Nascendo numa época corroída por misérias morais e sociais, Jesus veio renovar o mundo. E os primeiros anunciadores da boa nova foram os humildes pastores de Belém.

 

Evangelho da Missa do dia de Natal

Quando os anjos se retiraram deles para o Céu, os pastores diziam entre si: “Vamos até Belém e vejamos o que é que lá aconteceu e o que é que o Senhor nos manifestou”. 16 Foram a toda pressa, e encontraram Maria, José e o Menino deitado na manjedoura. 17 Vendo isto, contaram o que lhes tinha sido dito acerca deste Menino. 18 E todos os que ouviram, se admiraram das coisas que os pastores lhes diziam. 19 Maria conservava todas estas coisas, conferindo-as no seu coração. 20 Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham ouvido e visto, conforme lhes tinha sido dito.” (Lc 2, 15-20).

 

I – As conseqüências do pecado original

Ao lermos o Gênesis, entristece-nos a história do primeiro pecado do homem, sobretudo ao nos darmos conta de que ali surgiu a fonte da progressiva brutalidade que se espalhou sobre a Terra.

No início, o equilíbrio moral de nossos primeiros pais, Adão e Eva, era vigorosamente forte e robusto, pois eles “foram constituídos em um estado ‘de santidade original’ […] O homem estava intacto e ordenado em todo seu ser, porque livre da tríplice concupiscência que o submete aos prazeres dos sentidos, à cobiça dos bens terrenos e à auto-afirmação contra os imperativos da razão” 1 .

Para romper essa barreira e ser lançada a humanidade num maremagno de desordens, de fato, bastou um só pecado: o original.

O pecado leva à idolatria

“A partir do primeiro pecado, uma verdadeira ‘invasão’ do pecado inunda o mundo: o fratricídio cometido por Caim contra Abel; a corrupção universal em decorrência do pecado” 2 . Daí o mal ter se difundido por toda parte numa crescente voracidade, a ponto de conferir realidade à afirmação do poeta Plautus, quando este fez uma descrição do relacionamento entre os seres humanos, na sociedade de seus dias: “Homo homini lupus” 3 .

Não tardou muito o homem em substituir o verdadeiro Deus — seu companheiro de conversa e passeio das tardes no Paraíso — por deuses falsos, ídolos materiais e sem vida. Foi com fundamento que Horácio, pela voz de um desses deuses, Príapo (deus da masculinidade e da fertilidade), ridicularizou essa apostasia: “Tempos atrás, eu era o tronco de uma figueira selvagem, madeira imprestável, quando o marceneiro, hesitando sobre o que fazer de mim, se um banco ou um Príapo, preferiu que eu me tornasse o deus” 4 .

Isis e Wepwawet (séc. XIII a.C.) – Metropolitan Museum of Art, Nova York

Os homens querem se fazer adorar

A idolatria não exigiu para si somente figuras materiais, mas esse delírio se estendeu ao endeusamento de certas personalidades. Governantes inúmeros fizeram-se adorar por seus súditos. O título de Augusto, conferido pelo Senado Romano ao Imperador Otávio, tornou-se uma amostra do desequilíbrio de espírito daqueles tempos.

Digna é de nota a proskynesis (o ósculo da poeira do chão pelos súditos, diante do soberano). Um exemplo clamoroso nessa linha deu-se com Alexandre Magno que “com a ‘proskynesis’ […] exigia o reconhecimento de que oficialmente, em sua qualidade de rei […], ele não era mais um homem, mas sim, um deus. Em outras palavras, quando Alexandre exigiu que gregos e macedônios se prostrassem a seus pés e osculassem a poeira diante dele, queria que o reconhecessem como deus” 5 .

Por trás dessas práticas encontrava-se, evidentemente, a idolatria ao próprio Satanás, denunciada por São Paulo em sua primeira Epístola aos Coríntios: “Considerai Israel segundo a carne: não entram em comunhão com o altar os que comem as vítimas? Que quero afirmar com isto? Que a carne sacrificada aos ídolos ou o próprio ídolo são alguma coisa? Não! As coisas que os pagãos sacrificam, sacrificam-nas a demônios e não a Deus. E eu não quero que tenhais comunhão com os demônios. Não podeis beber ao mesmo tempo o cálice do Senhor e o cálice dos demônios. Não podeis participar ao mesmo tempo da mesa do Senhor e da mesa dos demônios” (1 Cor 10, 18-21).

