Evangelho da Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo,
Rei do Universo
Naquele tempo: 35 Os chefes zombavam de Jesus dizendo: “A outros Ele salvou. Salve-Se a Si mesmo, se, de fato, é o Cristo de Deus, o Escolhido!” 36 Os soldados também caçoavam d’Ele; aproximavam-se, ofereciam-Lhe vinagre, 37 e diziam: “Se és o Rei dos judeus, salva-Te a Ti mesmo!” 38 Acima d’Ele havia um letreiro: “Este é o Rei dos judeus”. 39 Um dos malfeitores crucificados O insultava, dizendo: “Tu não és o Cristo? Salva-Te a Ti mesmo e a nós!” 40 Mas o outro o repreendeu, dizendo: “Nem sequer temes a Deus, tu que sofres a mesma condenação? 41 Para nós, é justo, porque estamos recebendo o que merecemos; mas Ele não fez nada de mal”. 42 E acrescentou: “Jesus, lembra-Te de mim, quando entrares no teu reinado”. 43 Jesus lhe respondeu: “Em verdade Eu te digo: ainda hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 35-43).
I – À procura da paz
A Encíclica Quas primas de Pio XI, publicada no ano de 1925, goza até nossos dias de merecida fama, e a anual celebração da Solenidade de Cristo Rei perpetua a eficácia de seus benéficos efeitos. Ante o laicismo que procurava impor-se já naquela época, o Pontífice proclamou com galhardia a realeza do Príncipe da Paz. Contudo, seus sábios ensinamentos não foram ouvidos, e quase um século depois a humanidade encontra-se cada vez mais afastada do divino cetro de Jesus Cristo, negando-Lhe as prerrogativas de Soberano no âmbito temporal, e inclusive no religioso, com graves consequências para a vida moral, familiar, social e até econômica.
Contexto dramático, que perdura
Do ano em que a encíclica veio à luz até hoje, a humanidade atravessou a Segunda Guerra Mundial, seguida da tensão provocada pela Guerra Fria e por centenas de outros conflitos bélicos ou tragédias, que desembocam no pavor de uma hecatombe atômica, percebida pela generalidade dos povos como o máximo perigo neste triste e sombrio século XXI.
Em Fátima, Nossa Senhora havia prometido aos três pastorinhos o fim da Grande Guerra e a paz. Esta, porém, só se conservaria com a condição de que os homens se convertessem. De outro modo, dizia a Bela Senhora, viria um conflito de proporções ainda mais devastadoras. E assim foi. Em função dessa terrível profecia, que se cumpriu com exatidão, torna-se patente a existência da Providência Divina a guiar a pequena e a grande História, dando sentido ao encadeamento existente entre a fidelidade ou defecção dos homens em relação a Deus e os dramas que marcam os acontecimentos.
Cristo, única solução para os males da humanidade
Por isso Pio XI, a fim de evitar as calamidades e morticínios que seguiriam a publicação de sua célebre encíclica – e quase como se os previsse –, afirmou estar persuadido “de não haver meio mais eficaz para restabelecer e fortalecer a paz do que procurar a restauração do reinado de Jesus Cristo”.1 O Papa considerava que o acúmulo de males sobre a terra devia-se ao fato de a maioria dos homens ter se distanciado de Nosso Senhor e de sua Santa Lei. Dessa sorte, nunca resplandeceria a paz verdadeira entre os povos, enquanto os indivíduos e as nações negassem e rejeitassem o império do Salvador.
