A comemoração dos Fiéis Defuntos é uma ocasião feliz que a Igreja nos proporciona para aliviarmos os que padecem no Purgatório. Mas ela também traz consigo um ensinamento para nosso proveito espiritual: temos uma responsabilidade e, se não agirmos como devemos, poderemos escutar esta terrível sentença do Divino Juiz: “Não estás preparado!”.

 

Evangelho da Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos

I – Após a morte, uma dívida pendente

A Santa Igreja, em sua sabedoria e inerrância divinas, inseriu no calendário litúrgico a comemoração de Todos os Fiéis Defuntos no dia seguinte à Solenidade de Todos os Santos — no Brasil adiada para o domingo seguinte por motivos pastorais —, com o intuito de unir os três estados da Igreja, Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo, do qual Ele é a Cabeça. Ontem, a Igreja militante — constituída pelos que na Terra, em estado de prova, combatem o bom combate para receber depois o prêmio da glória (cf. II Tim 4, 7-8) — festejava a Igreja triunfante, louvando e glorificando os Santos que já se encontram na eterna bem-aventurança. Hoje volta ela seu olhar para os irmãos que, sendo também justos, ainda estão no Purgatório — a Igreja padecente —, cumprindo as penas temporais devidas por suas faltas.

A tripla dimensão do pecado

Deus todo-poderoso nada pode criar que não seja para Si mesmo. Ele nos deu o ser a fim de praticarmos a virtude para louvá-Lo, reverenciá-Lo e servi-Lo acima de tudo, e não é outra a nossa obrigação, uma vez que nossos pais não criaram nossa alma imortal, mas sim Deus, de quem na verdade nascemos. Ora, quando pecamos, fazemos mau uso das criaturas, dando as costas a Deus e ofendendo-O. O Salvador, porém, em sua infinita bondade, nos deixou o Sacramento do Batismo para apagar a culpa original e de todos os pecados cometidos até o momento de recebê-lo, se já tivermos o uso da razão, bem como o da Penitência, para absolver as faltas em que incorremos depois do Batismo.1 E ao sermos perdoados pelo próprio Nosso Senhor Jesus Cristo, através dos lábios do sacerdote, evitamos a condenação ao inferno. No entanto, além da injúria feita a Deus, o pecado atenta também contra outras duas ordens — a consciência e o universo — e, em consequência, é lógico sermos por elas humilhados e punidos.2

O julgamento da consciência

Todos nós temos a Lei de Deus gravada na mente e no coração, como critério para discernir quão insensato é abraçar a via do pecado. A consciência nos acusa quando procedemos mal, e mostra o caminho verdadeiro. Por tal motivo, se alguém, de fato, comete um pecado, não lhe cabe a dúvida; antes, está certo de sua queda porque agiu contra a própria consciência.

O pecado vulnera a ordem perfeita da criação

Deus criou o universo numa ordenação perfeita: cada astro segue sua trajetória com exatidão; o Sol não se choca com a Terra, nem a Lua sai de sua órbita. A vegetação também tem suas leis, que a fazem procurar sempre o Sol e a água, e os animais são dotados de instintos regrados. O homem, contudo, tem a possibilidade de andar em ordem ou em desordem. Ao caminhar na linha da virtude, ele adquire méritos — o que não acontece com os seres inferiores, como os animais ou as plantas —, mas se, pelo contrário, envereda pelas vias do mal, ofende a ordem do universo, como ensina o Magistério: “Todo pecado, efetivamente, acarreta uma perturbação da ordem universal, por Deus estabelecida com indizível sabedoria e caridade infinita, e uma destruição de bens imensos, quer se considere o pecador como tal, quer a comunidade humana”.3

A Via Láctea vista do Campo Concórdia, na Cordilheira do Caracórum (Paquistão)

Por causa disso, quando alguém comete uma falta grave, a ordem do universo, abalada, quereria voltar-se contra o transgressor e esmagá-lo, desencadeando todos os seus elementos. Dentre estas possíveis manifestações da natureza contra o pecador, podemos imaginar, por exemplo, a terra se abrindo para engoli-lo ou o fogo caindo do céu para devorá-lo, a ponto de encontrarmos na própria Escritura esta afirmação: “A criatura que Vos é submissa, a Vós, seu Criador, aumenta sua força para castigar os maus, e os modera para o bem dos que puseram em Vós sua fé” (Sb 16, 24). Deus, entretanto, contém a natureza vulnerada para não aniquilar o culpado, à espera de que este faça penitência e venha a alcançar a salvação.

