Essas bem-aventuradas crianças, as primeiras a participar dos sofrimentos de Cristo, estariam também entre as primeiras a se beneficiar dos méritos infinitos de sua gloriosa Paixão e a reinar junto d’Ele na Pátria celeste.
Sentindo estar às portas da morte, o venerável ancião mandou chamar seus doze filhos para abençoá-los antes de partir. Ao primogênito Rubem, devido à sua má conduta, retirou a primazia, bem como aos dois seguintes, Simeão e Levi, pela crueldade de que haviam dado mostras (cf. Gn 49, 3-7). Coube a Judá, o quarto filho, receber do pai a autoridade sobre os irmãos e o privilégio de ver surgir de sua linhagem o Messias, Aquele a propósito de quem Deus havia prometido a Abraão: “Em tua descendência serão abençoadas todas as nações da terra” (Gn 22, 18). Assim, dezesseis séculos antes do nascimento de Jesus em Belém, o patriarca Jacó profetizava a vinda do Redentor.
O momento da chegada desse Rei esperado, o velho patriarca o definiu com estas palavras: “Não se afastará o cetro de Judá, nem o bastão de comando dentre seus pés, até que venha Aquele a quem pertencem e a quem devem obediência as nações” (Gn 49, 10).
Mais tarde a estirpe de Judá, na pessoa de Davi, governou de fato sobre as demais tribos, ocupando o trono em Jerusalém. Embora, devido à infidelidade de seu sucessor Salomão, Deus tenha retirado à descendência de Davi o governo de dez tribos — permitindo que fosse fundado o “reino do norte” tendo por rei Jeroboão, um simples servo — nunca faltou a Davi “uma lâmpada” (I Re 11, 36), conforme lhe fora prometido: “Não retirarei dele a minha misericórdia, como a retirei de Saul, a quem expulsei de diante de minha face. E a tua casa será estável, e o teu reino se perpetuará diante do teu rosto, e o teu trono será firme para sempre” (II Sm 7, 15-16). Assim, até a entrada de Nabucodonosor, rei da Babilônia, que devastou a cidade e levou a população para o cativeiro, houve sempre um filho de Davi, da linhagem bendita de Judá, sentado no legítimo trono de seu pai.
Os filhos de Levi governam o Povo Eleito
Quando, passados setenta anos deste doloroso exílio, o grande Ciro da Pérsia conquistou a Babilônia, emitiu um decreto autorizando a volta dos israelitas para sua pátria (cf. Es 1, 2-4). Muitos destes, então, dentre os quais um numeroso contingente de sacerdotes e levitas, empreenderam a viagem de retorno a Jerusalém (cf. Es 2, 1-67).
A influência preponderante exercida pela casta sacerdotal durante esse novo período deu origem a um clima de crescente religiosidade, tornando-se assim Israel um pequeno estado cada vez mais teocrático. 1 Com efeito, apesar de estar o país ainda sujeito a soberanos estrangeiros — primeiro os persas, depois os gregos — os verdadeiros detentores do poder passaram a ser os sumos sacerdotes, assistidos por um conselho de anciãos, constituído por uma aristocracia que, por sua vez, era sacerdotal em sua maioria.
No século II a.C, quando subiu ao trono da Síria Antíoco IV Epífanes — um “homem vil” (Dn 11, 21), verdadeira “raiz de pecado” (I Mac 1, 11) —, desencadeou-se uma furiosa perseguição contra a religião de Israel. Insurgiram-se contra o selêucida os Macabeus, de linhagem sacerdotal, obtendo grandes vitórias e adquirindo para a nação judaica um poder e uma glória comparáveis aos dos tempos antigos. Muitos israelitas julgaram ver nesse triunfo um sinal claro da mão divina, transferindo a realeza davídica para a tribo de Levi. Assim, os descendentes desses heróis, chamados Hasmoneus, passaram a ocupar simultaneamente a cátedra do supremo pontificado e o trono real.
Se, muitos séculos antes, fora retirado o cetro à tribo de Judá, Israel continuava, entretanto, a ser regido por filhos do sangue de Jacó, sucessores do Patriarca Abraão, herdeiros das promessas de Deus.
Herodes: o rei sanguinário
As circunstâncias mudaram quando, alegando as lutas fratricidas nascidas no próprio seio da família dos Hasmoneus, Roma interveio pelas armas e o imperador Marco Antônio outorgou o título de rei dos judeus a um estrangeiro, detestado pela nação por pertencer ao povo idumeu, inimigo irreconciliável de Israel: Herodes.
Não tardou o novo monarca em demonstrar serem todas as suas ações e atos administrativos movidos por orgulhosa cobiça. O ódio e o desprezo de seus súditos, que sentia pesar sobre si, somados à natural insegurança de quem é desmedidamente ambicioso, faziam-no temer, em qualquer pessoa que se sobressaísse por suas qualidades, ou conquistasse a simpatia do povo, um adversário de seu poder.
