Evangelho do IX Domingo do Tempo Comum
23 Jesus estava passando por uns campos de trigo, em dia de sábado. Seus discípulos começaram a arrancar espigas, enquanto caminhavam. 24 Então os fariseus disseram a Jesus: “Olha! Por que eles fazem em dia de sábado o que não é permitido?” 25 Jesus lhes disse: “Por acaso, nunca lestes o que Davi e seus companheiros fizeram quando passaram necessidade e tiveram fome? 26 Como ele entrou na casa de Deus, no tempo em que Abiatar era sumo sacerdote, comeu os pães oferecidos a Deus, e os deu também aos seus companheiros? No entanto, só aos sacerdotes é permitido comer esses pães”. 27 E acrescentou: “O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado. 28 Portanto, o Filho do Homem é Senhor também do sábado”.
3,1 Jesus entrou de novo na sinagoga. Havia ali um homem com a mão seca. 2 Alguns O observavam para ver se haveria de curar em dia de sábado, para poderem acusá-Lo. 3 Jesus disse ao homem da mão seca: “Levanta-te e fica aqui no meio!” 4 E perguntou-lhes: “É permitido no sábado fazer o bem ou fazer o mal? Salvar uma vida ou deixá-la morrer?” Mas eles nada disseram. 5 Jesus, então, olhou ao seu redor, cheio de ira e tristeza, porque eram duros de coração; e disse ao homem: “Estende a mão”. Ele a estendeu e a mão ficou curada. 6 Ao saírem, os fariseus com os partidários de Herodes, imediatamente tramaram, contra Jesus, a maneira como haveriam de matá-Lo (Mc 2, 23–3, 6).
I – Onde encontrar o Absoluto?
Quem de nós, durante a infância, não fez a experiência de plantar, por exemplo, um grãozinho de feijão e cobri-lo com uma caixa de papelão, na qual se faz um orifício no lado oposto ao lugar onde foi depositada a semente? De vez em quando – dependendo do grau de curiosidade de cada criança – levanta-se um pouquinho a caixa, rega-se um tanto e, sobretudo, verifica-se se está nascendo algo ou não… Aos poucos o grão germina, aparece o primeiro broto e – oh, surpresa! – o caule, que se erguia reto, inclina-se à procura da luz. E, com o passar dos dias, tem-se a alegria de ver como a nova planta deu uma longa volta para encontrar a abertura da caixa e sair.
Em botânica este fenômeno é denominado heliotropismo, termo de origem grega que significa movimento em busca do Sol. Isto é mais fácil de se comprovar no hemisfério norte, onde as estações do ano são muito definidas. Chegada a primavera, basta que a Terra se incline um pouco em direção ao Sol para que todas as árvores, ressequidas pelo tremendo frio do inverno, reverdeçam e a folhagem comece a se desenvolver com exuberância. Esta se mantém sempre orientada para a luz, a fim de receber os raios do astro rei, sendo curioso notar que não existe folha alguma caprichosa ou revoltada que se esconda de seu influxo.
Criados para amar e conhecer o Infinito
Ora, Deus pôs diante dos nossos olhos o reino vegetal tão ordenado, para simbolizar uma aspiração – muito mais elevada e nobre – que existe tanto no Anjo como na alma humana, à qual podemos chamar “teotropismo”, orientação para Deus. Com efeito, desde os primeiros lampejos da razão o olhar do homem está à procura do Absoluto. Para usar uma linguagem metafórica, dizemos que nosso coração é criado com uma janela aberta para o infinito, que o impele continuamente para a verdade, o bem e o belo; do contrário, ser-nos-ia impossível visar qualquer fim sobrenatural.
Feito para conhecer e amar o Infinito, e ser por Ele conhecido e amado, o homem só obterá a felicidade plena na entrega a Deus
O Senhor assim nos fez para que sintamos nossa insuficiência e nos reconheçamos sujeitos a alguém muito superior. E por mais que haja quem se declare ateu, não é real que se baste a si mesmo a ponto de viver totalmente desligado deste desejo de Deus! Desde que o homem não levante obstáculos e seja fiel a esta apetência natural, ele será justificado, ou seja, conseguirá efeitos idênticos aos do Batismo sacramental.1 É o que encontramos na história de certos Santos, dentre os quais a africana Santa Josefina Bakhita: ignorando a Religião Católica durante o primeiro período de sua existência, indagava-se quem seria o Criador do Sol, da Lua e das estrelas, e alegrava-se em prestar homenagem a este grande “patrão”2 do universo, como ela O chamava. Feitos para conhecer e amar o Infinito e ser por Ele conhecidos e amados, só obteremos a felicidade plena na entrega a Deus, porque nenhuma outra criatura que amemos nem atividade que desempenhemos nos cumulará de satisfação.
