O século IV foi uma época de guerra, e do pior tipo que há: aquela que se desenrola em tempos de paz. As perseguições aos cristãos por parte do paganismo romano tinham cessado com os editos imperiais que concediam liberdade à Igreja. Mas surgiu então a ameaça das ameaças, mais cruel que fogo, ferro ou fera: a aparente segurança.
Com ela nasceu o perigo para os cristãos. Pertencer à Igreja, outrora tão ignominioso, passou a ser causa de prestígio. Nas hostes de Jesus já não se alistariam apenas os heróis dispostos a derramar o sangue por seu Senhor, mas também aproveitadores que ansiavam por ganhar algumas das sujas e enganosas carícias do mundo.
Os do mundo entraram e, com eles, as ideias do mundo. Um sem fim de novas e heterodoxas doutrinas começaram a fermentar no meio dos batizados.
Jerônimo e Helvídio
Foi nesta época que viveu – lutou, para sermos fiéis à verdade histórica – São Jerônimo.
Após sua passagem pelo deserto de Cálcis no Oriente Próximo e ordenação sacerdotal em Antioquia, Eusébio Jerônimo chega a Roma, onde o Papa São Dâmaso o nomeia seu secretário, como visto no artigo anterior.
A par dos inúmeros trabalhos que deve desempenhar a pedido do Romano Pontífice, chegam a seu conhecimento os escritos de um tal Helvídio, o qual defendia não ser perpétua a virgindade de Nossa Senhora. Argumentando com frases das Sagradas Escrituras tiradas de contexto, Helvídio afirmava despudoradamente que, após o nascimento virginal do Homem-Deus, a Santíssima Virgem tivera outros filhos segundo a carne.
Diante de tamanha afronta, muitos cristãos instaram a São Jerônimo, já afamado exegeta e paladino contra as heresias, que destruísse os argumentos daquele perverso escritor.
Silêncio lancinante, destruição explosiva
Tal refutação, entretanto, não foi imediata. Muitas vezes o silêncio dói mais do que as palavras, como explicou São Jerônimo com a força de sua pluma de aço: “Apesar de, não faz muito tempo, terem-me rogado os irmãos que refutasse o libelo de um tal Helvídio, eu o fui postergando, não porque resultasse difícil convencer da verdadeira doutrina um homem vulgar e conhecedor apenas das primeiras letras, mas por considerar indecoroso responder àquele que vai ser vencido”.1

Quando, por fim, chegou a réplica, não sobrou pedra sobre pedra daquele frágil edifício blasfemo, “para que de uma vez por todas aprenda a guardar silêncio aquele que nunca aprendeu a falar”.2
Estava assim introduzido o escrito Sobre a virgindade perpétua de Maria, o primeiro tratado patrístico cujo tema principal é Nossa Senhora.
O Primogênito foi também Unigênito
Neste tratado temos, antes de mais nada, um resumo das ideias de Helvídio. Preocupado pelo futuro, São Jerônimo as deixou guardadas e estigmatizadas para a posteridade.
Como acima referimos, o herege – como bom herege que era – utilizava-se de diversas passagens da Bíblia. Diz-se no Evangelho que Cristo Jesus é o Primogênito da Santíssima Virgem (cf. Lc 2, 7). Isto seria, no parecer quase infantil de Helvídio, uma clara alusão a outros futuros filhos de Maria pois, do contrário, o Evangelista teria usado a palavra unigênito – o único filho – no lugar de primogênito – o primeiro.
São Jerônimo3 lança-se à peleja com o peso de sua inexpugnável erudição de biblista. Todo unigênito é também primogênito, embora nem todo primogênito seja unigênito, já que por primogênito se entende não apenas o filho que vem seguido de outros, mas o que não tem predecessor. Assim, nas Sagradas Escrituras se usa a palavra primogênito para referir-se tanto ao primeiro como ao único filho, como na passagem em que Deus manda resgatar os primogênitos homens (cf. Ex 34, 19). Como resgatariam seus primogênitos os pais que ainda não sabiam se teriam mais filhos? Talvez fosse difícil – poderia concluir o Estridonense com uma lógica arrasadoramente irônica – conseguir essa certeza no prazo de trinta e três ou sessenta e seis dias que havia para dito oferecimento…
Os irmãos do Senhor
Outra passagem usada por Helvídio para conferir peso à sua esquálida tese é aquela na qual dizem ao Senhor: “Tua Mãe e teus irmãos estão lá fora e desejam ver-Te” (Lc 8, 20). Eis, para o herege, uma nova menção aos outros filhos da Mãe de Jesus.
“A isso, precisamente, lhe replicamos que não ande inventando falácias”.4 Tal recomendação jeronimiana constitui a introdução e a clave em que desenvolveria a descompostura. Logo a seguir o Santo explica que o termo irmão apresenta diversas acepções nas Sagradas Escrituras. A primeira – a única que chegou a Helvídio – é a de irmão por natureza. Mas Nosso Senhor, no Calvário, teria porventura deixado sua Mãe aos cuidados de São João (cf. Jo 19, 26) se tivesse outros irmãos?
A segunda forma de empregar a palavra irmão é em razão da linhagem. Assim, todos os judeus são irmãos por pertencerem a uma mesma estirpe comum, como podemos verificar em várias passagens (cf. Dt 15, 12; 17, 14-15; Rm 9, 3), mas nem por isso são todos filhos naturais de Maria Imaculada.