O Pontífice indicava também as felizes consequências do reconhecimento desse império: “Se os homens, pública e privadamente, reconhecem a régia potestade do Cristo, necessariamente virão sobre toda a sociedade civil extraordinários benefícios, como a justa liberdade, a tranquilidade e a disciplina, paz e concórdia. […] Oh, que felicidade poderíamos gozar se os indivíduos, as famílias e as sociedades se deixassem governar por Cristo!”2
Desejoso de imprimir no coração dos fiéis os preciosos ensinamentos plasmados na encíclica, o Santo Padre decidiu instituir a festa litúrgica de Cristo Rei. A isso o moveram motivos de alto tino pastoral:
“Para instruir o povo nas coisas da Fé e atraí-lo por meio delas aos íntimos gozos do espírito, muito maior eficácia têm as festas anuais dos sagrados mistérios que quaisquer ensinamentos, por autorizados que sejam, do Magistério Eclesiástico. Estes muitas vezes são conhecidos apenas por uns poucos fiéis, mais instruídos que os demais; aquelas impressionam e instruem a todos os fiéis. Estes, por assim dizer, falam uma só vez; aquelas, a cada ano e perpetuamente, penetram nas inteligências, nos corações, no homem inteiro. Ademais, como o homem é composto de corpo e alma, as solenidades exteriores dos dias festivos de tal maneira o comoverão necessariamente que ele, pela variedade e beleza dos atos litúrgicos, compreenderá melhor as divinas doutrinas e, convertendo-as em seu próprio jugo e sangue, progredirá muito mais na vida espiritual”.3
Festa contrarrevolucionária por excelência
A Solenidade de Cristo Rei é, quiçá, a festa litúrgica que mais contrasta os desvios do mundo moderno, reunidos com acerto, por Dr. Plinio Corrêa de Oliveira, no vocábulo Revolução. Ele explica que, embora cada revolução singularmente considerada seja “um movimento que visa destruir um poder ou uma ordem legítima e pôr em seu lugar um estado de coisas (intencionalmente não queremos dizer ordem de coisas) ou um poder ilegítimo”,4 o mal que aflige os tempos atuais não é uma sucessão incoerente de revoluções, mas sim a Revolução por antonomásia.
Trata-se de uma Revolução multissecular, de cariz gnóstico e igualitário, que pretende destruir a ordem da Cristandade medieval, a qual foi “a realização, nas circunstâncias inerentes aos tempos e aos lugares, da única ordem verdadeira entre os homens, ou seja, a Civilização Cristã”.5 E a solenidade de hoje, que encerra o Ano Litúrgico, possui uma força incalculável para promover a sadia, convicta e entusiasta reação católica contra os sofismas revolucionários. Ela é, em síntese, uma festa contrarrevolucionária em toda a força do termo pois, “se a Revolução é a desordem, a Contra-Revolução é a restauração da ordem. E por ordem entendemos a paz de Cristo no Reino de Cristo”.6
II – Rei sumamente misericordioso
O Evangelho selecionado pela Liturgia é a expressão mais pungente e misericordiosa do reinado de Cristo, Cordeiro Imolado, que em sua piedade suscita a fé do malfeitor e a premeia, prometendo-lhe o Paraíso ao ultrapassar os umbrais da morte.
A passagem de São Lucas que nos ocupa é de uma beleza inefável. Pregado à Cruz, Nosso Senhor continua a fazer o bem, o sumo bem, que consiste em levar um pecador ao Céu. Nenhum dos milagres realizados por Ele anteriormente, mesmo o de ressuscitar os mortos, manifesta tanto o seu divino poder quanto a conversão e salvação do bom ladrão, assim chamado não em função de seus furtos, mas do seu arrependimento no momento decisivo.
Jesus resplandece, em meio às chagas e aos escárnios, como Rei. Sim, Rei daquele Reino que não é deste mundo. Mas também Rei em meio aos esbirros e ao Sinédrio que blasfema, pois a malícia mais encarniçada dos homens não Lhe tolhe a liberdade de premiar uma ovelha perdida que in extremis abre seu coração pobre e imundo ao Bom Pastor, sendo por Ele acolhida num amplexo de compaixão, amor e ternura que durará por toda a eternidade.
Corações de aço
Naquele tempo: 35 Os chefes zombavam de Jesus dizendo: “A outros Ele salvou. Salve-Se a Si mesmo, se, de fato, é o Cristo de Deus, o Escolhido!”
Os membros do Sinédrio, chefes do povo, mostram-se escandalosamente “cegos e guias de cegos” (Mt 15, 14) neste passo. Após terem presenciado uma torrente de milagres dos mais diversos gêneros, como curas, multiplicação dos alimentos, exorcismos e até ressurreições, ousam eles dar morte ao Autor da vida, para usar a expressão de São Pedro (cf. At 3, 15). Fica-se pasmo diante de tanta cegueira voluntária, fruto do ódio satânico contra o Messias. Agindo assim, encarnam eles à perfeição o papel dos vinhateiros assassinos mencionados por Jesus em uma de suas parábolas (cf. Mt 21, 33-46), os quais, matando o herdeiro do proprietário da vinha, pretendiam apossar-se de um patrimônio que não lhes pertencia.