Infame humilhação das mulheres

E como não poderia deixar de ser, todo esse culto era acompanhado de abjetas depravações, como por exemplo a “prostituição sagrada”, perpetrada no interior dos templos babilônicos e assírios, conforme nos relata o próprio Heródoto6 . Esse mesmo costume era comum e corrente nos templos de Afrodite e de Vênus, na Grécia, como também nos de Astarte, na Síria.

E qual a fonte “vocacional” dessas “sacerdotisas”? Basta percorrer os números 181 e 182 do conhecido “Código de Hamurábi” (aproximadamente 1793 a 1750 a.C.), tão exaltado por certos historiadores, para conhecermos a regulamentação de como deviam os pais proceder para doarem suas filhas aos templos. Ademais, relata Heródoto que, em Babilônia, todas as mulheres nativas, sem qualquer exceção, pelo menos uma vez na vida deviam passar por essa infame humilhação no templo de Melita 7 .

Esse horroroso costume era rigorosamente observado também na ilha de Chipre. O mesmo se dava na Fenícia, entre os adoradores de Baal; idem na Frígia, no culto a Cibele e Átis. E não nos esqueçamos de que se atribuíam, aos deuses do Olimpo, não poucos roubos, parricídios, raptos, incestos, infanticídios, etc.

Horrores no trato dispensado às crianças

Se injusto e brutal era o trato dispensado às mulheres, melhor não era o dado às crianças. Heródoto nos faz chegar ao conhecimento os horrores nessa matéria, como por exemplo ter sido prática legal na Grécia, permitida aos tutores das crianças, a pedofilia, que posteriormente foi copiada pela Pérsia8 .

Um famoso historiador francês assim nos narra como deveriam ser consideradas as crianças que nascessem defeituosas: “O Estado tinha o direito de não tolerar que seus cidadãos fossem disformes ou mal constituídos. Por isso ele ordenava ao pai, ao qual nascesse um filho nessa situação, que o fizesse morrer. Essa lei se encontrava nos antigos códigos de Esparta e de Roma” 9 .

Falta de amor na família

E quanto à constituição familiar “os adultérios e divórcios estavam na ordem do dia; havia mulheres que tinham se casado vinte vezes” 10 . O que evidentemente conduzia a um trato social despótico e injusto. “A falta de amor na família levou à desumanidade para com os escravos, os pobres e os trabalhadores” 11 .

As trevas do pecado invadiam todos os povos

Seria um não mais terminar se procurássemos nos aprofundar na recordação do ambiente social e moral dos últimos tempos da Antiguidade. Para formarmos uma idéia de síntese desse período histórico, basta correr os olhos sobre o primeiro capítulo da Epístola aos Romanos: “Deus os entregou a paixões degradantes […] E é assim que fazem o que não devem. Estão repletos de toda espécie de injustiça, perversidade, ambição, maldade; cheios de inveja, homicídios, discórdia, falsidade, malícia; são difamadores, maldizentes, orgulhosos, arrogantes, engenhosos para o mal, rebeldes para com os pais, estúpidos, desleais, inclementes, impiedosos” (Rm 1, 26.28-31).

Essa era a terrível noite que, como um negro manto de drama, sofrimento e dor, envolvia a humanidade daqueles tempos como um dos frutos do pecado original. Entre o próprio povo eleito, raros escapavam das influências da ambição dos fariseus hipócritas, que iam ao Templo por pura vanglória e exibicionismo, em busca de honras. As trevas do pecado envolviam todos os povos, e o domínio de Satanás se estendia por toda a Terra.

Como reparar tanto horror? Como de certa forma restabelecer a antiga ordem e reabrirem-se as portas do Céu? Nesse caos tão generalizado, onde encontrar, na face da Terra, criaturas humanas que dessem a Deus um louvor puro e inocente?

II – O Menino que reverteu a História

Entremos numa certa gruta e ali veremos um Menino adorado por sua Mãe Santíssima e São José, reunidos em família, oferecendo mais glória a Deus do que toda a humanidade idólatra, e até mesmo mais do que os próprios anjos do Céu em sua totalidade. Já em seu nascimento, numa singela manjedoura, aquele Divino Infante reparava os delírios de glória egoísta sofregamente procurada pelos pecadores. Ele se encarnava para fazer a vontade do Pai e, assim, dar-nos o perfeitíssimo exemplo de vida.