Depois da Confissão, uma dívida pendente

Não obstante, devemos nos lembrar de que se o Batismo perdoa a dupla pena à qual está sujeito o pecador — a eterna, em consequência da rejeição de Deus, e a temporal, devido à adesão desordenada às criaturas —, a Confissão, ao absolver da primeira, nem sempre livra totalmente da segunda, pois a remissão desta depende da intensidade e da perfeição do arrependimento de cada alma.4 Assim, na maior parte dos casos, permanece pendente uma dívida que exige reparação, quer na Terra, por meio da penitência, quer na outra vida, submetendo-se a alma aos rigores do Purgatório.

No que consiste, então, essa dívida, e como poderá a alma pagá-la? Imaginemos alguém que, andando pela rua num dia de chuva, se vê de repente coberto de lama da cabeça aos pés pela passagem de um veículo em alta velocidade. Por mais que essa pessoa lave o rosto, sabe que, além disso, precisa limpar a roupa, sobretudo se está a caminho de uma festa de casamento, onde jamais poderia aparecer manchada de barro.

Da mesma forma, no momento em que a alma se separa do corpo e comparece ao juízo particular, recebe um especial dom para lhe iluminar a memória e a consciência, recordando-lhe todos os detalhes de sua vida moral e espiritual.5 Percebe ela, então, como na Confissão lhe foram perdoadas as faltas contra Deus, bem como a pena eterna delas decorrente: seu rosto está limpo. Mas sua consciência grita, pois sente-se suja e necessitada de “trocar de roupa”, isto é, de pagar a pena temporal. Ademais, pode ela ter certa mentalidade pouco conforme à boa ordem, à sabedoria, sobretudo nos dias atuais, em nosso mundo dominado pelo mecanicismo e pela técnica. Também pode haver ideias, caprichos ou manias que a afastam do equilíbrio perfeito da santidade e são contrários, enquanto regra de vida, aos princípios da Fé, com os quais ela não pode estar diante de Deus e contemplá-Lo face a face, porque estes lhe impediriam de entendê-Lo, de amá-Lo e de relacionar-se com Ele.

A razão da existência do Purgatório

Como obter o perdão da pena temporal e adequar os critérios, a fim de se estar pronto para ver a Deus? Na vida terrena podemos alcançar isto mediante a aquisição dos méritos que nos advêm das boas obras — penitências, orações, atos de misericórdia, etc. — ou pelas indulgências que a Igreja nos concede, pois, “usando de seu poder de administradora da Redenção de Cristo Senhor, […] por sua autoridade abre ao fiel convenientemente disposto o tesouro das satisfações de Cristo e dos Santos”.6

No caso de terem sido desdenhados estes meios, torna-se necessária a existência do Purgatório para, post mortem, “purificar [a alma] das sequelas do pecado”7 e obter a remissão da pena, como diz São Tomás,8 pagando durante um período a dívida imposta pela ofensa à consciência e à ordem do universo. “É portanto necessário” — continua o ensinamento da Igreja — “para o que se chama plena remissão e reparação dos pecados não só que, graças a uma sincera conversão, se restabeleça a amizade com Deus e se expie a ofensa feita à sua sabedoria e bondade, mas também que todos os bens, ou pessoais ou comuns à sociedade ou relativos à própria ordem universal, diminuídos ou destruídos pelo pecado, sejam plenamente restaurados”.9

As almas do Purgatório, por Alonso Cano – Museu de Belas Artes, Sevilha (Espanha)

O reformatório de nosso egoísmo

Desejando, pois, que entremos no convívio com Ele sem mancha alguma, puros e perfeitos — porque lá “não entrará nada de profano nem ninguém que pratique abominações e mentiras” (Ap 21, 27) —, Deus criou o Purgatório, à maneira de reformatório do nosso egoísmo, onde este é queimado no fogo e somos reeducados na verdadeira visualização de todas as coisas e no amor à virtude. Concluído este período, nossa alma está santificada e, por isso, pode-se afirmar que todos os que estão no Céu são santos.

