Dificilmente se encontra alguém insensível à música. Exerce ela uma poderosa influência sobre nós, exprimindo muitas vezes o que nos vai na alma. Referindo-se ao poder dessa arte tão antiga e sempre nova, o Papa João Paulo II chegou a afirmar: “A música desempenha, entre as manifestações do espírito humano, uma função elevada, única e insubstituível. Quando ela é realmente bela e inspirada, nos fala, inclusive mais que as demais artes, da bondade, da virtude, da paz, das coisas santas e divinas” (ao coro “Harmonici cantores”, 23/12/88).
Ao se falar em música, é justo reportar-se a Santa Cecília, protetora dessa arte, cuja festa a Igreja celebra no próximo dia 22. Mártir dos primeiros tempos do cristianismo, sua história nos chega com detalhes de difícil comprovação, tornando complicado distinguir o que foi acrescentado ao longo dos séculos, embora o relato de seu martírio conste já em documentos do século IV. Para nossa edificação, o mais indicado é apresentar sua biografia tal como nos é transmitida por uma tradição firmemente estabelecida.
Santa Cecília enfrentou os duros tempos de perseguição aos cristãos, sempre tocando sua harpa ou cítara para acompanhar suas melodiosas canções. Era este seu modo de expressar aquele amor de Deus que abrasava sua alma pura e virginal.
Uma alma contemplativa
Desde muito menina, Cecília via as belezas do universo como símbolo da grandeza de Deus. Alma contemplativa, vendo o nascer ou o pôr-do-sol, as estrelas ou mesmo as variações das estações, mantinha o espírito voltado para Deus e exclamava: “Oh! Quão grande e bom é o Senhor! Quero amá-Lo sempre. Quero amá-Lo, muito!…”
Pertencia a uma das mais nobres e ilustres famílias romanas do século III, a “Gens Cecília”, cuja linhagem vinha dos tempos da República. Apesar de serem desconhecidos os nomes de seus pais, julga-se terem sido cristãos, pois a menina foi entregue aos cuidados de uma aia cristã, que conhecia bem as Escrituras. Cecília ouvia da boa senhora a História Sagrada, contada com todos os encantos que atraem as almas inocentes. Apreciava sobretudo as narrações que tratavam da vinda do Salvador. Encantava-lhe saber que Jesus amava as criancinhas. Ao ouvir a descrição de sua Paixão, chorava de dor. Decidiu, então, em sua inocência, dar-se inteiramente a Nosso Senhor, entregando-Lhe seu coração para sempre por meio do voto de virgindade.
Seu amor a Jesus Sacramentado era tão grande que, quando O recebeu pela primeira vez das mãos do Papa Urbano I, na Catacumba de São Calixto, renovou a consagração de sua pureza e virgindade a seu Divino Esposo. Algum tempo depois, oficializou seu voto nas mãos do Pontífice, que relutou em aceitar tal oferecimento, por pertencer a jovem donzela a família tão importante e ser filha única.
Mudanças na vida da menina
Com a morte de seus pais, Cecília, ainda menor de idade, ficou sob a tutela de parentes pagãos. Estes procuravam minimizar seu sofrimento distraindo-a, levando-a aos divertimentos públicos e forçando o seu convívio com outros parentes e amigos. Temendo que tais ambientes maculassem sua alma inocente e amante a Deus, Cecília se refugiava na solidão de seu coração e cantava a Deus seu amor. Além de usar um apertado cilício que lhe castigava o corpo, carregava sobre o peito os Santos Evangelhos, para proteger-se dos ataques do demônio, do mundo e da carne.
Prometida por seus tutores a Valeriano, um dos jovens mais elegantes da nobreza de Roma, Cecília buscou o Santo Padre, dizendo-lhe que teria de se declarar cristã diante de todos, para poder cumprir sua promessa de castidade e virgindade. O Papa, iluminado por Deus e com a sabedoria de Vigário de Cristo, deu-lhe o conselho de ter prudência e encomendar-se à Santíssima Virgem.
No dia da celebração do matrimônio, a jovem passou todo o tempo em oração. No momento da festa, enquanto tocavam os concertos profanos de suas núpcias, Cecília cantava um hino de amor a Jesus em seu coração e pedia a divina proteção para ser fiel à entrega que fizera a Nosso Senhor.
A conversão de Valeriano
Estando a sós com seu esposo, Cecília revelou-lhe seu segredo: havia se entregado a Jesus Cristo como esposa e, se ele quisesse tocá-la, seu Anjo, que a acompanhava dia e noite, a defenderia. A princípio Valeriano não deu crédito a tal revelação e julgou que sua jovem e bela mulher o havia traído. Mas era tal a inocência e sinceridade dela que, movido pela graça, começou a crer em suas palavras. Cecília lhe disse que, se ele fosse tocado pelas santas águas do Batismo, poderia ver o Anjo da Guarda dela, e deu-lhe todas as indicações para procurar o Papa Urbano, nas catacumbas.