Nenhum pensamento, desejo, palavra ou ação surgida de sua alma divinamente santa terá outro fim que não seja o de glorificar o Pai, a quem tudo consagrou desde o primeiro instante. Não tardarão muitos séculos, depois daquele natal, para os altares dos falsos deuses serem arrasados, os ídolos quebrados, os templos pagãos destruídos — ou convertidos em santuários — e os próprios demônios se calarem. Sim, aquele Menino nascido numa gruta reverterá o trabalho realizado por Satanás durante milênios, e a Roma pagã será a sede do Cristianismo; transformada na Cidade Eterna, dentro de ­suas muralhas, sobre uma pedra inabalável, se estabelecerá até o fim dos tempos  uma infalível cátedra da moral e da verdade.

Cúpula da Igreja de San Giuseppe dei Falegnami, vista do Foro Romano

Os pastores são convidados pelos Anjos

Mas, por outro lado, onde encontrariam os anjos, homens dignos de serem convidados para adorar o Menino? Na própria Belém, o berço de Isaí (1 Sm 16, 1) e de seu filho Davi, o humilde e jovem pastor “louro e de formosos olhos” (1 Sm 16, 12). Nos campos daquelas regiões, escolheram os anjos os destinatários do grande anúncio, pessoas pertencentes à mesma condição social do Rei e Profeta: os pastores de ovelhas. Assim, dois cortesãos do mais nobre sangue — Maria e José —, junto com os pastores de condição humilde e a própria Corte Celeste constituiriam os adoradores do Menino-Deus recém-nascido. Do Templo, nenhum representante.

Os escribas e fariseus desprezavam aquela classe de homens que, dia e noite, no verão ou no inverno, guardavam os rebanhos naquelas pastagens de Belém. Pelo seu teor de vida, os pastores não se enquadravam nas minuciosas práticas e abluções religiosas dos cerimoniais farisaicos. Os terrenos por eles ocupados não eram suficientemente irrigados e, por isso, não lhes assistia um escrupuloso asseio. Ademais, a instrução era por eles acolhida diretamente na própria natureza que não lhes ensinava o uso de vasilhas, a escolha dos alimentos puros etc. Formavam eles uma comunidade à margem da sociedade, que vivia do pasto e no pasto, portanto um povo da terra, totalmente desprezado pelos fariseus. Além disso, eram excluídos do normal procedimento dos tribunais, sendo considerados inválidos seus testemunhos em juízo. Paradoxalmente, os excluídos dos pleitos farisaicos são agora convidados, pelos anjos do Supremo Juiz, a penetrar na corte de um príncipe herdeiro do trono de Davi.

III – A adoração dos pastores

15 Quando os anjos se retiraram deles para o Céu, os pastores diziam entre si: ‘Vamos até Belém e vejamos o que é que lá aconteceu e o que é que o Senhor nos manifestou’.

A flexibilidade de alma daqueles pastores era plena, submissa e toda feita de prontidão. O anjo lhes dissera para não temerem (cf. Lc 2, 10) e não consta nesse relato de Lucas que tenham passado por algum espanto ao longo do contato com aqueles puros espíritos.

Ora, sabemos pela História o quanto os judeus se amedrontavam com as aparições angélicas, julgando que a morte com certeza se lhes seguiria (cf. Jz 6, 22-23; Jz 13, 20-22; Tb 12, 16-17). Mas esses pastores, apesar de homens de pouquíssimo conhecimento, intuíram rapidamente que, por fim, nascera o Messias.

Sem conhecer as amplas e profundas explicações doutrinárias dos fariseus, eles como todo e qualquer judeu, sabiam da promessa feita por Deus e anunciada pelos profetas aos antigos sobre o futuro aparecimento de um Salvador. Não seria quiçá esse o tema de suas conversas durante as noites de pastoreio?

Restou-nos apenas uma síntese das palavras do anjo a eles. Entretanto não será exagerado crer que ele lhes tenha esclarecido qual deveria ser o lugar e o caminho de acesso à gruta, tanto mais que lhes indicou os sinais distintivos: “Encontrareis um Menino envolto em panos e posto no Presépio” (Lc 2, 12).