Até que ponto os saduceus e os fariseus, que compunham esse senado das trevas de Jerusalém, tinham consciência do mal que praticavam? Será que a ebriedade do ódio lhes havia eclipsado por completo a razão, a ponto de negarem tantas evidências que apontavam a messianidade e divindade de Jesus? É difícil responder.
Contudo, o temor por eles manifestado a respeito da Ressurreição do Senhor e o fato de terem subornado os guardas a fim de lançar entre o povo falsas notícias que desmentissem a glória de Jesus redivivo, mostram até que extremo quiseram levar a própria obstinação. Cabe perguntar se um homem, sem a ajuda misteriosa de algum anjo caído, é capaz de chegar tão longe. Não mereceram eles o apelativo que o Redentor lhes deu quando disse: “Tendes como pai o demônio” (Jo 8, 44)?
Suportou no próprio peito o ódio do mundo inteiro
36 Os soldados também caçoavam d’Ele; aproximavam-se, ofereciam-Lhe vinagre, 37 e diziam: “Se és o Rei dos judeus, salva-Te a Ti mesmo!”
Os soldados ali presentes representam a gentilidade, embora alguns pudessem ser originários da Palestina. Também eles burlam de Nosso Senhor por causa do mau exemplo dado pelos judeus, razão pela qual se pode afirmar que Jesus suportou no próprio peito o ódio do mundo inteiro. Mas esse sacrifício teve seus frutos.
Com efeito, o pecado dos romanos foi menor que o do povo eleito, assim como o foi o de Pilatos em relação ao do Sinédrio ao condenar o Justo. Quiçá por esse motivo, apesar de terem maltratado o Senhor, já ao pé da Cruz eles receberam as primeiras graças na linha de uma futura conversão, como mostra a exclamação do centurião ao ver a grandeza com que o Redentor expirava: “Verdadeiramente, este Homem era Filho de Deus!” (Mt 27, 54). Abria-se desse modo, em meio às nuvens da tragédia, uma fenda para que a luz da fé filtrasse sobre os pagãos, fazendo pressagiar a conversão do império dos césares.
Situação análoga verifica-se hoje quando vemos os filhos da outrora Civilização Cristã – os mais beneficiados pelos frutos do Preciosíssimo Sangue derramado na Cruz – darem as costas a Deus com uma obstinação e uma maldade inauditas. Outros povos, porém, embora sigam os maus exemplos dos que os antecederam com o sinal da fé, parecem mais passíveis de conversões fulgurantes, as quais certamente conferirão ao reinado de Cristo um renovado esplendor.
Um Rei crucificado
38 Acima d’Ele havia um letreiro: “Este é o Rei dos judeus”.
O titulus crucis, que hoje se venera na Basílica da Santa Cruz de Jerusalém, em Roma, possui um sentido profundo. Apesar das reiteradas instâncias dos sinedritas para que o mudasse, Pilatos deixou-o tal como havia saído de seus lábios: “Jesus de Nazaré, Rei dos judeus” (Jo 19, 19). É célebre sua frase naquela ocasião – “O que escrevi, escrevi” (Jo 19, 22) –, a qual manifesta sua determinação de não pôr em dúvida o que fizera constar naquela paradigmática tabuinha.
Tratava-se da máxima autoridade civil da época na Palestina, considerada legítima pelo próprio Cristo, que afirmava a realeza do Filho de Deus. De certa forma, essa inscrição feita por Pilatos proclamou a verdade e possui até nossos dias conotações proféticas de altíssimo valor simbólico.
O bom e o mau ladrão
39 Um dos malfeitores crucificados O insultava, dizendo: “Tu não és o Cristo? Salva-Te a Ti mesmo e a nós!” 40 Mas o outro o repreendeu, dizendo: “Nem sequer temes a Deus, tu que sofres a mesma condenação? 41 Para nós, é justo, porque estamos recebendo o que merecemos; mas Ele não fez nada de mal”.