Irmão também se pode ser por afeto. E nesse sentido todos nós somos filhos dessa Virgem Mãe que engendrou “o Primogênito entre uma multidão de irmãos” (Rm 8, 29).
Existe, entretanto, uma última interpretação do vocábulo irmão. É a que leva em conta certo grau de parentesco. Abraão, por exemplo, chamava Lot de irmão, embora fosse seu tio (cf. Gn 13, 8). Desse modo, aqueles “irmãos” do Senhor poderiam ser, de fato, seus parentes, mas não no grau que Helvídio maliciosamente apregoava contra as evidências de tantas outras passagens bíblicas.
O Leão de Judá e o de Belém
O defensor da Virgem atacava não apenas a blasfêmia, mas também o blasfemo pois, derrubado o operário, desabonava toda a obra
A invectiva do defensor da Virgem atacava não apenas a blasfêmia, mas também o blasfemo, pois bem sabia que, derrubando o operário, desqualificava toda a obra. Deixemos-lhe a tonitruante palavra: “Tu, o mais ignorante dos homens, […] vendo-te abandonado em pleno mar das Escrituras, concentraste toda a tua raiva para injuriar a Virgem, a exemplo daquele que, […] não podendo dar-se a conhecer a todos pelo bem, o conseguiria pelo mal”.5 A rajada de rugidos continua com ainda maior vigor: “Ante tal blasfêmia, quem poderá considerar-te famoso e estimar-te em dois asses? Conseguiste o que pretendias: ser ilustre por um crime”.6
Argumentum ad hominem? Talvez, mas mais do que isso: eliminando a causa de tantos efeitos malignos, ficava estigmatizado para a posteridade o perfil daqueles que, brandindo meia página das Escrituras Sagradas, arremeteriam insolentemente contra outras mil. A partir de São Jerônimo, “Helvídio” poderia ser o adjetivo – ou insulto, a bem dizer – para esses que levantam sua opinião particular, eco da do mundo em sua época, no sentido oposto a séculos de Tradição Apostólica. Com toda a razão advertia o primeiro Papa: “Nenhuma profecia da Escritura é de interpretação pessoal. Porque jamais uma profecia foi proferida por efeito de uma vontade humana” (II Pd 1, 20-21).
O estilo polêmico com que arremete o Leão de Belém, como São Jerônimo ficou conhecido, pode parecer pontiagudo demais para ouvidos acostumados a um linguajar menos vibrante… A estes convidamos a ver refletida na vida dos Santos a infinita variedade e riqueza das virtudes de Cristo. Com efeito, Ele não pregava apenas as bem-aventuranças às multidões, mas sabia increpar os fariseus; Ele não só impunha as mãos sobre as crianças ou tocava os leprosos para curá-los, mas tecia um chicote a fim de expulsar os cambistas do Templo; Ele era o Cordeiro de Deus e o Leão de Judá.
O cristal e sua muralha
Finalmente, após ter refutado todos os falsos argumentos do herege e feito uma esplêndida apologia da virgindade – defendendo, inclusive, a virgindade de São José7 –, São Jerônimo encerra o tratado dirigindo-se a Helvídio: “E como penso que tu, derrotado pela verdade, começarás a detratar minha vida e lançar-me maldições […], te advirto, em previsão disso, que essas tuas invectivas, lançadas com a mesma boca com que caluniaste Maria, serão para mim motivo de glória, pois o servo do Senhor e sua Mãe são alvo dessa tua eloquência canina”.8

Estas últimas palavras do santo polemista deixam transparecer o motivo que o levou a escrever tal refutação: seu amor e devoção à Santíssima Virgem, que o levava a considerar uma honra ser caluniado por quem caluniava a gloriosa Mãe de Deus. De fato, o que se destila de todo o tratado, o pioneiro nos mares mariais, é um profundo amor a Nossa Senhora. Tão profundo que coligou incenso com pólvora, pois a indignação irrompe do coração abrasado de enlevo e admiração.
O cristal da virgindade perpétua de Maria foi defendido pelos estertores de um leão, que construiu uma muralha teológica para defendê-lo
A cada parágrafo esse cristal maravilhoso, pelo qual o Sol de Justiça pôde chegar ileso ao mundo sem diminuir em nada a pureza de sua pulcritude, esse cristal delicado e sublime é defendido pelos estertores de um leão. Era ele o primeiro a tomar o estandarte da Virgem e defendê-La, rodeando sua figura de uma inconcussa muralha teológica. Era o primeiro de muitos, pois tanta luz e tanta castidade feririam outros olhos sujos ao longo dos séculos, os quais arremessariam contra o mesmo vitral as mesmas pedras extraídas das mesmas passagens bíblicas isoladas.
Entretanto, a cada ataque dos infernos a muralha haveria de crescer, emoldurando magnificamente o puríssimo cristal de Deus. ◊
Notas
1 SÃO JERÔNIMO. De perpetua virginitate Beatæ Mariæ. Adversus Helvidium, n.1. In: Obras Completas. Madrid: BAC, 2009, v.VIII, p.67.
2 Idem, ibidem.
3 Cf. Idem, n.10, p.85-89.
4 Idem, n.12, p.91.
5 Idem, n.16, p.103
6 Idem, n.17, p.105.
7 “Tu afirmas que Maria não permaneceu virgem; eu vou muito mais longe ainda alegando que também o próprio José, graças a Maria, foi também virgem, resultando assim que de um matrimônio virginal nascesse um Filho virgem” (Idem, n.19, p.109).
8 Idem, n.22, p.115.