Durante os anos de seu longo reinado, ele desembaraçou-se sem escrúpulos de todos os conspiradores ou daqueles que simplesmente deitavam sombra sobre sua pessoa. Um a um, os parentes mais próximos — entre os quais a esposa Mariamne e três filhos — e grande número de aristocratas da Judeia foram caindo sob os golpes de sua crueldade. Nada constituía obstáculo para essa vontade feroz, cheia de arrogância e sedenta de domínio.
O tirano treme diante de uma Criança
Qual não foi o sobressalto desse tirano sanguinário quando, já velho, amargurado pelo peso dos crimes sem conta que cometera, viu chegar a Jerusalém uma suntuosa caravana vinda do Oriente e três magos que perguntavam pelo “rei dos judeus que acabava de nascer” (Mt 2, 2)! Imediatamente a inquietude e a perturbação se apoderaram de seu coração: julgou ameaçada a estabilidade de seu trono.
Essa agitação bem traduzia o quanto Deus estava ausente de suas cogitações e perspectivas, como comenta, com muito acerto, um piedoso autor: “A alma reta e sincera jamais se perturba, porque possui a Deus. Onde Deus habita, não há perturbação possível, diz o Espírito Santo. ‘Non in commotione Dominus’ (I Re 19, 11). Se uma alma chega a experimentar alguma perturbação, é porque perdeu a Deus e, com Ele, a retidão e a candura. Que Herodes se perturbasse, não deve nos surpreender; afinal, ele era um usurpador e, ao ouvir que um rei dos judeus acabava de nascer, certamente temeu vir a perder tanto o trono quanto a coroa”. 2
Entretanto, usando da astúcia característica dos “filhos do século” (Lc 16, 8), Herodes inquiriu dos sacerdotes e dos mestres das Escrituras qual o lugar apontado pelos profetas como berço do Messias. Uma vez obtida a resposta, tomou a resolução de matar o recém-nascido. Fingindo grande piedade, mandou chamar os magos a fim de indicar-lhes o caminho de Belém, mas, na realidade, almejava servir-se deles para a realização de suas perversas intenções.
Cego de orgulho, aquele iníquo monarca acreditou ter poder suficiente para opor-se ao plano divino e mudar, segundo seus caprichos, aquilo que Deus determinara desde toda a eternidade e anunciara pela boca de seus mensageiros!
A esse propósito comenta São João Crisóstomo: “Tal é a maldade, pela sua própria natureza: contradiz-se a si mesma e empreende aquilo que é impossível. Considerai a insensatez de Herodes. Se ele acreditava na profecia e considerava inevitável sua realização, era evidente estar ele tentando algo irrealizável; se não acreditava nela nem esperava que se cumprisse o anunciado, não tinha motivo para temer e se espantar, nem para pôr armadilhas a ninguém. Em nenhuma das duas hipóteses havia necessidade de mentir”. 3
Duas discretas intervenções da Providência divina — um sonho enviado para alertar os magos e a aparição de um anjo a São José — bastaram para lançar por terra as hábeis maquinações do tirano. Este, porém, durante vários dias esperou impaciente e receoso o retorno daqueles nobres estrangeiros; ao perceber que fora enganado, deu largas à sua cólera e deliberou perpetrar o crime mais horrendo de sua vida: para que o pequeno Rei dos judeus não escapasse à sua vingança, deveriam perecer todos os infantes de Belém e das redondezas.
Martírio dos inocentes
Grande foi a consternação na cidade de Belém. Logo após ter alcançado a honra de receber o Esperado das nações, suas casas se encheram de cadáveres e pelas ruas ecoaram os gritos de dor das mães, misturados aos gemidos das crianças. Cena atroz e pungente: ver os pequeninos arrancados dos braços maternos e transpassados pelas espadas dos mercenários.
“Por que Cristo agiu assim?”, pergunta-se São Pedro Crisólogo. “Por que abandonou àqueles que Ele sabia seriam procurados por sua causa e por sua causa haveriam de morrer? Ele nascera rei e rei do céu, porque abandonou os que eram inocentes? Por que desdenhou um exército de sua mesma idade? Por que abandonou desse modo àqueles que, como Ele, descansavam num berço, e o inimigo, que procurava só ao rei, causou dano a todos os soldados?”. 4
E o próprio santo responde: “Irmãos, Cristo não abandonou seus soldados, mas deu-lhes melhor sorte, concedeu-lhes triunfar antes de viver, fê-los alcançar a vitória sem luta alguma, concedeu-lhes as coroas antes mesmo de seus membros estarem desenvolvidos, quis, por seu poder, que passassem por cima dos vícios, que possuíssem o Céu antes que a terra”. 5
Conforme fora profetizado por Davi, os soluços desses pequenos mártires ressoavam na presença do Altíssimo como cânticos de glória e, ao mesmo tempo, censuravam o rei ímpio que os condenara: “O perfeito louvor vos é dado pelos lábios dos mais pequeninos, de crianças que a mãe amamenta; eis a força que opondes aos maus, reduzindo o inimigo ao silêncio” (Sl 8, 3). Seu sangue subia ao Céu como sacrifício puro e agradável de “cordeiros sem mancha” (cf. Ex 12, 2-5) oferecido em honra do Divino Infante recém-nascido. Os meninos que brincavam aos pés de suas mães deixaram seus inocentes jogos para irem brincar aos pés do trono de Deus!
