“Sua vida permanece uma escola de vida cristã, de caminho reto, e mostra-nos que o centro de uma vida feliz, de uma vida autêntica, é a amizade com Jesus, o Senhor”.
Silêncio, oração, estudo, exímia prática da Liturgia… Eis algumas das principais características do estado monástico, abraçado por inúmeras almas de escol ao longo dos tempos. Uma vida de completa renúncia às glórias mundanas que, paradoxalmente, tornou os mosteiros eficacíssimo esteio da cultura e da Fé, em tantas épocas da História. Sempre foram eles — afirma um conhecido historiador — “focos de luz, de calor religioso, de vida litúrgica, que não só mantiveram acesa a fé e o fervor religioso nos povos cristãos, mas também evangelizaram e civilizaram nações inteiras, conquistadas para a Igreja de Roma”.1
No século XIII a vida social e religiosa da Europa era iluminada pela Ordem de Cister, cujas abadias irradiavam o “ora et labora” beneditino, renovado pela santidade, força da personalidade e eloquência arrebatadora de São Bernardo.
Em Helfta, no centro da atual Alemanha, florescia um desses mosteiros beneditinos do ramo feminino, o qual, tendo adotado usos e costumes cistercienses, tornou-se palco de grandes manifestações místicas. Nessa época, ali reluziram os primeiros albores da devoção ao Sagrado Coração de Jesus e conviveram três grandes Santas que marcaram a história do monaquismo: Santa Matilde de Magdeburgo, Santa Matilde de Hackeborn e Santa Gertrudes Magna, “uma das místicas mais famosas, única mulher da Alemanha que recebeu o apelativo ‘Grande’, pela estatura cultural e evangélica”.2
Alma eleita posta em vergel perfumado
Quase nada se conhece da primeira infância de Santa Gertrudes, nem mesmo quem seriam seus pais ou onde teria nascido. Supõe-se haver sido em Eisleben, na Alta Saxônia. O que se sabe ao certo é que ela veio à luz na festa da Epifania, em 6 de janeiro de 1256, e bem pequena ingressou no Mosteiro de Santa Maria de Helfta, onde foi acolhida na escola claustral, recebendo elevada formação intelectual e religiosa.
A pequena Gertrudes é assim descrita no panegírico que inicia a compilação dos seus escritos: “alma eleita que foi colocada [por Deus], por pura graça, como um lírio resplandecente no jardim de sua Igreja, em vergel perfumado, isto é, entre as almas santas, pois aos cinco anos a tirou dos trabalhos do mundo e a escondeu no tálamo da vida religiosa, e aumentou em tal grau sua pureza com todo gênero de flores, que apareceu graciosa aos olhos de todos e inclinou para ela a atração de muitos”.3
Mais tarde, o próprio Cristo revelou o motivo de havê-la escolhido tão pequena, sem pais ou parentes: “Eu a escolhi para habitar nela, porque Me deleito de que tudo quanto se ama nela é obra minha, de modo que quem não consegue entender os dons interiores — isto é, espirituais — que possui, ao menos ame meus dons exteriores que resplandecem nela, tais como sua inteligência, sua eloquência e outros que procedem de Mim, pelo que a afastei de todos os seus parentes para que ninguém a amasse pelo parentesco, mas que Eu seja a causa do amor que seus amigos lhe professem”.4
Coração inocentíssimo, inteligência brilhante
De fato, fora favorecida por Deus com uma inteligência brilhante e com muitos dons naturais, e em sua juventude demonstrava verdadeiro entusiasmo pelos estudos, adquirindo uma sólida cultura universal. Estudou latim, filosofia e teologia, e se comprazia com a leitura de autores clássicos, como Virgílio, Cícero e Aristóteles.
A música também a encantava. Destacava-se pela bela voz e recebeu o encargo de segunda cantora nos atos comunitários do mosteiro. A Liturgia das Horas canônicas e o cerimonial a atraíam sobremaneira, e muito contribuíram para seu contínuo crescimento espiritual. “Na Sagrada Liturgia seu espírito encontrava sustento para altas contemplações místicas, e ao se deparar com algum versículo, antífona, responsório, canto ou ação ritual, se elevava e se unia a Deus com um amor ardente”.5
Gertrudes era afável, simpática, comunicativa e possuía um temperamento muito vivo. Sua pureza reluzia na forma de ser e nunca sequer fixou a fisionomia de um varão, mantendo intacta não só a virgindade do corpo, mas sobretudo a de coração, conservando-se inocentíssima. Exímia no cumprimento da regra, era dócil, obediente e prestativa em todos as funções da vida comunitária, edificando quem com ela se relacionasse.
Inicia-se o convívio com o Divino Esposo
Entretanto, como sói acontecer com as almas eleitas, considerava-se apenas uma monja correta, que cumpria seus deveres com tibieza e estava dividida por um demasiado interesse pela cultura e pelos estudos. No Advento de 1280, estando prestes a completar 26 anos, sentia pesar-lhe o fardo da observância regular, o que a imergiu em grande melancolia e trevas interiores. Cria-se orgulhosa e dizia estar vivendo numa torre de vaidade e curiosidade, “na qual havia crescido minha soberba, que — oh, dor! — levava o nome e o hábito da Religião”.6
No dia 27 de janeiro de 1281 — data inesquecível em sua vida — dá-se a primeira visita mística de Jesus, a que chama de “conversão”, e inaugura uma série ininterrupta de convívio com seu Divino Esposo. Depois de Completas, estando no dormitório — relata Gertrudes —, “vi um jovem amável e delicado como de 16 anos, cujo aspecto exterior não deixava nada a desejar a meus olhos. Com rosto atraente e voz aprazível, disse: ‘Logo virá a salvação. Por que te consomes em tristeza? Porventura não tens quem te aconselhe, para assim se abater pela dor?’”. 7
Embora soubesse que fisicamente continuava no dormitório, parecia-lhe, contudo, encontrar-se no coro, no exato lugar onde fazia suas orações. Então o jovem lhe disse: “Não temas, Eu te salvarei e libertarei”. E estreitando-lhe a mão direita em sua destra terna e suave, acrescentou, para ratificar suas promessas: “Lambeste a terra com meus inimigos (Sl 71, 9) e o mel entre os espinhos. Por fim, volta-te a Mim e Eu te embriagarei com as torrentes de minhas divinas delícias (Sl 35, 9)”.8
Viu, então, um vale que a separava d’Ele, de uma largura tal que não era possível divisar seu princípio nem seu fim, e cuja parte superior estava coberta de espinhos. Ardia em desejo de estar ao lado d’Aquele que tanto a atraía e não encontrava meios para isto. Foi então arrebatada para junto d’Ele e pôde, afinal, contemplar as joias das sagradas chagas que brilhavam naquelas mãos, reconhecendo a identidade de seu Criador e Redentor. Rendendo-Lhe suas mais humildes e apaixonadas graças, ficou por Ele cativada para sempre: “pacificada por uma alegria espiritual inteiramente nova, me dispus a seguir em pós do delicado odor de vossos perfumes e compreender quão doce é vosso jugo e leve vossa carga (Mt 11, 30), o que antes me parecia insuportável”.9
Gertrudes renunciou à literatura e retórica para entregar-se sem reservas ao amor de Deus. Sua “conversão” foi também intelectual, pois a partir desta experiência mística trocou os estudos profanos pelos sagrados, dedicando-se com afinco à teologia escolástica e mística, à Sagrada Escritura e aos grandes Padres e Doutores da Igreja, em especial Santo Agostinho, São Gregório Magno e São Bernardo.
Espiritualidade da união e do abandono
A íntima união com Deus e o abandono à sua sacratíssima vontade marcavam a espiritualidade de Santa Gertrudes. Num dia de inverno, encontrou uma breve oração que pedia a Nosso Senhor para n’Ele respirar, como ar ameno, e desejá-Lo como a verdadeira felicidade. Ademais, pedia que suas santíssimas feridas lhe fossem impressas no coração, “a fim de que se excite a dor de vossa compaixão e se acenda em mim o ardor de vosso amor. Dai-me também que toda criatura seja nada para mim e só Vós sejais deleitável a meu coração”.10
Esta oração a agradou tanto e explicitava de tal modo o anseio que levava na alma, que a repetia incontáveis vezes, com fervor crescente. Passados alguns dias, depois de Vésperas — conta ela —, “repassando com devoção em minha memória estas coisas, senti que, no mais fundo de minha indignidade, eu recebia tudo o que tal oração havia pedido, isto é, que no interior de meu coração e, por assim dizer nos lugares determinados, se imprimiam os estigmas, dignos de respeito e de adoração, de vossas santas chagas, chagas pelas quais Vós sanastes minha alma e a embriagastes com o néctar de vosso amor”.11
Em outra ocasião, manifestou ela a Jesus as labaredas que consumiam sua alma: “O que desejo, mais que todos os gozos, é que se cumpra, em mim e em todas as criaturas, vossa dulcíssima e laudabilíssima vontade. E para que isto se realize, estaria disposta a expor cada um de meus membros a qualquer sofrimento”. Ao que lhe respondeu o Senhor: “Já que com uma piedade tão viva te entregaste a promover minha vontade, eis que, segundo minha habitual benevolência, recompenso teus esforços, concedendo-te que apareças tão agradável a meus olhos como se nunca houvesse omitido minha vontade na mínima coisa”.12
Apesar da falta de saúde que a obrigava a guardar o leito com frequência, não eram poucos os que vinham se aconselhar com ela, devido à sua grande fama de santidade. Para todos “tinha uma palavra doce e penetrante, sua eloquência era tão hábil e seu discurso tão persuasivo, eficaz e sedutor, que a maior parte dos que a ouviam davam testemunho evidente do espírito de Deus que falava nela. […] A uns inspirava por suas palavras o arrependimento do coração que devia salvá-los, a outros iluminava acerca do conhecimento de Deus ou de suas próprias debilidades, a alguns lhes outorgava o alívio do alegre consolo, e inflamava os corações de outros com o fogo abrasador do amor divino”.13
Primícias da devoção ao Sagrado Coração de Jesus
Precursora da devoção ao Sagrado Coração de Jesus — consagrada por Santa Margarida Maria Alacoque apenas no século XVII — com algumas centenas de anos de antecipação, penetrou Santa Gertrudes no amor íntimo de seu Esposo, não com a vocação de vítima expiatória pelos pecados do mundo, mas repousando a cabeça em seu peito e degustando suas divinas e misericordiosas pulsações, como São João Evangelista. Por isso pode-se afirmar ser ela teóloga do Sagrado Coração, fornalha ardente de caridade, cuja chaga lhe representa uma porta flamejante de deleites, onde encontra abrigo e se purifica.
Um dia, durante a Santa Missa, no momento da elevação, ao oferecer ao Pai a Sagrada Forma, em reparação por suas imperfeições e negligências, conheceu que sua alma fora aceita pela Divina Majestade do mesmo modo que acolhia a oblação do Cordeiro sem mancha sobre o altar, naquele instante. Enquanto dava gozosas graças por tão maravilhoso favor, “o Senhor a fez compreender que todas as vezes que alguém assiste com devoção à Missa, unindo-se a Deus que neste Sacramento Se oferece a Si próprio pela salvação do mundo, Deus Pai o contempla com a mesma complacência que à Hóstia Sacrossanta que Lhe é oferecida”.14
Conhecedora da entranhada união entre Mãe e Filho, Gertrudes sabia por experiência mística que a devoção a Maria é essencial para a intimidade com o Coração de Jesus, por ser Ela o tabernáculo agradabilíssimo da Sabedoria Eterna e Encarnada. Por isso Lhe pedia “um coração adornado com tantas virtudes, que a Deus também aprouvesse habitar nele”,15 com gáudio similar ao que sentia por habitar n’Ela.
Os Exercícios espirituais — outra das obras por ela compostas que chegaram até nós — apresentam admiráveis paráfrases de textos litúrgicos, com precisão teológica e fascinante poesia. Não obstante, é no Arauto do amor divino onde ela registra a infinita misericórdia do Sagrado Coração de Jesus.
Ante certa relutância da parte de nossa Santa em anotar o que lhe era revelado, insiste o Divino Salvador: “Se tu sabes que minha vontade, a que ninguém pode resistir, é que escrevas este livro, por que te inquietas? Eu mesmo insto àquela que escreve que o faça, a ajudarei fielmente e guardarei ileso o que é meu. […] Este livro se chamará Legatus divinæ pietatis, porque nele se degustará de algum modo a superabundância de minha divina piedade. […] Concedo por virtude de minha divindade que quem o ler com fé sincera, humilde devoção e piedosa gratidão, para minha glória, e buscar nele sua edificação, obterá o perdão de seus pecados veniais e alcançará a graça, consolo espiritual e disposição para graças mais elevadas”.16
Uma escola de vida cristã
Falecida em 17 de novembro de 1302, Santa Gertrudes figura hoje como estrela de primeira grandeza entre os místicos católicos. Seus escritos, que revelam uma vida de insigne santidade e eminente doutrina, bem podem estar ao lado dos de Santa Teresa de Ávila, Santa Catarina de Sena, Santa Teresinha do Menino Jesus ou Santa Hildegarda de Bingen, as grandes Doutoras da Igreja.
“A existência de Santa Gertrudes permanece uma escola de vida cristã, de caminho reto, e mostra-nos que o centro de uma vida feliz, de uma vida autêntica, é a amizade com Jesus, o Senhor. E esta amizade aprende-se no amor pela Sagrada Escritura, no amor pela Liturgia, na fé profunda, no amor por Maria, de maneira a conhecer cada vez mais realmente o próprio Deus e assim a verdadeira felicidade, a meta da nossa vida”.17 ◊
Pedido de declaração como Doutora da Igreja
Desde 2012, as ordens Cisterciense, Trapista e as congregações integrantes da família beneditina estão promovendo a postulação da declaração de Santa Gertrudes como Doutora da Igreja, pedido ao qual se têm unido personalidades como o Arcebispo de Milão, Cardeal Angelo Scola, o Arcebispo de Florença, Cardeal Giuseppe Betori, o Arcebispo do Rio de Janeiro, Cardeal Orani João Tempesta, OCist, além de numerosos Bispos — entre os quais 147 prelados da CNBB —, teólogos e especialistas.
Mais informações a respeito desta causa, bem como as pautas para realizar uma carta postulatória em apoio ao empreendimento, podem ser encontradas na página da Conferência de Comunidades Monásticas do Cone Sul, http://www.surco.org/santagertrudis, ou escrevendo para a representante da Conferência de Intercâmbio Monástico Brasileiro na causa de Santa Gertrudes no Brasil, Ir. Andrea da Trindade, OSB, Mosteiro Santíssima Trindade, Santa Cruz do Sul-RS (ir.andreadatrindade@gmail.com).
Notas