Esta também é a razão pela qual quem já houver alcançado a santidade aqui na Terra não passe pelo Purgatório ou, em certos casos, apenas muito rapidamente para fazer, por exemplo, uma genuflexão, como se conta ter acontecido a Santa Teresa de Ávila. Ou então como São Severino, Arcebispo de Colônia, que, apesar de haver consumido seus anos em fecundas obras de apostolado pela expansão do Reino de Deus, foi obrigado a permanecer seis meses no Purgatório a fim de expiar seu pouco recolhimento na recitação do Breviário.10

Esperança no meio de grandes tormentos

As almas do Purgatório sofrem terrivelmente, mas com uma grande vantagem sobre nós: a esperança segura do Céu. É esta uma virtude que causa alegria e consolação, porque nos promete uma posse futura. Todavia, nossa esperança nesta vida é duvidosa e incerta, porque estando aqui de passagem podemos em qualquer ocasião vacilar e cometer uma falta grave, arriscando perder a vida eterna se a morte nos colher logo depois. No Purgatório, pelo contrário, essa esperança já é absoluta, pois traz consigo a certeza de ter atingido o termo, isto é, de ter conquistado a salvação.11

De resto, grandes são os tormentos desse lugar que, sem serem iguais aos do inferno — pois os demônios não podem torturar as almas benditas12 —, entretanto, são produzidos pelo mesmo fogo.13 Para termos uma pálida ideia de quão intenso é este calor, imaginemos uma enorme fogueira e, ao lado, sua representação numa pintura. Se tocarmos no quadro, este não nos queima, enquanto bastará aproximar o dedo da fogueira verdadeira para, aí sim, experimentarmos uma insuportável dor. Pois bem, a diferença existente entre a imagem representada no quadro e o fogo real é a que há entre o fogo deste mundo e o do Purgatório. No dizer de Santo Agostinho: “aquele fogo será mais violento do que qualquer coisa que possa padecer o homem nesta vida”;14 e São Tomás completa: “a menor pena do Purgatório excederá a maior pena desta vida”.15

O Venerável Estanislau Ghoscoca, dominicano polonês, estava certo dia rezando, quando lhe apareceu uma alma do Purgatório envolta em chamas. Ele perguntou-lhe, então, se aquele fogo era mais ativo e penetrante que o terrestre, e a alma, gemendo, exclamou: “Em comparação com o fogo do Purgatório, o da Terra parece uma rajada de ar leve e refrescante”. Como Estanislau, cheio de coragem, lhe pedisse uma prova, ela respondeu: “É impossível a um mortal suportar tais tormentos; contudo, se quereis uma experiência, estendei a mão”. Ele assim o fez e o defunto deixou cair nela uma gotinha de suor escaldante. No mesmo instante, dando um agudo grito, o religioso caiu desmaiado no chão, num estado semelhante à morte. Tendo sido reanimado por seus confrades, que acorreram para ajudá-lo, contou-lhes o que acontecera, recomendando a publicação do fato a fim de precaver as pessoas contra a terrível expiação do Purgatório. Por fim, após um ano, ao longo do qual sentiu continuamente aquela dor na mão direita, frei Estanislau faleceu, exortando seus irmãos a fugirem do pecado para evitar atrozes suplícios na outra vida.16

Uma alma do Purgatório, Catedral de Puebla, México

As almas do Purgatório desejam essa purificação

Apesar de tais penas, as almas que se encontram no Purgatório não estão ali acorrentadas, desejando fugir. Pelo contrário, aceitam todos os sofrimentos.17 E se soubessem da existência de mil Purgatórios, ainda mais ardentes, quereriam neles se lançar, pois, na verdade, o que se lhes afigura mais intolerável é verem-se cobertas de manchas que as afastam de Deus. Elas anseiam por ser inteiramente puras e virginais para entrar no Céu. Esta atitude assemelha-se à de um arminho — animalzinho tão alvo, símbolo da castidade e da inocência — que prefere morrer a ver suja sua pelagem branca.