As grutas da região lhes deviam ser muito familiares, pois eram os locais de refúgio onde buscavam proteção contra as intempéries. Tampouco se pode descartar a hipótese de ter havido antecedentes de partos ocorridos em circunstâncias análogas às do Natal. O certo é que em nenhum momento lhes passa pela alma a menor dúvida e, por isso, comentam entre si, em meio a muita alegria, o fato narrado pelo anjo, e convictamente concluem e decidem empreender a caminhada rumo ao “que o Senhor nos manifestou” (v. 15).

Receberam com fervor a boa nova

16 Foram a toda pressa, e encontraram Maria, José e o Menino deitado na manjedoura.

O amor não admite lentidão. A pressa dos pastores comprova o grande fervor com que receberam a boa nova.

Como não conheciam o emaranhado conceitual dos fariseus, não se levantou em suas almas a menor objeção sobre a realidade do Messias que se lhes manifestava diante de todos e de cada um. Trinta e poucos anos mais tarde, a cega doutrina dos escribas e fariseus se uniria aos conceitos dos saduceus e herodianos — sem excluir os do próprio Sinédrio — para se opor ao senso comum e sobrenatural dos humildes de espírito e assim, com entranhado ódio, empregar todos os recursos com vistas à condenação do “Salvador, que é Cristo e Senhor, [nascido] na cidade de Davi” (v. 11).

Ali na gruta, naquele momento, estavam presentes o Pai Eterno e o Divino Espírito Santo, que viam naquele tenro, delicado e ao mesmo tempo grandioso Menino, a realização de um plano idealizado desde todo o sempre: “Tu és meu filho muito amado, em quem coloco todas as minhas complacências” (cf. Lc 4, 22  e  Mc 1, 11). Como também Maria Santíssima, que através de seus altíssimos dons, de maneira inigualável penetrava os mistérios daquele Nascimento. José a acompanhava muito de perto. Abismados ambos pela incomensurável humildade de Deus em fazer-se homem — à diferença da soberba dos demônios —, concentravam-se para adorar o Divino Infante.

Foi-lhes concedido um dom de fé flexível e obediente

Lá chegam agora também os pastores, em simplicidade e pobreza, atraídos e amados por Deus devido a seu espírito de obediência, e por serem contemplativos. Não era a pobreza material que os tornava diletos de Deus, pois pobres os havia em situação ainda mais deficiente e em maior número. Ademais, não podemos nos esquecer de que essa não era a condição social dos Reis Magos, que paralelamente estavam se pondo a caminho para adorar o Divino Infante.

Por outro lado, seria outro erro querer atribuir ao portentoso milagre da aparição dos anjos, durante a noite, o fator decisivo para a crença daqueles homens toscos e talvez iletrados. Quão maiores e incontáveis seriam os milagres operados por aquele Menino em sua vida pública! Entretanto, muitos judeus não creram.

O fator decisivo foi um especial dom de fé que lhes foi concedido.

A Teologia nos ensina que há uma fé que se poderia denominar puramente intelectual: a pessoa crê em Deus, mas chega a odiá-Lo e temê-Lo como fazem os demônios e os precitos. Há, ainda, os que crêem, mas não traduzem em obras sua fé. Os fatos, como nos são narrados por Lucas, fazem-nos concluir que os pastores possuíam uma fé flexível e obediente, colocando em prática tudo aquilo em que acreditaram. Sem perda de tempo, submeteram todo o seu entendimento e vontade ao que lhes anunciou o sobrenatural.

É naquela noite que, diante do Presépio, encontramos os primeiros cristãos adorando a Cristo, o Absoluto abnegado, despido das manifestações da glória que Lhe é devida. Os pastores, ao serem capazes de adorá-Lo na manjedoura, não teriam dificuldade de fazê-lo no Calvário, tal como Maria o fez de modo tão sublime.

Nós também, nos dias atuais, temos o nosso presépio. O mesmo Unigênito Filho de Deus, reclinado sobre as palhas no interior da gruta em Belém, está presente debaixo das Espécies Eucarísticas. Será que igualmente nos movemos “apressadamente” em busca do Salvador, como o fizeram os pastores?

