Firme em seus princípios e mansa em suas maneiras, Madre Cabrini empreendeu uma epopeia missionária de grande envergadura, aliando a fé com as obras, numa época marcada pela Revolução Industrial.
No entardecer de 31 de março de 1889, acompanhada de seis discípulas, Madre Francisca Xavier Cabrini desembarcava em Nova York. Seu coração magnânimo estava pronto para se lançar numa epopeia evangelizadora e já naquele momento teria que lutar para salvar sua missão de um total fracasso, antes mesmo de ser iniciada.
Devido a uma falha de comunicação, as providências que haviam sido pedidas ao Arcebispo, Dom Michael Corrigan, antes de embarcarem elas na Itália não haviam sido tomadas. Ninguém se apresentava no cais para recebê-las… Anoitecia, e agora não sabiam sequer para onde ir. Em tão dramático impasse, as religiosas confiavam no límpido olhar de sua fundadora e no esboço de seu sorriso, que nunca a abandonava: tudo redundaria para a maior glória do Sagrado Coração de Jesus!
À Madre Cabrini, contudo, que sempre aliava a fé às obras, cabia tomar providências imediatas. Decidida a esclarecer o caso com o Arcebispo no dia seguinte, aceitou o jantar oferecido pelos padres carlistas, após o qual pernoitou com suas filhas num paupérrimo alojamento. Ali, enquanto as irmãs cochilavam, a superiora, de joelhos, rezava e aguardava a aurora. Os ruídos da cidade acompanhavam o sussurro de sua oração…
Missão nascida da obediência
Desde a juventude Francisca sonhava em ser missionária para levar o nome do Salvador à longínqua China. Mas à medida que amadurecia, as aspirações de sua alma rumavam para um único ideal: unir-se inteiramente a Deus e ser dócil instrumento para a execução de sua vontade.
Desta generosa atitude de entrega resultaram-lhe um equilíbrio e intrepidez de carácter, que completavam de forma maravilhosa sua modéstia natural. Tal conjunção de qualidades não passou despercebida a Dom Giovanni Battista Scalabrini, Bispo de Piacenza e mais tarde elevado à honra dos altares, o qual discerniu naquela jovem religiosa uma eficiente colaboradora para sua iniciativa em prol dos imigrantes italianos de Nova York.
Na época, Madre Cabrini encontrava-se em Roma para solicitar a aprovação pontifícia das regras do instituto missionário que fundara, e licença para ir ao Oriente. Não se sentiu, pois, atraída pela proposta de Dom Scalabrini. Considerava-a pouco viável e carregada de perigos, além de colidir com seus mais íntimos desejos. “O mundo é pequeno demais, para nos limitarmos a um só ponto dele. Quero abraçá-lo e chegar a todos os lugares”,1 disse ela ao prelado, em resposta a seu convite.
Empenhava-se, porém, em implorar a luz divina e em consultar pessoas de virtude e prudência acerca do projeto proposto pelo insistente eclesiástico. Não tardou ele a retomar o assunto e, desta vez, sorriu satisfeito ao ouvi-la contar um sonho que tivera: um longo cortejo de Santos desfilava à sua frente, seguidos por Nossa Senhora e pelo próprio Sagrado Coração de Jesus, que lhe dizia: “O que temes, minha filha? Tu levarás meu nome a litorais distantes; portanto, coragem e não temas. Estou contigo”.2
Afinal, foi a voz do Papa que serviu de bússola para orientar seus anseios missionários e para provar a incondicionalidade de sua obediência. Leão XIII tinha conhecimento da triste situação dos milhares de imigrantes italianos reduzidos a meras peças da engrenagem industrial no Novo Mundo. Com um escasso clero capaz de atendê-los em sua língua materna, muitos abandonavam a Fé Católica. Olhando a carismática religiosa ajoelhada a seus pés, o Sumo Pontífice lhe disse: “Não ao Oriente, mas ao Ocidente […]. Vai aos Estados Unidos e encontrarás os meios e um grande campo de trabalho”!3
Entrando com ufania na América
Compreende-se, então, o espírito com que Madre Cabrini rumou para o Palácio Episcopal naquela primeira manhã em solo americano. O Arcebispo a recebeu dando mostras de evidente pesar e explicou-lhe que havia sido enviada uma carta, comunicando que uma série de contratempos tornara inviável o plano de abrir o orfanato que seria seu primeiro campo de ação, a qual não chegara a tempo. “Eu não vejo outra solução, madre, senão que a senhora e suas irmãs retornem à Itália”,4 completou ele.