Para maior humilhação de Nosso Senhor, O crucificaram em meio a dois malfeitores. Todavia, essa tentativa diabólica de enxovalhar o Redentor tornou-se um de seus maiores títulos de glória pois, ao resgatar o bom ladrão – de nome Dimas, segundo uma tradição respeitável –, Ele completou da forma mais esplêndida sua missão de salvar os pecadores!
Chama a atenção o contraste entre o mau e o bom ladrão. O primeiro, além de ser delinquente, havia deformado sua consciência a ponto de não sentir vergonha pelos próprios crimes, tornando-se um aproveitador vil e utilitário. Daí o fato de somar-se aos insultos dos sinedritas e dos soldados, com o objetivo de mover o orgulho – se tal vício pudesse existir em quem não conhecia o pecado – da Divina Vítima e levá-La a operar o milagre. O olhar interior desse miserável estava tão obscurecido que ele era incapaz de perceber a inocência, a retidão e a integridade que brilhavam no Cordeiro Imolado.
O pecado e o egoísmo tornam o homem estulto e transviado. No caso do mau ladrão, o resultado foi terrível: Jesus guardou silêncio. Sim, Aquele que poderia salvá-lo o ignora e abandona à própria malícia. Qual terá sido sua sorte eterna? O juízo pertence só a Deus, mas a narrativa de São Lucas dá azo a razoavelmente recear a pior das hipóteses.
O bom ladrão, entretanto, reagiu em modo diverso. Segundo São João Crisóstomo, ele “ensinava os presentes, meditando sobre as palavras com que o outro increpava o Salvador”.7 A provocação do mau ladrão foi ocasião para Dimas externar os sentimentos e reflexões que naquela lenta agonia da cruz afloravam em seu espírito. No silêncio do Calvário e graças às orações da bondosa Corredentora, ele caiu em si, arrependeu-se com sinceridade e foi elevado de modo surpreendente a um patamar altíssimo na vida espiritual.
Com muito tino, São Gregório Magno afirma sobre ele: “Teve fé, pois acreditou que reinaria com Deus, a quem via morrer ao seu lado; teve esperança, pois pediu para entrar em seu Reino […]; e na hora da morte teve viva caridade, pois repreendeu seu companheiro de latrocínio, o qual padecia pela mesma culpa”.8
Um dos mais belos atos de fé feitos na História
42 E acrescentou: “Jesus, lembra-Te de mim, quando entrares no teu reinado”.
Como é meritório crer na luz quando reinam as trevas da noite! Da mesma forma, com quanta beleza refulge a fé do bom ladrão, que viu a Divina Vítima massacrada pelos pecadores, e acreditou em seu reinado que atravessa os umbrais da morte e penetra na vida indefectível. Ante a humilhação da Cruz, os próprios Apóstolos não tiveram sequer uma centelha dessa fé rutilante, feita de certeza na vitória de Cristo no momento em que Ele parecia arrastado pelo aluvião do mais pungente fracasso. Só mesmo as orações da melhor das mães puderam obter que a força do Sangue Preciosíssimo do Filho pousasse sobre aquele coração arrependido, dando-lhe uma convicção tão sólida a respeito do Céu.
O drama da morte, bem aceita enquanto merecida punição pelas transgressões cometidas, foi o instrumento utilizado por Deus para dar a vida eterna a uma alma pecadora. Nesse pormenor se percebe com clareza meridiana o quanto contribuem para nossa salvação o sofrimento e a dor!
A primeira das canonizações
43 Jesus lhe respondeu: “Em verdade Eu te digo: ainda hoje estarás comigo no Paraíso”.
O bom ladrão se apresenta como signo da radiante vitória obtida pelo holocausto do Senhor. Temos diante dos olhos o primeiro pecador a ser levado aos Céus, conduzido pelas próprias mãos transpassadas de Jesus. Atrás dele seguiriam centenas de milhares, entre os quais nos encontraremos se nos deixarmos envolver, perdoar e soerguer pela divina misericórdia.