Como se explica, então, que tantos se precipitem nos abismos do pecado? É devido a uma ilusão, pois, de si, o homem é incapaz de praticar o mal pelo mal ou o erro pelo erro.3 Quando uma pessoa se abandona a um prazer pecaminoso – portanto, proibido pela Lei de Deus –, ou até quando comete um crime, no fundo ela julga alcançar por este meio algum gênero de felicidade.
Dois caminhos diante do homem
Há um determinado momento na vida em que diante de nós se abrem dois caminhos: transformar em ídolo aquilo que é relativo, seja a carreira, o dinheiro, o relacionamento social, ou abraçar o Absoluto verdadeiro, que é Deus, confessando nossa contingência em relação a Ele. Eis o que mantém a saúde da alma, e inclusive a física…
No campo sobrenatural, quanto mais eu amo, mais meu apetite se dilata, até atingir dimensões inimagináveis. Assim se passou com Nossa Senhora, em quem o incêndio de amor divino já não tinha proporção com esta terra, e Ela passou desta vida para a outra.
Diante de nós há dois caminhos: transformar em ídolo aquilo que é relativo, ou abraçar o Absoluto verdadeiro, que é Deus, confessando nossa contingência em relação a Ele
No extremo oposto, quando alguém retira Deus do centro de suas cogitações e de seu afeto, e toma uma criatura como absoluto, perde o equilíbrio; o coração fica insensível para Deus, a inteligência se embota e a pessoa se aplica unicamente ao que há de concreto e material. A gula insaciável de glória, de satisfazer a vaidade pessoal, de chamar a atenção sobre si, de governar, de ser louvado e aplaudido, ao mesmo tempo que proporciona uma felicidade fracionária, acaba por introduzir na alma um princípio de enfermidade espiritual que, cedo ou tarde, redundará em frustração. Acontecer-lhe-á como a São Pedro ao caminhar sobre o mar: por pensar em si começou a afundar nas águas agitadas (cf. Mt 14, 30).
Eis o que veremos refletido no Evangelho do 9º Domingo do Tempo Comum, na atitude dos fariseus em face de Nosso Senhor Jesus Cristo. Eles se preocupavam com a Lei e se esqueciam de olhar para Deus, diante de quem estavam! Por quê? Porque o cumprimento dos preceitos os favorecia, já que lhes garantia um status e dava base para serem os primeiros da sociedade. Por conseguinte, não era sequer a Lei o que colocavam no centro, e sim a eles próprios! É um caso típico de absolutismo espiritual que Jesus vai castigar, usando com violência sua divina palavra.
II – Adorar o sábado ou adorar o Senhor no sábado?
23 Jesus estava passando por uns campos de trigo, em dia de sábado. Seus discípulos começaram a arrancar espigas, enquanto caminhavam.
O Evangelho nos apresenta a cena poética de Nosso Senhor Jesus Cristo andando por um trigal com os Apóstolos, estando estes em situação de necessidade: não tinham víveres. O Divino Mestre deslocava-Se de uma aldeia a outra, pregando e curando a todos, e seus discípulos, como estavam constantemente em torno d’Ele, sendo formados na sua escola, viam-se rodeados pela multidão e não tinham tempo sequer para comer (cf. Mc 3, 20; 6, 31). Para quem viajava a pé era difícil levar provisões e, às vezes, eles esqueciam-se deste cuidado (cf. Mc 8, 14).
Nessas circunstâncias era legítimo – e até permitido pela própria Lei –, ao atravessar uma plantação, servir-se de algo com moderação, sem causar prejuízo ao dono da propriedade. Se fosse uma seara de trigo, podiam-se colher as espigas sem usar a foice e debulhá-las com a mão (cf. Dt 23, 25-26). Habitualmente consumido no Oriente Médio, o trigo integral e cru é um alimento completo, pois possui substâncias que são perdidas ao se produzir a farinha branca. Mastigar aqueles grãos aliviava um pouco o tormento da fome e dava vigor suficiente para prosseguir no caminho, percorrendo muitos quilômetros.
