Entre os homens chamados a ser colunas da Igreja nascente, encontramos correntes irreconciliáveis. Mas Cristo a todos uniu, fazendo deles Apóstolos e Santos.
Aparecera o Messias, há tanto esperado pelo povo da Aliança. Contudo, as circunstâncias não eram fáceis: os judeus vinham padecendo a dominação sucessiva de nações pagãs, superiores em poderio bélico.
Nem um século havia se passado, desde que os descendentes dos Macabeus, em 140 a.C., obtiveram certa independência do jugo helênico, quando um novo e terrível braço de ferro fez-se sentir sobre Judá: a força dos césares romanos.
Humilhação intolerável para o povo eleito
Cientes de sua eleição por Deus, mas também das faltas cometidas, os hebreus aprenderam a ver na dominação estrangeira a mão de Javé, que visava, com isso, a retificação do coração de seus filhos e sua recondução ao caminho da fidelidade à Aliança. Completada a expiação e a purificação, o próprio Deus, superando em misericórdia a dureza da punição, alcançava a liberdade de seus eleitos.
Nos tempos messiânicos, porém, tal modo de considerar a escravidão, o exílio ou a dominação estrangeira tinha perdido, em muitas camadas da sociedade, este valor transcendental, para engolfar-se em considerações meramente humanas. Estar sob o jugo gentio tornara-se uma humilhação intolerável, que deveria suscitar movimentos de revolta, ávidos de reivindicações e represálias. Enquadra-se nesse conjunto, por exemplo, o tema do pagamento dos impostos…
Dois partidos irreconciliáveis
Na posição mais radical desta tendência encontrava-se um partido surgido na época do nascimento de Cristo, composto provavelmente por fariseus extremistas, que se faziam chamar zelotes, pelo fato de se dizerem os mais zelosos observantes da Lei e seus únicos defensores, se preciso fosse através da espada. Armavam conflitos e subversões, nos quais chegavam a matar seus compatriotas que pagavam o imposto ao Império ou manifestavam alguma simpatia por Roma. A vida pública de Nosso Senhor transcorreu, pois, num ambiente impregnado de espírito e realidade zelote. 1
No polo oposto, havia clãs acomodatícios, dispostos a contemporizar com as exigências e até com os costumes do invasor, a fim de ganhar-lhe a simpatia e obter regalias. Era o caso dos publicanos ou cobradores de impostos: membros do povo, a serviço do imperador, dedicados à arrecadação do tributo, por óbvio interesse pessoal. Ofício considerado pelos judeus praticantes como o auge da infâmia, não só pela proximidade com os gentios, proibida por Lei, como pelo sabido falseamento nos valores a serem pagos.
A qual destas correntes Jesus favoreceria?
De tal forma o tributo econômico constituía tema de controvérsia que, em certa ocasião, alguns discípulos dos fariseus e herodianos puseram Nosso Senhor à prova: mostrando-Lhe uma moeda com a efígie de César, perguntaram se era lícito ou não pagar o imposto. Se o Divino Mestre afirmasse a licitude, contrairia grande número de inimigos. Caso se pronunciasse contra, se indisporia com os romanos… “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22, 21), foi a sábia resposta divina. A solução do problema se apresentava não como uma tomada de posição, e sim como um apelo à consciência religiosa: atenção! Os critérios dos homens não são os critérios de Deus.
Numa palavra: veio o Reconciliador da humanidade, prenunciado pelos profetas, e grande número de judeus se encontrava dividido entre estas e outras facções antagônicas. Enquanto os zelotes esperavam um Messias libertador, um chefe militar que derrotasse o poderio estrangeiro, outros partidos esperavam um potentado de grande capacidade administrativa, um diplomata, o qual desse a Judá a hegemonia econômica sobre as demais nações. A qual destas correntes Cristo favoreceria?
Argumentos pró e contra
Talvez alguém seja tendente a optar pela segunda, ao ver a prodigalidade de Nosso Senhor em relação aos publicanos e aos pecadores (cf. Mt 9, 11): dois tipos humanos considerados no mesmo nível de desprezo. Inclusive o Divino Mestre chegou a escolher um cobrador de impostos para conformar o número dos Doze: Levi, o Apóstolo São Mateus. Quando recebeu o apelo de Jesus, “deixando ele tudo, levantou-se e O seguiu” (Lc 5, 28).
Por outro lado, quem mais zeloso cumpridor da Lei do que o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo, que não veio abolir a Lei, mas levá-la à perfeição (cf. Mt 5, 17)? D’Ele fora dito: “O zelo da tua casa me consome” (Jo 2, 17). Também entre os chamados para o Colégio Apostólico havia um de nome Simão, “o cananeu” ou “o zelote” (cf. Mc 3, 18; Mt 10, 4; Lc 6, 15; At 1, 13). Diferem os teólogos se este Apóstolo fazia parte ou não da seita zelote, antes da sua conversão: “É possível que Simão pertencesse ao partido dos zelotes”. 2 Todavia, do mesmo modo que o termo cananeu, neste caso, “não tem nada a ver com o país dos cananeus”, 3 igualmente o cognome zelote não o incluiria no clã reacionário.
“Na realidade, as duas qualificações equivalem-se, porque significam a mesma coisa: na língua hebraica, de fato, o verbo qanà’ significa ‘ser zeloso’, ‘dedicado’ e pode referir-se quer a Deus, porque é zeloso do povo por Ele escolhido (cf. Ex 20, 5), quer a homens que são zelosos no serviço ao Deus único com dedicação total, como Elias (cf. I Rs 19, 10). Portanto, é possível que este Simão, se não pertencia exatamente ao movimento nacionalista dos zelotes, tivesse pelo menos como característica um fervoroso zelo pela identidade judaica, por conseguinte, por Deus, pelo seu povo e pela Lei divina”. 4
Profunda transformação em Cristo
Sendo assim, entre os eleitos como colunas da Igreja nascente, encontramos dois cujas vertentes sociopolíticas, anteriores ao chamado divino, por si mesmas fariam deles inimigos irreconciliáveis: “Simão coloca-se no antípoda de Mateus, que ao contrário, sendo publicano, provinha de uma atividade considerada totalmente impura”.5 E apesar deste profundo abismo ideológico, Deus os fez Apóstolos e Santos, homens de convívio diário, unidos no círculo de seguidores mais íntimos do Divino Mestre.
Para isso foi necessário eles se despojarem dos critérios do mundo e adquirirem a mentalidade própria aos membros do Reino de Deus, iniciado nesta Terra e conquistado em sua plenitude na eternidade. Transformação profunda, somente possível de se operar em Cristo e por Cristo, pois, como diz São Paulo — diga-se de passagem, um fariseu militante antes da sua conversão! —, “é Ele a nossa paz, Ele que de dois povos fez um só, destruindo o muro de inimizade que os separava” (Ef 2, 14).
“Sinal evidente que Jesus chama os seus discípulos e colaboradores das camadas sociais e religiosas mais diversas, sem exclusão alguma. Ele interessa-Se pelas pessoas, não pelas categorias sociais ou pelas atividades! E o mais belo é que no grupo dos seus seguidores, todos, mesmo se diversos, coexistiam, superando as inimagináveis dificuldades: de fato, era o próprio Jesus o motivo de coesão, no qual todos se reencontravam unidos. […] Tenhamos também presente que o grupo dos Doze é a prefiguração da Igreja, na qual devem ter espaço todos os carismas, os povos, as raças, todas as qualidades humanas, que encontram a sua composição e a sua unidade na comunhão com Jesus”. 6 ◊