Montagem gráfica com elementos dos presépios da Igreja de San Ginés, Madri e da Igreja de Santa Margarida Maria, Woodbridge (Canadá)

Proclamaram maravilhas de que tinham sido testemunhas

17 Vendo isto, contaram o que lhes tinha sido dito acerca deste Menino.

O bem é de si eminentemente difusivo, e por isso, os pastores, de adoradores transformam-se em arautos das maravilhas contempladas por eles, antecedendo de muito os apóstolos e até mesmo o Precursor, João Batista, em suas missões.

Esse inesquecível Natal, pela mesma razão, fará cantar o coração dos pregadores, santos e Doutores:

“Nós nos reunimos para admirar o aniquilamento do Verbo e gozarmos do piedoso espetáculo de ver como Deus desce para nos levantar, se rebaixa para fazer-nos crescer, e se empobrece para repartir-nos seus tesouros” 12 — afirma Bossuet.

Também São Boaventura proclama as maravilhas da graça operadas no Natal: “Para curar, Deus teve de unir-se à natureza humana, sem exceção de nenhuma parte, pois ela toda estava enferma. Diz-se que se ‘encarnou’ por ser a carne o que é mais enfermo e para indicar melhor a humilhação de Deus” 13 .

E São Tomás assim explica o nascimento d’Aquele que é eterno: “Pode-se afirmar que Cristo nasceu duas vezes, segundo seus dois nascimentos; porque assim como se diz que corre duas vezes o que corre em dois momentos, assim também se pode dizer que nasce duas vezes o que nasce uma vez na eternidade e outra no tempo; porque a eternidade e o tempo  diferem muito mais que dois momentos, ainda que um e outro designem una medida de duração” 14 .

18 E todos os que ouviram, se admiraram das coisas que os pastores lhes diziam.

Após ter sido a própria Virgem Santíssima a primeira anunciadora da Boa Nova junto à sua prima Santa Isabel, agora os pastores movem-se para proclamar as maravilhas das quais tinham sido testemunhas.

A aparição do anjo e sua mensagem, a multidão de outros puros espíritos entoando cânticos celestiais, a constatação da realidade dos fatos na própria gruta, ao encontrarem Maria, José e o Menino, devem ter sido acontecimentos que arrebatavam a todos quantos deles tomavam conhecimento. Tanto mais que provavelmente os pastores deviam estar tomados pelo sopro do Espírito Santo e iluminados em sua missão.

Maria conferia tudo o que acontecia no seu coração

19 Maria conservava todas estas coisas, conferindo-as no seu coração.

A propósito da afirmação feita por Lucas nesse versículo, ouçamos o que nos comenta Maldonado: “Observava, sim, como creio, todas as coisas, não como se desconhecesse o mistério delas, mas vendo com gozo como se confirmava com novos prodígios e pelo testemunho daqueles pastores, o que ela tinha conhecido antes, pelo anjo Gabriel. Este é o significado das palavras do evangelista, quando ele diz: Ela as conferia em seu coração; ou seja, comparava estas coisas com as que haviam precedido, via a coincidência de todas elas, para confirmar a fé neste mistério, como diz Eutímio. […]

Segundo São Beda, Maria comparava as coisas que aconteciam com as palavras das antigas profecias: ‘Como lia as Sagradas Escrituras e conhecia muito bem os profetas, comparava consigo o que ia acontecendo acerca do Senhor, com o que d’Ele mesmo via escrito pelos profetas; e conferindo ambas as coisas, via que coincidiam admiravelmente, com uma luz comparável à dos próprios Querubins. Havia dito Gabriel: Eis que conceberás e darás à luz um filho. E antes Isaías havia predito: Eis que uma virgem conceberá e dará à luz um filho. Havia profetizado Miquéias (4, 8) que viria o Senhor à filha de Sion, na Torre do Rebanho, e então voltaria o antigo império. E dizem agora os pastores que lhes apareceram milícias da cidade celestial, na Torre do Rebanho, cantando a vinda do Messias. Maria havia lido (Is 1, 3) que o boi conheceu seu dono e o asno, o presépio de seu senhor; e via o Filho de Deus dar vagidos no presépio, vindo para salvar os homens e animais. E em todas e em cada uma dessas coisas comparava o que havia lido, com o que ouvia e via’.