Diante de Cristo, a antipatia ou o desejo de seguir…
24 Então os fariseus disseram a Jesus: “Olha! Por que eles fazem em dia de sábado o que não é permitido?”
O sábado, como consta na primeira leitura (Dt 5, 12-15) deste domingo, era um dia santo, ou seja, “dedicado ao Senhor” (Dt 5, 14), e por isso todo israelita devia descansar e abster-se de trabalhar. Entretanto, os fariseus e escribas tinham acrescentado diversas normas que não constavam na Lei de Moisés, entre as quais a proibição de trinta e nove tarefas.4 Enquanto a Lei ordenava o repouso no sétimo dia, “mesmo quando for tempo de arar e de ceifar” (Ex 34, 21), para os rígidos critérios rabínicos colher umas poucas espigas ou até uns poucos grãos já significava violar o sábado.5
Vendo os Apóstolos fazerem isso, os fariseus ficaram horrorizados, quando, na realidade, aquele procedimento era inteiramente normal. A este propósito São Cirilo de Alexandria chega a ridicularizar os fariseus, exclamando: “Tu mesmo, ó fariseu, quando aos sábados te sentas à mesa, não partes o pão? Por que recriminas os outros?”6 No fundo, a dificuldade deles tinha uma origem bem anterior a estes fatos e não era contra os discípulos, mas sim contra o Mestre… Ao acusá-los, criticavam a Ele – apesar de não terem coragem de dizê-lo diretamente –, insinuando que precisaria tomar medidas para que seus seguidores não cometessem tal infração.
Os discípulos haviam aceitado a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo e, julgando-O superior a tudo, consideravam o resto – as espigas, a lei sabática, os fariseus… – como algo secundário
Ora, não podemos atribuir aos Apóstolos um espírito de contenda, agindo desta forma pelo prazer de provocar os fariseus. Preferiam não irritá-los nem discutir com eles, mas nesta ocasião viam-se premidos pela fome. Durante as obrigações de apostolado tinham despendido muita energia, pois decerto já haviam excedido a quantidade de passos estipulada pelo código farisaico, segundo o qual não era legítimo andar fora da cidade, aos sábados, além de dois mil côvados, isto é, pouco mais de um quilômetro.7 Era direito deles, portanto, ao cruzar aquele lugar onde havia trigo, recuperar as forças, segundo o costume admitido nos demais dias da semana.
Além disso, pela fé os discípulos haviam aceitado a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo e, julgando-O acima de tudo, consideravam o resto – as espigas, a lei sabática, os fariseus… – como algo secundário. Movia-os um sincero entusiasmo por seguir quem é mais importante, assimilar sua doutrina e estar em consonância com seu modo de ser. Por este motivo enganavam o estômago com aqueles grãozinhos de trigo para, livres das preocupações materiais, acompanhar Jesus bem de perto, lado a lado às vezes, com verdadeira familiaridade, e não perder nenhuma de suas palavras, atitudes ou gestos!
O Divino Mestre põe os fariseus em contradição
25 Jesus lhes disse: “Por acaso, nunca lestes o que Davi e seus companheiros fizeram quando passaram necessidade e tiveram fome? 26 Como ele entrou na casa de Deus, no tempo em que Abiatar era sumo sacerdote, comeu os pães oferecidos a Deus, e os deu também aos seus companheiros? No entanto, só aos sacerdotes é permitido comer esses pães”.
Enquanto Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo já vira esta cena desde toda a eternidade e, ademais, conhecia tudo o que está na Escritura, pois é seu próprio inspirador. Senhor da História e também Divino Didata, Ele permite o desenrolar dos acontecimentos para ensinar os homens. A tal propósito, a atitude de Davi estava destinada a servir-Lhe para pôr os fariseus em contradição consigo mesmos neste momento. E deixou que os Apóstolos rompessem o descanso do sábado para causar um choque e provocar uma reação da parte dos fariseus, que desse margem a proclamar a verdade, em oposição à religião por eles inventada, tão afastada da piedade autêntica.
Assim como os povos antigos adoravam ídolos, os fariseus e escribas haviam caído na insensatez de erigir o relativo em absoluto, endeusando pequenas regras
Não imaginemos, porém, que Nosso Senhor procurasse espicaçar os fariseus e os mestres da Lei para condená-los; antes queria convertê-los e mostrava-Se caridoso – Ele é a Caridade! –, a fim de curar a doença terrível de que padeciam: o orgulho. Está claro que eles possuíam uma visualização apoucada da realidade e bem se lhes podia aplicar o antigo adágio oriental: “Quando o sábio aponta para a Lua, o idiota olha para o dedo”. Assim como os povos antigos adoravam ídolos de madeira ou de metal, eles caíam na insensatez de erigir o relativo em absoluto, endeusando aquelas pequenas regras, em vez de elevar as vistas e contemplar a Deus! Por isso o Divino Mestre refutou-os de uma maneira mais incisiva que em outras circunstâncias, dando-lhes um argumento de autoridade, ao relembrar um fato inegável que prefeririam não ouvir nesta hora. Citou o episódio histórico de Davi, figura máxima para eles, modelo de rei santo e de profeta.