Com sua característica eloquência, assim comenta Bossuet: “Bem-aventuradas crianças, cuja vida foi imolada a fim de conservar a vida de vosso Salvador. Se vossas mães tivessem conhecido esse mistério, em lugar de lamentações e de lágrimas, só se ouviriam bênçãos e louvores”. 6
Desassossego de Herodes e triunfo das crianças
Chama a atenção o antagonismo entre o estado de espírito de Herodes e o dos Santos Inocentes: de um lado encontramos a figura de um homem apegado ao poder, cioso de sua autoridade, julgando todos os fatos sob o prisma de medíocres interesses; no extremo oposto, crianças inocentes, confiantes e admirativas, incapazes de fazer algum mal.
Depois do seu hediondo crime, Herodes experimenta em seu interior a tristeza e o desassossego. Nem mesmo após receber a notícia de terem sido executadas suas ordens, desfrutará ele de alguma tranquilidade, pois, à aflição constante de perder o trono, somou-se o remorso do infanticídio cometido a lhe corroer a alma como, em breve, os vermes corroeriam suas carnes.
De maneira bem diversa, os meninos viram-se elevados à categoria de irmãos de Cristo e príncipes de seu Reino. Ele os amava e, por isso, os colheu como um botão apenas desabrochando para a vida, para levá-los à visão beatífica quando abrisse, triunfante, as portas do Céu.
Por que, pergunta-se São Bernardo, “haverá quem duvide das coroas dos Inocentes?”. E acrescenta: “É menor, por acaso, a piedade de Cristo que a impiedade de Herodes, para crer que este pudesse entregar alguns inocentes à morte e Cristo não pudesse coroar aqueles que foram mortos por Ele? […] Estes são, verdadeiramente teus mártires, ó Deus, para que resplandeça com maior evidência o privilégio de tua graça naqueles em quem nem o homem nem o anjo descobrem mérito algum”. 7
A infância, modelo de inocência
O Verbo Se fez carne e veio ao mundo para operar a Redenção e, a partir dela, publicar na terra “o ano da graça do Senhor” (Is 61, 2), um novo regime, baseado na caridade e na misericórdia, pelo qual o homem passou da condição de escravo para a categoria de filho de Deus, tendo por regra de vida a procura da perfeição, à imagem do Pai Celeste (cf. Mt 5, 48).
Para sermos seus discípulos, não nos manda Jesus adquirirmos uma ciência erudita, nem mesmo exige a prática de penitências e austeridades por demais pesadas. Ele propõe, pelo contrário, um modelo acessível a todos: “Em verdade vos digo, se não vos converterdes e vos tornardes como crianças, não entrareis no Reino dos Céus” (Mt 18, 3).
Afirma o Papa São Leão I, num de seus sermões: “Cristo ama a infância, que assumiu em primeiro lugar, tanto na alma quanto no corpo. Cristo ama a infância, mestra da humildade, regra da inocência, modelo de mansidão. Cristo ama a infância, para a qual orienta o procedimento dos adultos e reconduz a idade dos anciãos. Ele atrai ao exemplo dela aqueles que eleva ao reino eterno”. 8
Para sermos partícipes de seu Reino e convivas do banquete eterno, somos chamados a deixar-nos conduzir pela mão de Deus como crianças dóceis e confiantes, sem opormos resistência à sua santa vontade.
Jesus traz, a cada Natal, o convite para a restauração da inocência e está pronto a restabelecê-la no coração de quem queira beneficiar-se de sua graça, já que, por nós mesmos, não temos forças suficientes para nos libertar de nossos pecados.
Ele mesmo está à nossa espera e dar-Se-nos-á em recompensa na hora de nossa morte, tornando-nos herdeiros da felicidade sem fim: “Deixai vir a Mim as criancinhas, porque delas é o Reino de Deus” (Mt 19, 14). ◊
Notas
1 Cf. ROBERT, André; TRICOT, A. Initiation biblique. 2.ed. Paris: Desclée, 1948, p.679.
2 D’HAUTERIVE, P. La suma del predicador. Paris: Louis Vivès, 1888, t.II, p.104.
3 SAN JUAN CRISÓSTOMO. Homilías sobre el Evangelio de San Mateo. In: Obras. 2.ed. Madrid: BAC, 2007, t.II, p.131.
4 SAN PEDRO CRISÓLOGO, apud ODEN, Thomas (Org.). La Biblia comentada por los Padres de la Iglesia. Madrid: Ciudad Nueva, 2004, p.78.
5 Idem, ibidem.
6 BOSSUET, Jacques Bénigne. Œuvres choisies de Bossuet. Versailles: J. A. Lebel, 1821, p.425.
7 SAN BERNARDO DE CLARAVAL. Obras completas. Madrid: BAC, 1953, t.I, p.292-293.
8 SAINT LÉON LE GRAND. Sermo VII in Epiphaniae Solemnitate. In: Sermons. 2.ed. Paris: Du Cerf, 1964, v.I, p.280.