Santo Ambrósio sublinha a generosidade de Cristo ao conceder o prêmio sempiterno a quem rogava simplesmente não ser esquecido: “O Senhor sempre dá mais do que se Lhe pede. [O ladrão] pedia que o Senhor Se lembrasse dele quando estivesse em seu Reino, mas o Senhor lhe respondeu: ‘Em verdade, em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso’. É que a verdadeira vida consiste em estar com Cristo pois, onde está Cristo, ali está o Reino”.9
Essa generosidade do Salvador reluziu em todo o seu alcance simbólico no Calvário, como explica São João Crisóstomo: “O diabo expulsou Adão [do Paraíso]; Cristo introduziu o ladrão. […] Há ainda outro milagre maior a considerar: Ele não Se contentou em introduzir um ladrão no Paraíso, mas o fez diante da terra inteira e dos Apóstolos, a fim de que nenhum dos que viessem depois desesperasse de ali entrar ou renunciasse a esperar a própria salvação, ao ver um homem carregado de incontáveis pecados ser admitido no palácio real. […]. Por uma simples palavra, um só ato de fé, ele subiu ao Paraíso diante dos Apóstolos, para que tu aprendas que não foi tanto a nobreza de seus sentimentos que o obteve, mas o amor do Mestre pelos homens que fez tudo. […] Vê a rapidez: da cruz ao Céu, da condenação à salvação”.10
O patíbulo da Cruz se transforma no trono da majestade divina, crucificada e dadivosa. Como havia anunciado, desse trono Nosso Senhor atrai a Si a todos os homens que tem a coragem de esperar numa vida para além dos curtos limites da existência passageira sobre a terra, a qual termina com a morte e o desfazimento do nosso corpo. Em Jesus sacrificado, o coração humano encontra a resposta ao seu desejo de felicidade eterna.
III – Ele há de reinar!
No Pai-Nosso, Jesus nos ensinou a rezar do modo mais excelente. E entre as súplicas nele contidas, duas adquirem particular brilho em função da solenidade de hoje: “Venha a nós o vosso Reino” e “Seja feita a vossa vontade assim na terra como no Céu”.
É, portanto, missão de todo batizado suplicar ao Pai das luzes a instauração do reinado de Cristo, de maneira a transformar nosso mundo numa imagem, a mais perfeita possível, dos esplendores celestes.
Esse Reino é querido, sobretudo, pelo próprio Jesus Cristo
Como cumprir essa missão tão nobre em meio a uma sociedade laicista, tecnificada e afastada de Deus? Dir-se-ia ser algo simplesmente quimérico ou quixotesco… Existe ainda a possibilidade de instaurar uma ordem de coisas semelhante à que reinou nos luminosos séculos da Alta Idade Média, com as devidas adaptações de tempo e lugar? Tem sentido sonhar com catedrais sacrais e grandiosas, com castelos imponentes e elegantes, ou com uma sociedade permeada pela Fé Católica?
A resposta é um categórico sim.
Antes de tudo, porque Deus preside o curso da História e nele intervém de forma decisiva em momentos escolhidos desde toda a eternidade. Assim no-lo mostra, entre outros exemplos, a parábola de Nosso Senhor referente ao príncipe que partiu para uma longa viagem a fim de ser coroado rei (cf. Lc 19, 12-27). Seus detratores não lograram impedir tal intento, de sorte que ele pôde retornar investido da dignidade régia. Chegado a seus domínios, recebeu a prestação de contas dos servos aos quais havia encarregado a administração de seus bens. Após ter premiado uns e punido outro, o rei mandou executar em sua presença seus inimigos.
Essa parábola profética cumpriu-se de certa forma na destruição de Jerusalém, anunciada explicitamente pelo Salvador em outras passagens do Evangelho. Mas ela não se cumprirá sempre que haja, ao longo da História, uma tentativa de frustrar ou impedir que Jesus reine?
Para responder a essa pergunta convém lembrar a solene declaração feita pelo Sagrado Coração a Santa Margarida Maria Alacoque: “Nada temas. Eu reinarei apesar de meus inimigos e de todos aqueles que a isso queiram se opor”.11 Essa promessa marcou a fundo o espírito da Santa, a ponto de ela a repetir com leves matizações numa carta dirigida à sua antiga superiora, Madre de Saumaise: “Continuai corajosamente o que haveis encetado para a sua glória, com vistas à efetivação de seu reinado. O Sagrado Coração reinará, a despeito de Satanás e de todos aqueles que ele suscita para se Lhe opor”.12
Em que consistirá essa vitória de Cristo Rei prometida em Paray-le-Monial? Decerto será, antes de tudo, o triunfo de Jesus no coração dos membros do clero. É impossível reformar o mundo sem uma renovação da disciplina eclesiástica. Todavia, o império do Redentor não se restringirá a isso.