Quando Davi fugiu da cólera de Saul, com seus soldados, foi à cidade sacerdotal de Nobe, onde se encontrava então o Tabernáculo. Vendo que seus companheiros não tinham alimento, Davi entrou na casa de Deus e pediu provisões ao pontífice (cf. I Sm 21, 1-6). Só havia os pães da proposição oferecidos ao Senhor e reservados aos sacerdotes (cf. Lv 24, 5-9). Davi, contudo, não teve escrúpulos nem a menor dúvida: os pães eram de Deus, ele e sua gente também pertenciam a Deus, tudo é de Deus! Sendo uma questão de força maior, na qual entrava em jogo a subsistência de seus homens, assumiu a responsabilidade e distribuiu os pães. Teria acaso cometido um sacrilégio, um pecado terrível, do qual, aliás, não consta que depois se penitenciasse? E comer os pães sagrados decerto seria muito mais grave do que apanhar alguns grãozinhos de trigo pelo caminho em dia de sábado… Jesus deixava patente que se numa necessidade extrema, como a de manter a própria vida, era lícito omitir o cumprimento da lei do culto, com maior razão o era em relação à do sábado.
“O homem foi feito para Mim…”
27 E acrescentou: “O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado. 28 Portanto, o Filho do Homem é Senhor também do sábado”.
Esta afirmação de Nosso Senhor contém um interessante princípio de moral, que mostra como as enfermidades da alma hão de ser, em certo sentido, tratadas como as físicas. Segundo a sábia tese da homeopatia, não existem doenças, e sim doentes. Cada indivíduo é irrepetível e tem de ser estudado em função do seu organismo, psicologia e reatividade. Na moral há, sem dúvida, regras fixas e imutáveis, mas é preciso analisar bem os fatos e as circunstâncias. Um confessor experiente, por exemplo, é aquele que, com seu discernimento dos espíritos, penetra e sabe abordar a consciência do penitente como se fosse única, distinguindo qual a orientação conveniente e a ocasião propícia para tal.
Em concreto, o caso dos Apóstolos ao arrancar as espigas devia ser considerado excepcional, porquanto eles serviam o Autor e Senhor da Lei, o Criador do trigo, deles mesmos e até dos fariseus: Jesus Cristo, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Sendo Ele a Justiça e a Lei em substância, é o critério absoluto, devendo eles agir de acordo com a moral que Ele lhes prescrevia naquele momento. Por que haviam de cumprir as regras prescritas pelos fariseus?
Isto mostra a inimaginável liberdade de que gozam os justos ao entrarem no Céu, pois lá não só estão diante da humanidade santíssima de Cristo, mas veem a Deus face a face, “como Ele é” (I Jo 3, 2). Pela visão beatífica participam da própria liberdade de Deus, pois Deus é a Liberdade, conforme escreve São Paulo: “Onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade” (II Cor 3, 17). Compreendamos, também nós, que para sermos plenamente livres é necessário chegar à glória da contemplação divina. Loucos são aqueles que procuram a liberdade “como véu para encobrir a malícia” (I Pd 2, 16), quando abraçam, isto sim, a escravidão que conduz ao inferno.
Aqueles que recriminavam os Apóstolos cometeram o verdadeiro crime: negaram Nosso Senhor, recusando os sinais evidentes de que Ele era o Messias
Ao declarar aos fariseus “O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado”, era como se lhes dissesse: “O homem foi feito para Mim e não para o sábado”. De fato, este dia da semana todo reservado ao Senhor foi estabelecido para que o povo o vivesse em função d’Ele. A Aliança firmada por Deus com Israel, ao entregar-lhe as tábuas de pedra com o Decálogo, bem como as promessas antes feitas aos patriarcas, visavam o homem e não a instituição do sábado, e só viriam a se realizar na sua plenitude em Nosso Senhor Jesus Cristo e na Igreja Católica Apostólica Romana por Ele fundada.