Valeriano saiu e encontrou-se com os cristãos que Cecília lhe indicara. Ela permaneceu no palácio rezando, cantando e tocando a cítara, pedindo a Deus a graça da conversão de seu nobre esposo. De fato, ele se converteu e se fez batizar. Quando regressou, encontrou sua esposa em oração, tendo junto de si um belo Anjo, que trazia nas mãos duas coroas de rosas e lírios perfumados. O Anjo depositou as coroas nas cabeças do casal, dizendo: “Conservai essas coroas com a pureza de vossos corações e santidade de vossos corpos; elas vieram do céu e nunca perderão sua frescura. Ficarão sempre perfumadas como agora, mas nenhum mortal poderá vê-las nem admirar suas belezas, senão depois de ter, como vós, merecido os favores do Altíssimo com a virtude da castidade.” E, por ter respeitado Cecília como esposa de Nosso Senhor, o Anjo disse que Valeriano poderia lhe pedir um favor que Deus lhe concederia. Ele pediu, então, a conversão de seu irmão Tibúrcio.
Com efeito, Tibúrcio se converteu, à semelhança de Valeriano, recebendo também do Anjo uma coroa de rosas e lírios celestiais, e a nobre casa dos Valérios passou a ser uma santa casa cristã, na qual sempre reinou a caridade para com os pobres e necessitados. Naqueles salões tantas vezes profanados por cantos pagãos, passaram a ressoar hinos e louvores ao Deus verdadeiro, acompanhados do delicado som da lira, tangida pelos dedos ágeis de Cecília.
A perseguição contra os cristãos
Passou-se o tempo e, com a ausência do Imperador romano, no ano 232, o prefeito que governava em seu lugar começou uma terrível perseguição contra os cristãos. Reconhecidos como tais os dois irmãos, Valeriano e Tibúrcio, que se dedicavam a recolher os restos de seus companheiros martirizados, receberam também eles a palma do martírio, mas não sem antes conseguir a conversão dos seus perseguidores mais diretos: Máximo e seus soldados.
Cecília, avisada, previu que seria ela a próxima vítima da cruel perseguição. Distribuiu todos os seus bens e entregou seu palácio ao Papa, para ser transformado numa igreja. Capturada, deixou seu perseguidor furioso com suas sábias respostas cheias de fé e de amor a Deus, e foi condenada a morrer sufocada pelos vapores das caldeiras do próprio palácio. Depois de um dia e uma noite dentro de um recinto hermeticamente fechado, foi ela encontrada viva, cantando e sorrindo, em meio a um ar fresco.
Decidiu-se, então, que devia morrer decapitada. Mas o carrasco, ao ver aquela jovem que, com a fortaleza de um guerreiro que entra no campo de batalha, oferecia o pescoço com tanto desejo de morrer, vacilou… deu-lhe um golpe, mas não a matou. Depois um segundo e um terceiro golpe, sofrendo Cecília feridas tremendas. A santa caiu, mas a cabeça continuou prodigiosamente unida ao corpo. A lei romana proibia dar um quarto golpe e o carrasco, cheio de espanto, fugiu.
Três dias passou Cecília entre a vida e a morte, sendo afinal encontrada pelos cristãos, que se apressaram em chamar o Sumo Pontífice. Este ainda teve tempo de ministrar-lhe os últimos sacramentos. Para manifestar sua fé na Unidade e Trindade de Deus, Santa Cecília mostrava àqueles que a assistiam o polegar de uma mão e três dedos de outra. Depois inclinando a cabeça, expirou.
Seu palácio é hoje a bela Igreja de Santa Cecília, no Trastévere, em Roma. Seu corpo foi encontrado em 821, pelo Papa São Pascoal, junto dos despojos de Valeriano, Tibúrcio, Máximo e Urbano I. Estava ela tal qual fora sepultada pelo Papa, com sua bela túnica tecida de ouro e trazendo o cilício que nunca abandonara.
Melodia celestial
Continua Santa Cecília ao longo dos séculos a cantar, nos céus, a melodia de seu amor a Deus, cujos ecos ressoam na Terra, atraindo ao Criador as almas dos músicos, seus protegidos, bem como as de todos os seus devotos. Santa Teresinha do Menino Jesus, virgem como Cecília, soube bem compreendê-la. A seu respeito deixou-nos o seguinte comentário: “Santa Cecília se assemelha à Esposa dos Cantares; sua vida foi apenas um canto melodioso, mesmo em meio das maiores provações, e isso se compreende, porque o Evangelho descansava sobre seu peito, e dentro de seu coração repousava o Esposo das Virgens, o amante por excelência.” ◊