As metas de Deus são mais amplas, pois Ele é o Senhor do universo e deseja que todas as suas criaturas Lhe estejam suavemente submetidas. Por isso, nas mesmas revelações a Santa Margarida Maria, o Sagrado Coração de Jesus mandou transmitir a seguinte mensagem ao Rei Luís XIV, que naquela época reinava na França: “Fazei saber ao primogênito de meu Sagrado Coração […] que desejo triunfar sobre os dele e, por seu intermédio, sobre todos os grandes da terra. Quero reinar em seu palácio, ser pintado em seus estandartes e gravado em suas armas, […] para fazê-lo triunfar sobre todos os inimigos da Santa Igreja”.13
Não se sabe ao certo se o monarca teve conhecimento dessa mensagem, embora seja bastante provável que sim. O fato é que o apelo paterno, afetuoso e delicado do Rei dos reis não foi posto em prática, com as consequências dramáticas que isto trouxe com o decorrer do tempo, especialmente no trágico e sangrento fim do Ancien Régime sob a lâmina implacável da Revolução Francesa.
Contudo, a mensagem a Luís XIV nos abre o horizonte a respeito das intenções do Coração de Jesus. Ele quer estender seu Reino de bondade, retidão e pureza à sociedade civil, à cultura, à arte, aos modos de ser e de se comportar, permitindo que todos os âmbitos da atividade humana O tenham como Cabeça. Só desse modo será feita a vontade de Deus assim na terra como no Céu!
Aguardemos a vinda do Reino de Jesus, por meio de Maria!
Como eco fidelíssimo do Senhor dos senhores, nós proclamamos cheios de fé que o mundo caminha rumo ao triunfo espiritual de Cristo, que se irradiará nos corações dos homens e imperará sobre as instituições, os costumes, as modas, os gostos, as sociedades e as famílias. Teremos então cumprida a outra súplica do Pai-Nosso: “Venha a nós o vosso Reino”.
Essa vitória, porém, se efetivará por intermédio de Maria Santíssima, associada intimamente ao mistério da salvação como Corredentora e Mãe da nova humanidade resgatada pelo Sangue do Cordeiro. Também Ela prometeu em Fátima que seu Imaculado Coração triunfaria, junto ao de Jesus, com o qual forma um só Coração.
Os meios pelos quais se dará esse triunfo nos são desconhecidos em seus pormenores. Sabemos apenas que, à maneira do bom ladrão, a humanidade deve ser sacudida a ponto de reconhecer, humilhada, sua prevaricação e sua culpa. Então, entre as agruras da penitência, será ela alçada a uma altura esplêndida por uma nova Pentecostes marial, pois sem a graça tal conversão não se operará. São necessárias, na verdade, torrentes irresistíveis de graça.
Cabe a nós apressar esse momento com nossa oração confiante, luta incansável e generoso espírito de sacrifício. ◊
Notas
1 PIO XI. Quas primas, n.1.
2 Idem, n.17; 19.
3 Idem, n.20.
4 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Revolução e Contra-Revolução. 5.ed. São Paulo: Retornarei, 2002, p.57-58.
5 Idem, p.59.
6 Idem, p.97.
7 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea. In Lucam, c.XXIII, v.38-43.
8 SÃO GREGÓRIO MAGNO. Moralium Libri. L.XVIII, c.40, n.64: PL 76, 74.
9 SANTO AMBRÓSIO. Tratado sobre el Evangelio de San Lucas. L.X, n.121. In: Obras. Madrid: BAC, 1966, p.605-606.
10 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO. Sermons sur la Genèse. Sermon VII, n.4: SC 433, 327-329.
11 HAMON, SJ, Auguste. Sainte Marguerite-Marie. Sa vie intime. 3.ed. Paris: Gabriel Beauchesne, 1931, p.198.
12 Idem, p.219.
13 Idem, p.221.