Deste modo Jesus mostrava aos fariseus sua divindade e convidava-os a aceitá-Lo. “O repouso sabático”, afirma o padre Tuya, “é de instituição divina (Gn 2, 2-3). Proclamar-Se ‘Senhor do sábado’ é proclamar-Se ‘dono’ de sua legislação, de sua instituição; é proclamar-Se dono do mesmo. Moisés legislou isto em nome de Deus. Mas Cristo não Se põe na linha de Moisés, senão no próprio ‘senhorio’ da legislação do sábado. Se Deus é o ‘dono’ do sábado, e Cristo é o ‘Senhor’ do sábado, Cristo está Se proclamando, por isso, Deus”.8
Então, quem violava a lei do sábado? Os fariseus! Sim, aqueles que recriminavam os Apóstolos cometeram um verdadeiro crime: não quiseram aderir a Nosso Senhor, antes O negaram e não compreenderam como deveriam proceder no sábado. Seu principal erro foi o de terem sido cegos diante dos sinais evidentes de que Ele era o Messias. Não perceberam porque eram materialistas, naturalistas, relativistas e ególatras. Assim, excluíram-se da Aliança e desprezaram as promessas…
Impossibilitado de agir, mas confiante em Jesus
3,1 Jesus entrou de novo na sinagoga. Havia ali um homem com a mão seca. 2 Alguns O observavam para ver se haveria de curar em dia de sábado, para poderem acusá-Lo.
Aos sábados os judeus enchiam a sinagoga e ali permaneciam quietos, evitando qualquer esforço que pudesse quebrar a lei sabática. Quando Jesus chegou, certamente fez-se um profundo silêncio. Todos se perguntavam o que iria acontecer e Ele pôs-Se a ensinar (cf. Lc 6, 6a).
Estava ali um homem com a mão seca – a direita, segundo São Lucas (cf. Lc 6, 6b). A mão é um membro muito importante, utilíssimo, que dá à criatura humana superioridade de ação sobre os animais, ainda os mais hábeis. Com as mãos o homem executa tarefas com extraordinária precisão, é capaz de tocar instrumentos magníficos, como a harpa, o órgão ou o violino, de produzir belas obras artísticas e realizar as ocupações cotidianas. Ter a mão seca, portanto, significa inoperância e inutilidade. Aquele homem sentia-se, sem dúvida, inferiorizado por não conseguir trabalhar com desenvoltura para ganhar o pão e sustentar a família. Sabendo que Nosso Senhor Jesus Cristo era o Messias e realizava milagres, desejava ele ardentemente ser curado, e pouco se importava que fosse num sábado ou em qualquer outro dia da semana; não obstante, nem ousou levantar a voz. Mas Jesus já vira desde toda a eternidade sua vontade cheia de fé.
Também se haviam reunido ali os escribas e os fariseus que, cofiando a barba, fixavam os olhos no Divino Mestre para ver se violaria de novo o sábado. Talvez eles mesmos tivessem levado o pobre aleijado até a sinagoga, convencendo-o a ficar próximo de Jesus e movimentar algumas vezes o braço, a fim de propiciar a ocasião para que Ele tomasse a iniciativa da cura.
Mais uma chance de conversão rejeitada pelos fariseus
3 Jesus disse ao homem da mão seca: “Levanta-te e fica aqui no meio!” 4 E perguntou-lhes: “É permitido no sábado fazer o bem ou fazer o mal? Salvar uma vida ou deixá-la morrer?” Mas eles nada disseram.
Por que Nosso Senhor pôs o enfermo no meio deles? Queria primeiro chamar a atenção de todos os presentes e, inclusive, dos seus inimigos. Estes, sentados nos primeiros lugares (cf. Mt 23, 6), logo se entreolharam ao escutar aquela ordem, julgando ter Jesus – finalmente! – caído na armadilha. Ele, no entanto, conhecendo as más intenções que albergavam em seu interior, buscava fazer o bem e dar-lhes mais uma chance, no intuito de salvá-los. Por tal motivo apresentou um problema que lhes facilitava a conversão, e ao mesmo tempo criava a graça para admitirem que haviam errado e receberem o que Ele oferecia.
Ao indagar se era permitido, no sábado, fazer o bem ou o mal, levantava um assunto nunca antes abordado, pois é evidente que não existem férias da virtude. Enquanto o mal deve ser rejeitado sempre, o bem deve ser praticado todos os dias da semana, e até mais especialmente aos sábados, porque é o dia do Senhor. Os fariseus, pelo contrário, procuravam evitar sempre o bem, desprezando “a justiça, a misericórdia e a fidelidade” (Mt 23, 23), e por dentro estavam “cheios de roubo e de intemperança […], de hipocrisia e de iniquidade” (Mt 23, 25.28).
