadas”. 17
Alcuíno não viveu nos tempos atuais. Se conhecesse a degradação dos costumes e as modas dos presentes dias, não deixaria de recomendar delicadeza de consciência àquelas — e também àqueles — que entram no Templo sagrado, não para rezar, mas para se fazer ver, provocar ao pecado e levar almas à perdição eterna. ◊
Notas
1 Cerca de 250 metros.
2 Apud AQUINO, S. Tomás de. Catena Aurea.
3 BOSSUET, Jacques-Bénigne. Œuvres Choisies de Bossuet. Versailles: Lebel, 1821, v. II, p. 130.
4 Apud AQUINO, S. Tomás de. Catena Aurea.
5 TUYA, OP, Pe. Manuel de. Biblia Comentada. Madrid: BAC, 1964, v. II, p. 1015.
6 Cf. Suma Teológica I-II q. 28, a. 4.
7 BOAVENTURA, São. Meditaciones de la vida de Cristo. Buenos Aires: Santa Catalina, p. 159-160.
8 AGOSTINHO, Santo. Evangelho de São João comentado. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1954, v. I, p. 264-265.
9 Apud AQUINO, S. Tomás de. Catena Aurea.
10 Idem.
11 Idem.
12 CRISÓSTOMO, São João. Apud AQUINO, S. Tomás de. Catena Aurea.
13 GOMA Y TOMÁS, Card. Isidro. El Evangelio Explicado. Barcelona: Acervo, 1966, v. I, p. 386-387.
14 AGOSTINHO, Santo. O Verbo de Deus. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1954, v. I, p. 272.
15 TUYA, OP, Op. cit., p. 1.026.
16 GOMA Y TOMÁS, Op. cit., p. 387.
17 Apud AQUINO, S. Tomás de. Catena Aurea.