II – A Igreja que luta reza pela Igreja que padece

Nós temos uma sensibilidade errônea, pela qual, quando assistimos junto ao leito de algum moribundo à sua agonia, seguida do terrível drama da morte, nos impressionamos com facilidade por acreditar ser o término da carreira daquela pessoa. Mas, na realidade — a Fé nos diz — ali tudo começa. Longe de julgar desligados de nós os que partiram, devemos nos compenetrar de que, estando no Céu ou no Purgatório, o vínculo com eles é muito mais estreito do que imaginamos. Assim, qualquer oração ou ato com mérito sobrenatural, até mesmo o uso da água benta, praticado por quem permanece na Terra na intenção de beneficiar as almas do Purgatório, é considerado por Deus com grande benevolência e tomado pelas próprias almas com muito agrado, já que não podem mais rezar por si. Nossas preces, aplicadas em sufrágio delas, abreviam a duração de seus padecimentos.

Por isso a Igreja, como Mãe amorosa, escolheu um dia do Ano Litúrgico para a comemoração dos Fiéis Defuntos, no qual concede aos sacerdotes o direito de celebrar três Missas, com “a condição que uma das três seja aplicada a livre escolha, com possibilidade de receber oferta; a segunda Missa, sem nenhuma oferta, seja dedicada a todos os Fiéis Defuntos; a terceira seja celebrada segundo as intenções do Sumo Pontífice”.18 Esta obrigação em relação à última das três Missas encontra sua origem no zelo do Vigário de Cristo pela pronta liberação das santas almas do Purgatório. Com o passar do tempo, grande número de instituições pias, estabelecidas para a celebração de Missas em sufrágio das almas de determinados defuntos, foram sendo abandonadas e negligenciadas, resultando daí um sério prejuízo para as almas do Purgatório. Acrescentou-se ainda a I Guerra Mundial, que assolou a Europa arrebatando incalculáveis vidas, sobretudo entre os jovens. Facultando a celebração desta terceira Missa no dia dos Fiéis Defuntos, Sua Santidade Bento XV, com paternal largueza, assumiu para si esta dívida da Igreja para com as almas sofredoras.

Não nos esqueçamos, porém, de que, embora uma só Eucaristia tenha um poder impetratório infinito, lucrarão mais as almas que em vida tiveram maior devoção a ela.19 Portanto, também nós devemos ter especial empenho em aumentar nosso fervor pela participação na renovação incruenta do Santo Sacrifício do Calvário.

A Santa Igreja dá ainda aos fiéis o privilégio de obter uma indulgência plenária em favor de uma alma do Purgatório,20 recitando neste dia — ou nos dias subsequentes, até 8 de novembro — um Pai Nosso e um Credo em alguma igreja ou oratório, ou visitando um cemitério para rezar nessa intenção.

Detalhe do Retábulo de São Pedro e São Miguel Arcanjo, por Bernat Despuig e Jaume Cirera – Museu Nacional de Arte da Catalunha, Barcelona

O valor de nossas orações é superior a qualquer oferta material

É verdade que nós nos comprazemos em depositar sobre os túmulos coroas de flores ou velas, costume este muito bom e legítimo. No entanto, nossa maior manifestação de carinho pelas almas deve consistir em pedir por elas, pois o efeito da oração supera em muito o de qualquer oferta material, segundo a famosa sentença atribuída a Santo Agostinho: “Uma lágrima por um defunto se evapora. Uma flor sobre o túmulo murcha. Uma oração por sua alma, Deus a recolhe”.