Conhecendo as más intenções que albergavam em seu interior, Nosso Senhor buscava fazer o bem e dar-lhes mais uma chance, no intuito de salvá-los
Ademais, socorrer um animal que caíra num poço ou salvar uma vida humana em risco era autorizado pelo regulamento dos mestres,9 e muitos dos que ali estavam já haviam passado por situações deste tipo, tranquilizando em seguida a consciência, às vezes mediante algum donativo, que depois ia encher o bolso dos sumos sacerdotes… A expressão “deixá-la morrer” tornava o tema ainda mais cogente, já que significava perguntar: “Deve-se conceder a vida a alguém ou matá-lo? Pode-se contribuir com um homicídio ou é obrigatório interrompê-lo?”
Quem se atreveria a proferir uma palavra? Estavam entre a espada e a parede, e só era possível dar a razão ao Salvador, “mas eles nada disseram”.
Ira e tristeza: extremos de um Coração Divino
5a Jesus, então, olhou ao seu redor, cheio de ira e tristeza, porque eram duros de coração…
Imaginemos como terá sido o olhar de Nosso Senhor enquanto fitava aqueles homens de coração duro, que se obstinavam em rejeitar a graça de Deus. A sua falta de fé provocava a ira do seu Sagrado Coração, repleto de bondade e de amor; ira santa e divina, ira, entretanto, aliada à tristeza e à pena por não quererem ouvi-Lo. Extremos de que só Ele é capaz!
Por bondade, preferiu envolver o milagre em certa ambiguidade…
5b …e disse ao homem: “Estende a mão”. Ele a estendeu e a mão ficou curada.
Nosso Senhor Jesus Cristo costumava operar os milagres de forma a deixar patente que era Ele o Autor, para impedir que criassem falsas ideias sobre o poder dos espíritos ou surgissem superstições do gênero. Por isso, ao curar o surdo-mudo colocou-lhe os dedos nos ouvidos, ungiu-lhe a língua com a própria saliva e ordenou: “‘Éfeta!’, que quer dizer ‘abre-te!’” (Mc 7, 34); quis tocar num leproso para purificá-lo (cf. Mc 1, 40-42); restituiu a vida à filha de Jairo tomando-a pela mão (cf. Mc 5, 41), e ao filho da viúva de Naim, aproximando-se, pousou os dedos sobre o esquife e mandou-o levantar-se (cf. Lc 7, 14), ainda que estes contatos significassem adquirir grande quantidade de impurezas.
De igual modo, Jesus podia ter feito algum esforço, avançando uns passos ou dizendo ao homem: “Dá-me tua mão”, apertando-a para que fosse curada. Por bondade para com os fariseus, contudo, preferiu que a autoria do prodígio ficasse um tanto ambígua, de maneira que não Lhe pudesse ser atribuído com toda a certeza, pairando uma dúvida: quiçá fosse efeito da fé do beneficiado…
Este, sim, movera a mão; mas acaso não tinha direito de estendê-la? Onde estava escrito que aos sábados se exigia manter as mãos caídas ao longo do corpo ou escondê-las debaixo da túnica, sem possibilidade de as erguer, sequer para espantar um mosquito? Se aquele homem confiava na palavra de Jesus para ser curado, deveria esperar até o dia seguinte, quando talvez já não tivesse mais a oportunidade? Nada havia a dizer…
Este é o espírito dos maus…
6 Ao saírem, os fariseus com os partidários de Herodes, imediatamente tramaram, contra Jesus, a maneira como haveriam de matá-Lo.
Qual foi a resposta dos fariseus? Em lugar de se converterem, encheram-se de ódio e organizaram um plano de morte contra o Salvador. “Mas como sabiam que o Sinédrio não podia lançar-Lhe a mão no território da Galileia sem o beneplácito do Rei Herodes, foram-se entender com os herodianos a fim de os decidirem a favorecer-lhes os manejos. Esperavam que Herodes instigado pelos seus cortesãos se apoderaria de Jesus”.10 Não sabemos se estes últimos já tramavam por si ou foram tão somente manipulados pelos fariseus. O certo é que, do ponto de vista político, seguiam uma ideologia completamente oposta à dos primeiros, com os quais mantinham constantes discussões. Eles eram, como indica o seu nome, partidários da dinastia herodiana e favoráveis à dominação romana, enquanto os fariseus defendiam a libertação de Israel. Porém, a tal grau chegava a maldade e a dureza de coração dos fariseus, que preferiram fazer uma combinação com aqueles “liberais na ordem pública e também, em parte, na religiosa”,11 a aderir ao verdadeiro Messias. Este é o espírito dos maus…
III – Estarei eu com a mão seca?
Considerado misticamente, aquele homem da mão seca representa, como diz São Beda, “o gênero humano infecundo para o bem […], cuja destra se havia secado em seu primeiro pai, quando colheu o fruto da árvore proibida”.12 De fato, pelo pecado de Adão a humanidade tornou-se estéril, incapaz de conquistar méritos. Mas foi curada “pela graça do Redentor, quando estendeu as mãos inocentes na árvore da Cruz”.13 Desta forma, por sua Paixão, Nosso Senhor Jesus Cristo devolveu aos homens a possibilidade de dar frutos extraordinários.
Ora, quando alguém, tendo recebido no Batismo a “mão” dos dons do Espírito Santo e das virtudes teologais e cardeais, não a usa para a glorificação da Igreja, ela se resseca e passa a proceder de maneira indevida, em detrimento do Corpo Místico de Cristo. É o que acontece a todos os egoístas, aos ególatras, aos que encolhem a mão para não ajudar os seus companheiros, a quem abraça o pecado: as virtudes já não operam em benefício dos outros e tudo quanto fazem será ineficaz. Semeiam cactos e colhem abrolhos! Viverão na insegurança, na amargura e na escravidão, porque Deus não abençoa suas obras.
Ao operar a cura do homem da mão seca, Nosso Senhor preferiu não deixar patente a autoria do prodígio, por um ato de bondade para com aqueles homens de coração duro
Em sentido oposto, sabemos que a alma de todo apostolado é a vida interior, e esta, por sua vez, se baseia na fé e na piedade. Então, quem está no máximo do seu fervor faz surgir a maravilha de uma obra missionária fecunda que poderá nascer até em terrenos arenosos! O homem estende a mão aos outros e quem dá o bom resultado é Deus, conforme a palavra de São Paulo: “Nem o que planta é alguma coisa nem o que rega, mas só Deus, que faz crescer” (I Cor 3, 7).
Por conseguinte, se nós somos aqueles cuja atuação tem consequências inúteis, devemos nos perguntar: “Estarei eu com a mão seca?” Neste caso, o único meio de curá-la é procurar Nosso Senhor Jesus Cristo no templo, aproximarmo-nos do altar e pedir-Lhe que faça o milagre de mudar a nossa mão inerte, dando-lhe agilidade. Ele não negará, pois está sempre disposto a sanar nossos defeitos morais e a conceder-nos a necessária força de alma. Só assim nos transformaremos em leões no apostolado. A ausência de frutos será, num instante, suprida pela graça de Deus.
Ódio irreconciliável entre o bem e o mal
Todavia, não nos enganemos: quando nos determinamos a fazer o bem, alguns agradecerão – de modo fraco, o mais das vezes… – e outros nos odiarão, com uma virulência muito maior, comparativamente, do que o reconhecimento dos primeiros. Qual a razão deste ódio?
Pensemos em Nosso Senhor: não era por ter curado o homem da mão seca ou porque violasse o sábado que os fariseus e os herodianos queriam matá-Lo. Tal era sua divina ação de presença que, ao manifestar-Se em público, Ele dividia os campos, conforme fora predito por Simeão: “Eis que este Menino está destinado a ser uma causa de queda e de soerguimento para muitos homens em Israel, e a ser um sinal que provocará contradições, a fim de serem revelados os pensamentos de muitos corações” (Lc 2, 34-35). Quem aceitava as graças de fé por Ele trazidas, acreditava logo; quem as rejeitava, odiava-O também imediatamente.
Tal era a ação de presença de Nosso Senhor que, ao manifestar-Se em público, Ele dividia os campos: quem aceitava as graças por Ele trazidas, acreditava logo; quem as rejeitava, odiava-O
Com efeito, sempre que alguém levanta uma objeção contra o bem demonstra ser condescendente em relação ao mal, e a quem entra pelas sendas do mal ninguém pode compreender… Mistério da iniquidade! Neste ódio irreconciliável há um pecado contra o Espírito Santo – impugnar a verdade conhecida14 – que “jamais terá perdão” (Mc 3, 29). É uma rejeição total à Verdade, à Bondade, à Misericórdia em essência, isto é, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, e, portanto, ódio a Deus. Diante desta má vontade, de nada adiantam os argumentos lógicos, nem o magnífico éclat da virtude consegue convencer.
Tal inimizade existe desde que, no Céu, Satanás e seus sequazes se revoltaram contra Deus, e há de se prolongar até o fim do mundo (cf. Gn 3, 15). Assim como os ensinamentos e a sabedoria de Jesus iam transparecendo com maior fulgor durante sua vida terrena (cf. Lc 2, 52), também nos vários períodos da História a figura d’Ele, refletida na Igreja, se vai manifestando em seus múltiplos aspectos, e vemos a cada dia a verdade se tornar mais brilhante e a santidade, mais coruscante. Inclusive os ataques sofridos pela Igreja ou as heresias, que brotam às vezes, contribuem para isso (cf. I Cor 11, 19), porque exigem graças especiais do Espírito Santo que iluminem quem estuda para defendê-la. Desta maneira ela se torna mais explicitamente bela.
Ora, como já dissemos, o que acontece a Nosso Senhor e à sua Esposa Mística também se repete com os que Lhes pertencem pelo Batismo: o mundo verá em nós um raio da divindade de Cristo e, ainda hoje, Ele produzirá irritação nos que não creem e entusiasmo nos que creem. Como o próprio Jesus proclamou, Ele veio selecionar e escolher, salvar e santificar (cf. Mt 10, 34-35; Lc 10, 16). Ele continua sendo pedra de escândalo até a consumação dos tempos.
Na luta pelo bem, saibamos lidar com o mal
Nos dois episódios narrados no Evangelho deste 9º Domingo do Tempo Comum, Nosso Senhor mostra como aqueles que tomam o partido do bem têm de ser sábios, espertos e sagazes, e nunca devem cochilar, para não cair nas ciladas do mal; ao contrário, devem deixá-lo sempre em má situação. Eis uma lição a ser imitada! Aprendamos a lidar com o mal como o Divino Mestre, entendendo que ele é um adversário irredutível, capaz de chegar às últimas consequências, isto é, levar-nos ao martírio, como a Jesus.
A inimizade existente entre bons e maus durará até o fim do mundo, e aqueles que tomam o partido do bem têm de ser sábios, espertos e sagazes, a fim de não cairem nas ciladas do mal
Quando formos incompreendidos e perseguidos por amor à justiça, saibamos aceitar com resignação e alegria, pois nos aproximamos de Nosso Senhor. Ante a dureza de coração dos fariseus, Ele demonstrou ira e tristeza. Tal deve ser, exatamente, a nossa postura de alma: indignação contra o delírio de opor-se a Deus e pena que nos inspire a rezar pelos que nos perseguem. ◊
Notas
1 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I-II, q.89, a.6.
2 DAGNINO, Maria Luisa. Bakhita: da escravidão à liberdade. 2.ed. São Paulo: Loyola, 2000, p.58.
3 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., q.27, a.1, ad 1.
4 Cf. SHABAT. M 7, 2. In: BONSIRVEN, SJ, Joseph. (Ed.) Textes rabbiniques des deux premiers siècles chrétiens. Roma: Pontificio Istituto Biblico, 1955, p.160.
5 Cf. SHABAT. C.VIII, 10a. In: GUGGENHEIMER, Heinrich Walter (Ed.). The Jerusalem Talmud. Second order: Mo‘ed. Tractates Šabbat and ‘Eruvin. Berlin-Boston: W. de Gruyter GmbH & Co. KG, 2012, p.272.
6 SÃO CIRILO DE ALEXANDRIA. Explanatio in Lucæ Evangelium, c.VI, v.2: PG 72, 575.
7 Cf. ERUVIM. M 4, 3. In: BONSIRVEN, op. cit., p.193.
8 TUYA, OP, Manuel de. Biblia Comentada. Evangelios. Madrid: BAC, 1964, v.V, p.279.
9 Cf. SHABAT. B 117b; YOMÁ. M 8, 6-7. In: BONSIRVEN, op. cit., p.166; 231.
10 BERTHE, CSsR, Augustin. Jesus Cristo, sua vida, sua Paixão, seu triunfo. Einsiedeln: Benziger, 1925, p.134.
11 FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Vida pública. Madrid: Rialp, 2000, v.II, p.71.
12 SÃO BEDA. In Marci Evangelium Expositio. L.I, c.3: PL 92, 155.
13 Idem, ibidem.
14 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., II-II, q.14, a.2.