Fez-se um pesado silêncio, durante o qual Dom Corrigan observava sua interlocutora: o porte e o olhar revelavam tratar-se de uma pessoa de fibra. No entanto, não esperava a incisiva resposta da religiosa: “Excelência, isso é impossível. Vim aqui por determinação da Santa Sé, e aqui permanecerei”.5
Isto dito, encerrou com simplicidade a questão, entregando ao prelado um dossiê de cartas de referência de altas autoridades eclesiásticas romanas.
Vencido o primeiro obstáculo, a Santa, “firme em seus princípios e mansa em suas maneiras”,6 deu início à sua vastíssima obra missionária. Não demorou em forjar duradouros laços de amizade com Dom Corrigan quem, por sua vez, tornou-se seu admirador e defensor.
Em Nova York encontrou amplo campo para seu ardor missionário. Era preciso despertar os imigrantes de seu letargo espiritual, animá-los a assumir suas responsabilidades na Cidade de Deus e fazê-los reencontrar o consolo e a força que só os Sacramentos e a vida da graça conferem.
Sua atuação criou tal alvoroço, que atraiu o interesse da imprensa local. Um jornal do tempo assim noticiou a curiosa novidade: “Há várias semanas, um grupo de senhoras de olhos escuros, vestidas como Irmãs da Caridade, tem sido visto por toda a ‘Pequena Itália’, subindo estreitas escadas, descendo a imundas passagens subterrâneas, arriscando-se a entrar em lugares onde nem a polícia ousa penetrar. […] São dirigidas pela Madre Francisca Cabrini, uma dama de olhos grandes e sorriso atraente. Ela não fala inglês, mas é mulher de firme propósito”.7
Augúrios de uma vocação especial
Quão diferente este mundo da pequena e acolhedora Sant’Angelo Lodigiano, onde nascera! Nas singelas reminiscências domésticas registradas pelos Cabrini, se contava o pitoresco caso de alguns antepassados que partiram para Roma a fim de receber uma herança e regressaram às pressas ao perderem de vista a torre da igreja do vilarejo, tamanho era seu apreço pela terra natal…
A este bucólico recanto Francisca voltou as costas com decisão: o único lugar no mundo onde ela se recusava categoricamente a fazer uma fundação era Sant’Angelo Lodigiano. Esta atitude fazia brilhar perante suas discípulas a personificação do princípio evangélico: “Quem põe a mão no arado e olha para trás, não é apto para o Reino de Deus” (Lc 9, 62).
Aos olhos da família algum desígnio especial pairava sobre Francisca, a graciosa caçula de uma numerosa prole. Não fora por casualidade que sua entrada neste mundo, em 15 de julho de 1850, coincidira com a revoada de um bando de pombas alvíssimas ao redor da casa dos Cabrini. Seus pais e parentes logo puderam constatar que tinham sob seus cuidados um primor de inocência e, no devido tempo, descobriram nela algo a mais: era o germe de uma grandíssima vocação de fundadora, com carisma para atrair, influenciar, persuadir, marcar ambientes e mover corações.
Chamado missionário
Quando ainda era pequena, a família costumava reunir-se junto à lareira nas noites de inverno, para ouvir as impressionantes narrativas dos Anais da Propaganda Fidei. Na escola, Francisca analisava o grande atlas e traçava mentalmente rotas em longínquas terras de missões. Aos 13 anos, ao ouvir a pregação de um missionário, não conteve o entusiasmo e confidenciou à sua irmã:
— Rosa, quero ser missionária!
Sendo 15 anos mais velha, Rosa se incumbia de dar sólidos fundamentos a seu caráter. Com receio de que ela estivesse se tornando uma sonhadora, replicou-lhe: “Você, tão pequena e ignorante, como ousa pensar em ser missionária?”.8
Francisca nada disse, todavia redobrava sua fidelidade às promessas que a graça lhe fazia. Sem frêmitos, aplicava-se à oração, à recepção dos Sacramentos, ao estudo e aos afazeres, sendo intransigente consigo mesma e afável com os demais.
Mais tarde, vendo-a visitar os pobres, com sua irmã, um velho engenheiro comentou: “Ah, aquela ali é um anjo, não é um ser como nós; ela tem algo de sobrenatural”.9 Até a exigente Rosa lhe conferiria nota 10: “Francisca era perfeita na prática da obediência”.10
Durante os anos precedentes à fundação de seu instituto, teve a alma acrisolada por “perseguições, incompreensões, maus-tratos, e pela necessidade de viver com gente em nada capaz da vida religiosa”.11 Enquanto esperava um sinal claro da Providência, viu-se forçada a renunciar temporariamente à realização de seus altos ideais, obedecendo a autoridades eclesiásticas desejosas de aproveitar-se, a nível local, de seus extraordinários dons. Neste cadinho, atraía e formava um núcleo de jovens seguidoras, animando-as com a promessa: “Sede pacientes. Um dia sereis premiadas indo às missões”.12
Chegou por fim, em 1880, o prêmio da espera, através do seu Bispo Diocesano, Dom Domenico Gelmini: “Queres tornar-te uma missionária: a hora é propícia. Não conheço um instituto de irmãs missionárias; funda-o, então”. Sua resposta não se fez esperar: “Vou procurar uma casa”.13
Traços de seu carisma
Madre Cabrini, chamada “un vero generale – um verdadeiro general”,14 regozijava-se em sentir sua contingência e simpatizava com os espíritos admirativos e generosos. Tinha tanta consonância com o Apóstolo, que tomou por lema de seu instituto: “Tudo posso n’Aquele que me conforta” (Fl 4, 13).
Regia-se pelo princípio jesuíta de agir como se tudo dependesse de si, consciente de que tudo depende de Deus; como padroeiro escolheu o Apóstolo do Oriente, São Francisco Xavier; e fez ao Sagrado Coração de Jesus a oblação de seu ser. Para ela, quem quisesse se alistar no serviço do Divino Coração precisava apenas desapegar-se de si mesmo e em tudo depender de Deus.
Um exemplo que comprova este seu desapego foi a fundação de hospitais. Ela sentia muito mais propensão para atuar no âmbito da educação juvenil do que no setor da saúde. Entretanto, quando em sonho – ou quiçá em visão – contemplou Nossa Senhora com o véu posto para trás, percorrendo fileiras de leitos de enfermos, começou a erigir hospitais, os quais se tornariam instituições modelares.
Estando em missão no Colorado, suas religiosas desceriam até as entranhas da terra para levar uma palavra de esperança aos mineiros, lembrá-los de assistir à Missa, frequentar o confessionário e mandar os filhos à catequese. Nas prisões, arrancava as almas do desespero, inclusive fazendo chegar os últimos Sacramentos para alguns condenados à morte.
Missionária infatigável
Antes de iniciar qualquer fundação, Madre Cabrini se empenhava em viajar até o país para conhecer suas peculiaridades e avaliar a viabilidade do projeto, em colaboração com os eclesiásticos e as necessidades do lugar.
Sem embargo, não foram os planos, mas uma moção sobrenatural que a levou em 1898 à Inglaterra, país por ela chamado de Nação de Anjos. Em Londres, notava vestígios de um passado católico na cortesia com a qual os transeuntes atendiam a ela e suas religiosas, simples viajantes estrangeiras trajadas de negro. “Assim são tratadas as irmãs na Inglaterra; e Deus, que considera feito a Ele tudo quanto se faz a seus servos, abençoará esta nação e lhe concederá a graça de retornar à única Igreja verdadeira”.15
Em 1901, regressando de Buenos Aires, ela se deteve no Brasil, onde sentiu que “o Senhor já tinha preparado para nós uma vasta arena de empreendimentos”.16 Ao retornar ao porto de Santos sete anos depois, em 1908, comoveu-se por virem ao seu encontro barquinhos conduzindo suas saudosas filhas, acompanhadas de jovens estudantes do colégio de São Paulo, que a recebiam com entusiasmo. E ainda teve a grata surpresa de ser recepcionada pelos familiares das moças, na Estação da Luz da capital paulista. Ela fez mais duas pujantes fundações na Terra de Santa Cruz: na Tijuca e no Flamengo, no Rio de Janeiro.
Ao longo de 23 anos, Madre Cabrini percorreu a Europa e as três Américas, atravessando o oceano dezenas de vezes. Sua congregação atuava na vanguarda da educação, saúde e assistência social, campos nos quais as Irmãs Missionárias do Sagrado Coração continuam agindo nos cinco continentes.
O Papa Leão XIII acompanhava o admirável desabrochar da obra desta infatigável missionária. Disse-lhe ele em sua última audiência: “Madre Cabrini, tu tens o espírito de Deus. Leva-o ao mundo inteiro!”.17 Numa audiência anterior, em 1898, o mesmo Pontífice havia estimulado as duas irmãs norte-americanas que acompanhavam a fundadora: “Adquiram o espírito de Madre Cabrini. Adquiram-no, pois é um santo espírito”.18
Embarcando na missão eterna
Vivendo sempre pronta para o encontro com seu Divino Esposo, numa ocasião a Santa escreveu: “Sinto-me morrendo de amor por Vós. Para mim é uma grande dor, um lento martírio, não conseguir fazer mais por Vós, ó meu Senhor! Estendei todas as fibras do meu ser, querido Senhor, para eu poder mais facilmente voar até Vós!”.19
Tendo cumprido a missão que lhe fora confiada, o último fio que a separava da união definitiva com o Sagrado Coração de Jesus foi rompido no dia 22 de dezembro de 1917, no Hospital Columbus, por ela mesma fundado em Chicago. Como que por respeito ao seu modo de ser, a morte não a colheu na cama, mas alerta e trabalhando, preparando pequenos presentes de Natal para as crianças ali internadas.
Sentindo-se mal e percebendo que seu fim se aproximava, destrancou a porta de seus aposentos, sentou-se e tocou uma sineta para chamar as irmãs. Quando estas acorreram, um derrame já havia ceifado sua vida. Até neste último momento brilhava seu espírito lúcido e firme, mais preocupada com os outros do que consigo.
Tão súbita passagem condizia com os ímpetos de seu coração, pois certa estava de poder tudo n’Aquele que a fortalecia: “Sabeis, ó meu Jesus, que meu coração sempre foi vosso. Com vossa graça, amorosíssimo Jesus, Vos seguirei até o fim dos meus dias, rumo à eternidade. Ajudai-me, ó meu Esposo, pois quero ir com ardor e com pressa!”.20 ◊
Notas
1 SAVERIO DE MARIA, MSC. Mother Frances Xavier Cabrini. Chicago: Missionary Sisters of the Sacred Heart of Jesus, 1984, p.95.
2 Idem, p.100.
3 Idem, p.100-101.
4 Idem, p.112.
5 Idem, ibidem.
6 SALOTTI, Carlo. Preface. In: SAVERIO DE MARIA, op. cit., p.17.
7 SAVERIO DE MARIA, op. cit., p.119.
8 Idem, p.31.
9 Idem, p.38.
10 Idem, p.42.
11 IRMÃS PAULINAS. Mother Cabrini. Boston: St. Paul, 1977, p.31.
12 SAVERIO DE MARIA, op. cit., p.43.
13 Idem, ibidem.
14 Idem, p.73.
15 IRMÃS PAULINAS, op. cit., p.120.
16 SAVERIO DE MARIA, op. cit., p.307.
17 Idem, p.230.
18 Idem, p.211.
19 Idem, p.118.
20 DI DONATO, Pietro. Immigrant Saint. The Life of Mother Cabrini. New York: St. Martin, 1991, p.197.