É preciso levar em conta que, como Deus não está na dependência do tempo, diante d’Ele não existe passado nem futuro e todos os acontecimentos se desenrolam num perpétuo presente, desde toda a eternidade e por toda a eternidade. Deste modo, se hoje rezamos pela boa morte de algum parente ou conhecido — ainda que esta possa se ter dado há cinco ou quinhentos anos —, nossa oração já foi considerada por Deus no instante exato de sua passagem desta vida à outra, contribuindo para um trânsito mais feliz e assistido por graças eficazes e abundantes.

Um “negócio” com as almas do Purgatório

Esta piedosa prática nos permite fazer amizade com aqueles que, por causa de nossas preces, saem do Purgatório e são admitidos no Céu, onde adquirem um poder de audiência colossal junto a Deus. Decerto, a gratidão deles nos beneficiará. Se nesta Terra somos agradecidos aos nossos benfeitores, quanto mais as almas que entram na glória saberão interceder em favor de quem por elas rezou.

Nesse sentido, bem cabe aqui a aplicação da parábola do administrador infiel (cf. Lc 16, 1-8). Este homem, ao perceber que perderia o emprego devido à má gestão nos negócios de seu senhor, travou amizade com todos os devedores deste a fim de ser sustentado por eles na hora da amargura e da necessidade, já que, por sua avançada idade, carecia de forças para trabalhar. E, uma vez despedido, foi ele amparado por todos aqueles de quem fraudulentamente aliviara a dívida. Nosso Senhor não elogia o roubo do administrador, mas louva, isto sim, sua esperteza.

Hoje é, então, o dia da esperteza! Devemos pedir por todos os que se encontram no Purgatório, sobretudo os mais ligados a nós. Este ato de caridade nos renderá bons amigos, que retribuirão em qualidade e quantidade o favor recebido e, por conseguinte, muito nos ajudarão na hora da dificuldade.

III – Devemos evitar a todo custo a passagem pelo Purgatório

Esta comemoração também traz consigo um ensinamento de grande proveito espiritual, no qual deitaremos a atenção, sem nos determos demasiado no amplo leque de leituras que a Liturgia oferece neste dia.

A tragédia da morte

Todos nós somos obrigados a enfrentar dificuldades e dores nesta vida, pois ninguém está isento delas. O sofrimento suportado com resignação cristã tem um papel purificador, corretivo, que faz dele como que um oitavo sacramento.21 Entre as muitas tribulações há uma que, embora seja mera possibilidade quanto à data, de si é uma certeza absoluta para todos: a morte. Com efeito, estamos na Terra apenas de passagem, e nossa meta final é o Céu. Todavia, por ser esta uma verdade tão dura, custa-nos mantê-la diante dos olhos, pois gostaríamos de transpor os umbrais da eternidade sem suportar o trágico transe em que a alma se separa do corpo.

Com o intuito de manter viva na mente dos fiéis tal realidade, Santo Afonso Maria de Ligório22 recomendava que se representasse na imaginação o cadáver de um recém-falecido, e se meditasse sobre o processo que se segue à morte: como o corpo é comido pelos vermes, e até mesmo os ossos, com o tempo, se esfarelam e se convertem em pó. É a situação, quanto ao corpo, de quem partiu deste mundo. Mas quantos já “viajaram” e ainda não alcançaram a felicidade eterna, e estão penando no fogo do Purgatório! É o que pode acontecer a qualquer um de nós hoje, amanhã ou mais tarde: perde as forças, dá os últimos suspiros, percebe que a alma vai abandonar o corpo, vê-lo-á como se fosse o de um terceiro, imóvel, inerte, gelando… A seguir vem o juízo. Depois, para onde irá? Não sabemos. Para nós mesmos é impossível, nesta vida, prever se vamos para o Purgatório ou não…

As virgens prudentes – Igreja Trinità dei Monti, Roma

A seriedade do Purgatório

Ora, não pensemos que, pelo fato de termos praticado este ou aquele ato bom ao longo da existência, na hora do julgamento particular poderemos evitar o Purgatório com um sorriso dirigido ao Juiz — o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo! —, que O enternece e, esquecendo todas as nossas faltas, nos introduz na glória… Não é o que Ele afirmou no Evangelho e está registrado nas Escrituras Sagradas, como, por exemplo, no Livro da Sabedoria, em que encontramos inúmeras comparações entre a morte do justo e a do ímpio (cf. Sb 3, 1-19; 4, 16-20; 5, 14-15).

Portanto, se estamos convictos da obrigação de orar pelas almas do Purgatório, mais ainda — segundo reza o conhecido adágio popular: “a caridade começa pela própria casa” — necessitamos nos convencer de que não basta temer apenas o inferno, pois é preciso temer também o Purgatório. Para isto devemos, antes de tudo, eliminar a ideia de irrelevância do pecado venial e tomá-lo a sério como Deus o toma, não só esforçando-nos por manter o estado de graça, mas procurando a santidade com uma perseverança cheia de vigilância, de amor e de receio de se aproximar das ocasiões de pecado. Se uma amizade, certa situação ou programa de televisão me fazem escorregar, hei de fugir, preferindo mortificar-me aqui a ter de padecer no Purgatório. Quanto tempo, em meio a tormentos tremendos, poderá custar-me a recusa de uma hora de sacrifício na Terra?

Alimentando nossa alma pela fé, rumo à eternidade, esforcemo-nos para levar uma vida íntegra e santa, de maneira a merecer ir direto para o Céu. Se, pelo contrário, não nos compenetrarmos da perfeição que Deus exige de nós, quando morrermos — queira Deus que na sua graça! — teremos de nos purificar no Purgatório.

A exigência da vigilância

Ao contar a parábola das dez virgens — uma das opções de Evangelho que a Liturgia propõe para este dia (Mt 25, 1-13) —, Nosso Senhor quis nos mostrar o quanto é preciso estar preparado para a morte, pois ela vem na hora mais inesperada. Naquele tempo o ato principal das festas de casamento era o ingresso da esposa na casa do esposo. Rodeada de certo número de virgens suas amigas, aguardava ela o noivo, que vinha com os amigos, para juntos iniciarem o solene cortejo até sua nova moradia, em geral depois do pôr do Sol, à luz de lâmpadas e tochas, cantando e tocando alegremente. Na narração evangélica as virgens prudentes, prevendo uma eventual demora do noivo, guardaram uma provisão de azeite a fim de estarem com as lâmpadas acesas à chegada deste; as outras, porém, gastaram todo o azeite e suas lâmpadas estavam prestes a apagar-se quando o noivo foi anunciado, pelo que suplicaram às primeiras lhes cedessem um pouco do que tinham. Mas as prudentes, receando não ser suficiente para todas, negaram-no às companheiras. Eis uma imagem a respeito da morte, face à qual cada um terá de arcar com sua própria “provisão” de méritos, não podendo confiar na alheia. Ante Deus há uma responsabilidade pessoal intransferível, da qual teremos de prestar contas. Se não agirmos como devemos, poderemos escutar a terrível sentença do Juiz: “Não vos conheço!” (Mt 25, 12). E se Lhe perguntarmos o porquê dessas duras palavras, Ele nos responderá: “Porque não vivestes de acordo com os meus princípios, a minha mentalidade e os meus Mandamentos”.

A mesma mensagem nos é transmitida em outra das leituras evangélicas para esta comemoração (Lc 12, 35-40): a parábola dos servos que aguardam a chegada do senhor. Jesus inicia suas palavras recomendando: “Que vossos rins estejam cingidos e as lâmpadas acesas” (Lc 12, 35). A expressão “rins cingidos” é sinônimo de disponibilidade para o serviço, já que, naquela época, os orientais recolhiam suas longas túnicas não só para andar, mas também para servir à mesa. Em nosso caso, trata-se de estarmos prontos para a prática da virtude da caridade. Quanto às “lâmpadas acesas”, significa, mais uma vez, a importância de termos a atenção muito viva e atilada para evitar as ocasiões próximas de pecado, bem como de nos mantermos em espírito de oração. Permaneçamos como as virgens prudentes ou como estes homens à espera do regresso do senhor de uma festa de casamento, com a lamparina cheia de azeite, ou seja, sempre vigilantes, evitando tudo o que possa nos conduzir ao Purgatório. “Vós também, ficai preparados! Porque o Filho do Homem vai chegar na hora em que menos O esperardes” (Lc 12, 40).