Diz em seu coração para indicar que guardou tudo em seu interior, sem revelar a ninguém. Exemplo admirável de humildade e modéstia virginal, como nota Santo Ambrósio: ‘Aprendamos a castidade da Virgem em todas as coisas, a qual, não menos recatada em seus lábios que em sua carne, conferia em seu coração esses mistérios divinos’. A mesma coisa comentou São Bernardo.” 15 .

Maternal acolhida

20 Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham ouvido e visto, conforme lhes tinha sido dito.

Não pode deixar de ser que a Santíssima Virgem os tivesse acolhido com maternal afeto e bondade. Se os anjos condescenderam em lhes aparecer, tal seria que Maria não completasse, com sua nota de Rainha e Mãe, a missão de seus celestiais súditos, acentuando nas almas daqueles homens simples, mas cheios de fé, as graças que Deus lhes concedera.

Deveriam eles retomar os cuidados dos respectivos rebanhos, mas tudo leva a crer que não lhes foi fácil cumprir, de imediato, com seus deveres de ofício. Percebe-se, pela manifestação piedosa de sua alegria, o quanto estavam tomados por graças superabundantes e místicas.

Natividade, Catedral de Notre Dame, Paris

IV – Considerações finais

Os anjos cantam e proclamam a instituição do Reino de Cristo que nasce na gruta em Belém. A manifestação desse Reino constitui a glória reparadora, e os que o dão a conhecer glorificam-no, assim como ao próprio Deus e Sumo Bem. O adorável Menino nasceu para tornar conhecido o Pai entre os homens e, assim, poder d’Ele receber a devida glória: “Glorifiquei-Te sobre a terra; acabei a obra que me deste a fazer” (Jo 17, 4).

Ali também, sob certo ponto de vista, com o nascimento de seu Fundador, nasce a Santa Igreja, como afirma Santo Ambrósio: “Vede as origens da Igreja nascente” 16 . Uma nova luz brilhou sobre a terra: “Este povo, que jazia nas trevas, viu uma grande luz, e uma luz levantou-se para os que jaziam na sombra da morte” (Mt 4, 16).

Viverá o mundo de hoje sob os influxos dessas graças, ou terá dado as costas a esse incomensurável benefício obtido pela maternal mediação de Maria? A segunda hipótese parece ser a mais provável, infelizmente.

Neste caso encontrará a humanidade a tão desejada, necessária e propalada paz? Jamais, se não a procurar onde realmente ela se encontra: “Deixemos, pois, as obras das trevas, e revistamo-nos das armas da luz” (Rm 13, 12).

 

Notas


1 CIC, nº 375-377.
2 Idem, nº 401.
3 PLAUTUS. Titus Macci, Asinaria, II. iv, 495.
4 QUINTUS, Horatius Flaccus. Satyrarum libri, livro 1, poema 8.
5 FERGUSON, William Scott. Greec Imperialism. Kitchener (Canadá): Batoche Books, 2001, pp. 68 e 69.
6 Cf. HERODOTUS. Book 1, Clio, nº 181. In Kitson, J., Herodotus Website, www.herodotuswebsite.co.uk, 2003.
7 Cf. Idem, 199.
8 Ibidem.
9 COULANGES, Fustel de. La Cité Antique, l. 3, c. 17. Paris: Flammarion, 1984, p. 78.
10 WEISS, Juan Bautista, Historia Universal. Barcelona: La Educación, 1928, v. III, p. 653.
11 Idem, p. 654.
12 BOSSUET, Sermão de Natal ed. Lebarq, t. 2 p. 274, Paris, Desclée, 1929.
13 SAN BUENAVENTURA. Breviloquio, p. 4ª: BAC, Obras de San Buenaventura, t. 1 p. 335.
14 AQUINO, São Tomás de. S.T. III q. 35 a. 2 ad 4.
15 MALDONADO, P. Juan de, S. J. Comentarios a los Cuatro Evangelios. Madrid: BAC, 1951, v. II, p. 393-394.
16 Lib. 2, in c. 2 Lc. (Exposição do Evangelho segundo Lucas)
Artigo anteriorSanto Inácio de Antioquia – Aquele que portava Cristo no seu coração
Próximo artigoSão João Evangelista – O Discípulo Amado
Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP
Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP, é fundador dos Arautos do Evangelho.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui