Quase quatro séculos haviam passado e os cristãos não ousavam chamá-Lo Deus. Até que, entre lutas e perseguições, os Padres Capadócios atestaram a divindade do Paráclito.

 

S e às aventuras portuguesas de além-mar Luís de Camões chamou “cristãos atrevimentos”,[1] que palavras usaria em seus escritos ao considerar as santas proezas que marcaram de ponta a ponta o século IV?

Obrigados ao culto clandestino e subterrâneo em Roma, os cristãos perseguidos que viveram entre o final do século III e início do século IV mal poderiam imaginar os prêmios que a Divina Providência lhes reservava. Para alcançá-los, porém, Ela lhes impunha uma condição: a perseverança.

Quem permanecesse firme na verdadeira Fé constataria em breve as enormes mudanças no quadro dos acontecimentos e assistiria às maiores vitórias.

Da liberdade ao Concílio de Niceia

No ano de 311 espalhou-se por todo o Império Romano uma notícia que encheu de esperança as almas devotas: nas vésperas da morte, o Imperador Galério deixara um documento a favor dos cristãos.

Esperança? Sim, é verdade, mas também quanta insegurança… Como saber se não se tratava de uma armadilha a fim de levar os cristãos novamente às arenas? Foi necessário aguardar mais dois anos para que, através do Edito de Milão, Constantino outorgasse aos católicos uma verdadeira liberdade de culto.

Entretanto, apesar de ele constituir uma grande vitória para a Igreja, não se tratava de um reconhecimento do Cristianismo como religião oficial do império, e tampouco ele equivalia – nem de longe – ao estabelecimento do Reino de Cristo na terra.

Com efeito, logo ao sair à luz do sol a Esposa Mística de Cristo, que nas catacumbas germinava como uma semente debaixo da terra, deparou-se com o joio da heresia tentando sufocá-la…

Passados alguns anos de liberdade, muitos cristãos já haviam se deixado enredar pelo erro. O arianismo grassava entre eles, levando-os a negar a divindade de Cristo, e para dirimir a questão, foi convocado em 325 o Concílio de Niceia, em cujo Credo se afirma que o Filho é consubstancial ao Pai e, portanto, Deus.

Todavia, mesmo tendo sido assim condenada sua doutrina pela magna assembleia, os asseclas de Ário ainda continuaram a perturbar por séculos a vida da Igreja.

Amizades consolidadas em Deus

Nessa época de lutas em campo aberto, crescia em Cesareia da Capadócia um menino de qualidades incomuns e oriundo de uma família profundamente cristã, da qual a Igreja venera como Santos outros cinco membros.

De nome Basílio, o jovem iniciou o estudo das artes retóricas em sua cidade natal, dirigindo-se depois a Constantinopla e Atenas. Quando retornou para a Cesareia, porém, renunciou às riquezas e carreira para dedicar-se por inteiro a Deus, primeiro como monge e, depois, como Bispo.[2]

Ao tomar contato com os problemas que a Igreja então enfrentava, Basílio apressou-se em desenvolver argumentos contra a heresia ariana. Com grande sabedoria, procurou precisar a linguagem teológica, pondo em termos mais exatos doutrinas que, muitas vezes por falta de definição, vinham causando ambiguidades, discussões e apostasias.

Um de seus irmãos mais novos, que fora igualmente sagrado Bispo, serviu de importante apoio nesse combate. Ele exerceu o ministério episcopal em um distrito metropolitano de Cesareia, tornando-se conhecido como São Gregório de Nissa, nome do território de sua diocese.

São Basílio também teve amigos que alcançaram a honra dos altares. No período que passou em Atenas, ele estreitou laços com outro Gregório, proveniente da região de Nazianzo, a sudoeste da Capadócia. Possuindo a mesma idade e provenientes de famílias aristocráticas e cristãs, ambos logo firmaram uma amizade que os uniria até o fim da vida, consolidada não numa simples afinidade de temperamentos, mas sobretudo na santidade, no amor a Deus e na defesa da verdadeira doutrina. Do mesmo modo, em função da causa à qual se entregara, Basílio era estimado pelo grande Santo Atanásio.

Primeiro Concílio de Niceia, por Cesare Nebbia – Salão Sistino da Biblioteca Apostólica Vaticana

Em luta pela ortodoxia

Naquelas circunstâncias históricas, defender a ortodoxia equivalia principalmente a rebater os hereges, o que era feito habitualmente através de discursos, cartas e tratados.

São Basílio não demorou em lançar-se à lida, explicitando as verdades proclamadas em Niceia, e opondo-se, portanto, às doutrinas arianas. Fiel ao ensinamento de Santo Atanásio, ele desenvolveu novos argumentos e aprimorou os termos da Teologia Trinitária definida pelo concílio,[3] a respeito do qual declarou em uma carta: “Não podemos acrescentar nada ao Credo de Niceia, nem sequer a coisa mais leve, com exceção da glorificação do Espírito Santo; e isso porque nossos pais mencionaram este tema apenas de passagem”.[4]

Além do arianismo, outras doutrinas heterodoxas, também promovidas por falsos pastores, ameaçavam envenenar o rebanho de Cristo. Entre elas estavam o semiarianismo e o sabelianismo, que propagavam erros cristológicos mais sutis.

O Paráclito é declarado Deus

São Basílio e São Gregório Nazianzeno

Diante desses novos desvios, os paladinos da Fé não haviam de ficar inativos. Em 362 Santo Atanásio convocou um concílio em Alexandria, a propósito do qual São Basílio outra vez insistiu numa correta definição dos termos teológicos.[5] Ora, esta precisão de linguagem almejada pelo grande Doutor da Igreja não era apenas uma exigência de caráter doutrinário, mas também o primeiro passo escolhido pela Providência para a glorificar a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade.

Neste contexto, São Basílio escreveu, no ano 375, seu tratado Sobre o Espírito Santo. Ali é defendida a divindade do Paráclito, mas, como foi dito, esse tratava-se apenas de um passo inicial… Apesar de oferecer todos os argumentos que permitiriam afirmar esta verdade, o autor não chega a afirmar inequivocamente a consubstancialidade do Espírito Santo com o Pai.

Diria mais tarde São Gregório de Nissa que, embora São Basílio já cresse nesta tese, ele a sustentou com atos e não com palavras, por ser conveniente que se aceitasse a consubstancialidade do Filho antes de se tratar sobre a do Espírito Santo.[6]

Compartilhando os mesmos ideais e, sobretudo, a mesma fé de seu amigo Basílio, São Gregório Nazianzeno decidiu certo dia proclamar corajosamente diante de Deus, dos Anjos e dos homens aquilo que não era mais possível ocultar: “Até quando vamos esconder a lâmpada debaixo do alqueire e privar os demais do pleno conhecimento da divindade [do Espírito Santo]? A lâmpada deveria ser colocada em cima do candelabro para que ilumine todas as igrejas e todas as almas, não mais com metáforas ou bosquejos intelectuais, mas com uma declaração clara”.[7]

Assim, neste sermão de São Gregório proferido em 372, o Paráclito foi de modo categórico declarado Deus.

Fim da heresia?

Dir-se-ia que, depois de tão grandes reveses, os hereges ficaram definitivamente derrotados, mas não foi assim. A luta continuou e, à medida que os anos passavam, novos argumentos eram cunhados, obrigando os Padres Capadócios – São Basílio, São Gregório de Nissa e São Gregório Nazianzeno – a escrever e pregar para desmentir cabalmente cada uma dessas falácias.

Indo além do exposto no tratado Sobre o Espírito Santo, São Basílio continuou o combate através de sermões, cartas, e da institucionalização do culto litúrgico.

São Gregório Nazianzeno se distinguiu pela composição de quarenta e cinco discursos teológicos, pronunciados em sua maioria entre os anos 379 e 381. Dentre estes destacam-se os Cinco discursos teológicos sobre a divindade do Logos, nos quais defende o dogma da Igreja contra os eunomianos e os macedonianos. Mais tarde, suas obras lhe valeriam o título de “o Teólogo”.[8]

São Gregório de Nissa, por sua vez, elaborou os quatro tratados Contra Eunômio, um herege ariano que atacava a fé de São Basílio. Além disso, escreveu contra os apolinaristas e os pneumatômacos macedonianos, esclarecendo diversas questões que resultavam da afirmação da divindade do Espírito Santo.

Últimas lutas e conquistas

Partidário dos arianos, o Imperador Valente procurou inúmeras vezes minar a autoridade de São Basílio na região da Capadócia. Mas em 378 esse governante veio a falecer e, pouco tempo depois, a 1º de janeiro de 379, o imortal São Basílio subia ao Céu, com apenas cinquenta anos de idade.

Ao que tudo indicava, com a morte de Valente se verificariam novas condições de paz, e assim foi. Substituiu-lhe no trono o católico Teodósio, que no ano 380 reconheceu o Cristianismo como religião oficial do império.

Ora, como mesmo assim não cessavam as heresias, Teodósio convocou um novo concílio, a ser realizado no ano 381 em Constantinopla, no qual Gregório de Nissa, então Bispo de Sebaste, interveio amplamente, visando oficializar e selar as verdades que, com tanto heroísmo e durante tantos anos, ele e seu irmão haviam defendido. A esse respeito comenta o célebre Johannes Quasten: “Sem dúvida as bases para este grande acontecimento da história da Cristandade foram postas por Basílio”.[9]

Poucos anos depois, provavelmente em 385, morria São Gregório de Nissa.

São Gregório Nazianzeno por sua vez, contando com o apoio de Teodósio, foi reconhecido como Bispo de Constantinopla, importante sede episcopal que durante o império de Valente estava em mãos dos arianos. Entretanto, algum tempo depois, sendo objeto de acusações por parte da Hierarquia do Egito e da Macedônia preferiu renunciar e retirar-se para sua terra natal, onde morreu em 390.

São Gregório de Nissa – Iluminura do Menológio de Basílio II, Biblioteca do Vaticano

Uma proeza fundada sobre a rocha

À grande epopeia da Igreja no século IV, bem podemos aplicar a passagem do Evangelho: “Caiu a chuva, vieram as enchentes, sopraram os ventos e investiram contra aquela casa; ela, porém, não caiu, porque estava edificada sobre a rocha” (Mt 7, 25).

A casa é a verdadeira Fé: vieram as enchentes das calúnias e dos falsos profetas, caíram as tempestades das perseguições, sopraram as heresias e investiram os imperadores; entretanto, ela estava edificada na piedade e na doutrina de grandes Santos e, por isso mesmo, fundada sobre a rocha. Estando junto a eles, não havia o que temer, pois o Espírito Santo os conduzia.

Quanto heroísmo! Quanta coragem da parte desses bem-aventurados pastores para, num campo minado pelas heresias, apresentar doutrinas tão ousadas para a época! Que “cristãos atrevimentos”! Proezas como estas não cabem em versos, pois transbordam as regras da métrica humana. São ditadas pelo Altíssimo e ninguém pode afirmar que não as ouviu.

Deus tem seus tempos e momentos. Por isso Ele soube divinamente esperar os séculos passarem para, afinal, revelar-Se aos homens. Tudo se fez progressivamente e sem pressa. Mas, o que seria de nossa Fé se os homens chamados a proclamar a divindade do Espírito Santo tivessem se calado por medo ao poder e ao prestígio dos heresiarcas?

Que punição teria reservado a Divina Providência para eles! E qual teria sido o castigo para os fiéis da época se tivessem rejeitado a explicitação de uma tão importante verdade da nossa Fé! Talvez a História dos séculos posteriores tivesse sido muito distinta. 

 

Notas

[1] CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas. Canto VII, 14.
[2] Cf. MOLINÉ, Enrique. Los Padres de la Iglesia. 6.ed. Madrid: Palabra, 2014, p.253-254.
[3] Cf. LAPORTE, Jean. Les Pères de l’Église. Les Pères grecs. Paris: Du Cerf, 2010, t.II, p.118.
[4] SÃO BASÍLIO MAGNO. Epistola 258, n.2: PG 35, 950.
[5] Cf. QUASTEN, Johannes. Patrología. La edad de oro de la literatura patrística griega. 3.ed. Madrid: BAC, 1977, v.II, p.252.
[6] Cf. MOLINÉ, op. cit., p.256.
[7] SÃO GREGÓRIO DE NAZIANZO. Oratio 12, n.6: PG 35, 850.
[8] QUASTEN, op. cit., p.268.
[9] Idem, p.227.

 

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