IV – Ao mesmo tempo, esperança

Não devemos encarar a morte como algo estritamente trágico, um drama para o qual não há solução, mas, de acordo com a visualização da Igreja, como uma necessidade. À maneira da semente que, segundo a expressão do Apóstolo, “não recobra vida, sem antes morrer” (I Cor 15, 36), é preciso que em determinado momento o corpo repouse, à espera da ressurreição. Se Jesus mesmo não tivesse morrido, o que seria de nós?

Os efeitos da Redenção

São Paulo, quiçá tendo recebido uma revelação de Nosso Senhor, escreveu: “toda a criação geme e sofre como que em dores de parto até o presente dia” (Rm 8, 22) para ser “libertada do cativeiro da corrupção” (Rm 8, 21), através dos benefícios da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. De fato, a natureza foi marcada pelo pecado de Adão e ainda não teve acesso, inteiramente, aos efeitos da Redenção, porque estes estão retidos à espera do Juízo Final. Os teólogos, em especial São Tomás de Aquino,23 comentam que no dia do Julgamento, depois da ressurreição dos corpos, as mãos de Deus se abrirão e toda a natureza se rejubilará pelos frutos da Redenção. Por exemplo, a Lua vai brilhar com mais claridade do que antes do pecado original, e o Sol adquirirá maior fulgor, deitando sobre a Terra uma luminosidade especial. Dado que a criatura humana é um microcosmos, a razão mais profunda desta restauração está no fato de se encontrarem reunidos em Jesus-Homem todos os planos da criação, como verdadeira síntese do universo, n’Ele elevada a um grau altíssimo. É preciso, pois, que a matéria que Ele assumiu, ao Se encarnar, seja glorificada.

O Juízo Universal – Fachada da Basílica de São Marcos, Veneza

Esperança da ressurreição

Se a própria natureza está gemendo à espera desse dia, porque não devemos gemer também nós? Pois, embora já gozemos, por meio dos Sacramentos, de uma parcela dos efeitos da Redenção que é a vida sobrenatural — “as primícias do Espírito” (Rm 8, 23a) de que nos fala o Apóstolo —, aguardamos “a adoção, a redenção do nosso corpo” (Rm 8, 23b). Peregrinos neste vale de lágrimas, longe da pátria verdadeira, a todo momento nos sobrevém a tentação, a provação e a angústia, e muitas vezes nos perguntamos: “Quando iremos?”. Sabemos que, da mesma forma que a alma, nosso corpo foi plasmado por Deus com vistas a durar eternamente, livre das contingências — doenças, sono, fome, limitações — que nosso atual estado comporta, conforme reza o Prefácio para os Fiéis Defuntos: “desfeito o nosso corpo mortal, nos é dado, nos Céus, um corpo imperecível”.24

Em uma das numerosas leituras a serem escolhidas para esta comemoração, São Paulo usa uma imagem muito realista, comparando o corpo a uma tenda (cf. II Cor 5, 1.6-10), como as que tinha de fabricar para seu próprio sustento (cf. At 18, 3). Exorta a não nos preocuparmos se esta for destruída, porque Deus nos dará outra muito melhor (cf. II Cor 5, 1). Como incansável apóstolo da Ressurreição, escreve também em sua Primeira Carta aos Coríntios: “Semeado na corrupção, o corpo ressuscita incorruptível; semeado no desprezo, ressuscita glorioso; semeado na fraqueza, ressuscita vigoroso; semeado corpo animal, ressuscita corpo espiritual” (15, 42-44).

Com efeito, o corpo glorioso gozará de quatro qualidades, a saber: claridade, impassibilidade, agilidade e sutileza.25 É-nos permitido conjecturar que, graças a elas, o corpo poderá fazer-se imperceptível no lugar em que quiser, passar através das substâncias sólidas, deslocar-se como lhe aprouver à velocidade do pensamento… Além disso, não necessitará do concurso de um alfaiate para se vestir, pois a roupa será trabalhada pela própria imaginação, que terá equilíbrio perfeito, sem as loucuras decorrentes do pecado.

A esperança de recuperar o corpo deve alimentar nossa existência, dando-nos forças para abandonar um prazer fugaz e ilícito, para evitar o pecado e praticar a virtude, porque seremos altamente recompensados no dia da ressurreição da carne. Então assistiremos, com estes mesmos olhos com que agora vemos, ao esplendor da criação renovada.

Assim, embora o Dia de Finados seja marcado com uma nota de tristeza pela ausência de quem já partiu, é com alegria que rezamos por eles, se nos pusermos diante da perspectiva apresentada pela Igreja: atravessados os trágicos umbrais da morte, todos nos encontraremos no outro lado, num convívio de intimidade e júbilo extraordinários, até retomarmos o corpo em estado de glória, com a ressurreição.

Peçamos a Nossa Senhora da Boa Morte, bem como aos Santos e aos Anjos, que nos ajudem e obtenham o favor de morrer na plenitude da graça que nos cabe, na plenitude do cumprimento da nossa missão e na plenitude da nossa perfeição de alma e de vida espiritual, de modo a nem sequer conhecer o Purgatório.

 

Notas


1 Cf. Dz 1672.
2 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I-II, q.87, a.1.
3 PAULO VI. Indulgentiarum doctrina, n.2.
4 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., III, q.86, a.4, ad 3.
5 Cf. GARRIGOU-LAGRANGE, OP, Réginald. L’éternelle vie et la profondeur de l’âme. Paris: Desclée de Brouwer, 1953, p.95.
6 PAULO VI, op. cit., n.8.
7 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Super Sent. L.IV, ap.1, a.2, ad 2.
8 Cf. Idem, a.1.
9 PAULO VI, op. cit., n.3.
10 Cf. LOUVET. Le Purgatoire d’après les révélations des saints. 3.ed. Albi: Apprentis-orphelins, 1899, p.130-131.
11 Cf. GARRIGOU-LAGRANGE, op. cit., p.232-233.
12 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Super Sent. L.IV, ap.1, a.5.
13 Cf. Idem, a.2.
14 SANTO AGOSTINHO. Enarratio in psalmum XXXVII, n.3. In: Obras. Madrid: BAC, 1964, v.XIX, p.654.
15 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Super Sent. L.IV, ap.I, a.3.
16 Cf. ROSSIGNOLI, SJ, Grégoire. Les merveilles divines dans les âmes du Purgatoire. 2.ed. Bordeaux: Barets, 1870, v.II, p.51-53.
17 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Super Sent. L.IV, ap.1, a.4.
18 BENTO XV. Incruentum altaris, de 10/8/1915.
19 Cf. SANTO AGOSTINHO. De cura pro mortuis gerenda, XVIII, 22. In: Obras. Madrid: BAC, 1995, v.XL, p.473-474.
20 Cf. PÆNITENTIARIA APOSTOLICA. Enchiridion indulgentiarum. Concessiones 29. Pro fidelibus defunctis, §1, 1º e 2º.
21 Cf. FABER, apud CHAUTARD, OCSO, Jean-Baptiste. A alma de todo apostolado. São Paulo: FTD, 1962, p.112.
22 Cf. SANTO AFONSO MARIA DE LIGÓRIO. Máximas eternas. Porto: Fonseca, 1946, p.7-8.
23 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Suppl., q.91, a.1.
24 RITO DA MISSA. Oração Eucarística: Prefácio dos Fiéis Defuntos, I. In: MISSAL ROMANO. Trad. Portuguesa da 2a. edição típica para o Brasil realizada e publicada pela CNBB com acréscimos aprovados pela Sé Apostólica. 9.ed. São Paulo: Paulus, 2004, p.462.
25 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. In Symbolum Apostolorum. Art.11.
Artigo anteriorSão Geraldo Majela – Uma alma pura que viu a Deus
Próximo artigoSanta Gertrudes de Helfta – Arauto do amor divino
Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP
Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP, é fundador dos Arautos do Evangelho.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui