A perseguição e as tristezas sofridas desde a mais tenra infância tornaram sua alma forte e audaz, mas sem brutalidade; sábia, sem a mancha da soberba, e dotaram-na de um coração caridoso para com os seus.
A o contemplarmos as paredes semiderruídas da famosa Abadia de Whitby, na Inglaterra, vêm-nos à memória as palavras que escreveu Dr. Plinio Corrêa de Oliveira como epígrafe de sua vida: “Quando ainda muito jovem, considerei enlevado as ruínas da Cristandade, a elas entreguei o meu coração, voltei as costas ao meu futuro, e fiz daquele passado carregado de bênçãos o meu porvir.”[1]
Com efeito, a grandeza nobre, altaneira e silenciosa deste edifício severamente castigado pelo correr dos séculos parece sussurrar-nos no fundo do coração a presença de “um passado carregado de bênçãos”. E entre os exemplos de virtude que marcaram de modo indelével o antigo centro monástico encontra-se a personalidade possante de Santa Hilda.
Modelo de mulher forte, enérgica, cheia de sabedoria profética, consultada como oráculo pelos mais entendidos e ouvida pelos mais poderosos, ela fez jus ao seu nome, que em diversas línguas significa “batalha”, “a heroína” ou “a mulher guerreira”.[2] Mas ela foi, ao mesmo tempo, mãe e guia espiritual numa sociedade em que a lei da força imperava nos costumes.
Luz ocultada pela sombra da perseguição
Pelos relatos de São Beda, o Venerável, sabemos que Hilda nasceu no ano de 614, filha do príncipe Hererico de Deira, primitivo reino localizado no nordeste da atual Inglaterra, e de sua esposa, Bregusvita.
O nobre casal fora obrigado a fugir da ferocidade de Etelfrido, governante do reino vizinho da Bernícia, que depois de usurpar o trono, como soia acontecer entre aqueles povos “amantes do poder obtido pela violência”,[3] procurava exterminar os legítimos herdeiros. Em consequência, Hererico refugiou-se em Elmet, pequeno reino situado no atual condado de Yorkshire.
A missão das almas providenciais se inicia muitas vezes no ventre materno, e assim sucedeu com nossa Santa. Certa noite, Bregusvita sonhou que seu marido lhe tinha sido arrebatado de modo repentino e, embora ela o procurasse com afinco, não achava o mínimo rastro. Cansada e aflita após ansiosa busca, encontrou um belo colar sob suas vestimentas, o qual pareceu-lhe brilhar com um tal resplendor que iluminava todo o país.[4]
De fato, algum tempo depois Hererico foi traiçoeiramente envenenado na corte de Elmet por agentes de Etelfrido, e Hilda veio ao mundo já órfã. Seus primeiros anos se passariam à sombra da perseguição, aguardando o momento em que sua luz pudesse iluminar a terra.
Infância no exílio
A infância de Hilda transcorreu no paganismo. Naqueles primórdios do século VII, a ilha que hoje conhecemos como Inglaterra estava colonizada pelos anglos, saxões e jutos. Cada um desses povos seguia suas próprias práticas e crenças religiosas. Entretanto, havia no sul alguns reinos recentemente cristianizados, e a vizinha Irlanda era já uma “terra de santos”.
Decerto ouviu a menina narrar as devastações que Etelfrido perpetuava contra os herdeiros do trono de Deira, as penúrias e dificuldades que seu tio-avô, Eduíno, exilado no Reino da Ânglia Oriental, suportava para fugir de um assassinato iminente e até a narração de certo acontecimento misterioso por meio do qual esse seu parente recebera a promessa de um futuro auspicioso para a família.
Pagão como todos os seus, Eduíno conhecera por visão a existência de um único Deus, a quem deveria servir. Apresentara-se-lhe um varão coberto de chagas e coroado de espinhos, mas luminoso, que prometia livrá-lo das angústias que sofria, combatendo contra os seus inimigos; garantia-lhe a coroa que por direito e justiça lhe pertencia nesta terra e uma outra coroa, imperecível, após a morte.
De fato, Etelfrido foi derrotado e morto contra todo prognóstico pelo rei da Ânglia Oriental, o qual instalou Eduíno no governo da Nortúmbria, reino formado pela união entre Deira e Bernícia. Todos os seus familiares, entre os quais a pequena Hilda, puderam então retornar do degredo.
Forte sem brutalidade, sábia sem soberba
Algum tempo depois, Eduíno contraiu núpcias com Santa Etelburga, princesa de Kent. Foi ela o instrumento escolhido por Deus para fazer a luz da Fé brilhar naquelas terras. A futura rainha levou consigo São Paulino, enviado de Roma nas chamadas missões gregorianas, e este foi aos poucos evangelizando o Rei Eduíno e a nobreza nortumbriana. Na Páscoa do ano 627, o monarca recebeu, junto com toda a corte, o Sacramento do Batismo.
Após seis anos de florescente reinado, Eduíno recebeu a coroa de glória imperecível que lhe fora prometida: dois governantes pagãos de outros reinos da Grã-Bretanha, Cadwallon da Venedócia e Penda da Mercia, invadiram a Nortúmbria, matando o rei em campo de batalha e destruindo a paz que Cristo havia feito triunfar na região.
Uma vez mais fugindo da morte, Hilda refugiou-se na corte de Kent, acompanhando Santa Etelburga. Durante este período os horrores da guerra, a perseguição e as tristezas do exílio foram os instrumentos utilizados por Deus para modelar sua alma, tornando-a forte e audaz, mas sem brutalidade, sábia, sem a mancha da soberba, e dotando-a de um coração tão caridoso que “todos aqueles que a conheceram chamavam-na de mãe por sua singular graça e piedade”.[5]
Santo Aidano se instala na Nortúmbria
Nesse meio tempo, Deus trabalhava de modo invisível os acontecimentos a fim de preparar para Si um reino de Anjos na terra dos anglos, tal como o grande São Gregório vislumbrara: “Non angli, sed angeli si cristiani”, teria afirmado o Pontífice ao contemplar membros desse povo em Roma pela primeira vez.
Ao saber da morte de Eduíno e que a coroa nortumbriana fora usurpada por Cadwallon, Osvaldo, filho do Rei Etelfrido, formou um pequeno exército e, confiando na ajuda de Deus, marchou contra os invasores e os derrotou. Assumindo o trono como rei legítimo, fez voltar à Nortúmbria os nobres exilados. Hilda era já uma jovem de vinte e um anos.
Anos antes, quando Oswaldo fugiu para a Escócia com sua mãe e seus irmãos, a família inteira convertera-se à Fé católica e a educação das crianças foi confiada aos beneditinos do Mosteiro de Iona, fundado por São Columbano. Tendo-se tornado ali um fervoroso católico, a primeira providência do novo monarca foi pedir o auxílio dos monges dessa abadia para evangelização do reino, pois o povo havia abandonado o cristianismo durante o domínio pagão.
Foi assim que o monge irlandês Santo Aidano e alguns companheiros da famosa abadia escocesa vieram para a Nortúmbria e fundaram um mosteiro na Ilha de Lindisfarne, que seria o foco da evangelização de todo o norte da Inglaterra. O próprio rei servia-lhes como intérprete, uma vez que este santo beneditino conhecia pouco do inglês, e juntos percorreram as vastidões do reino pregando, batizando e denunciando os vícios que imperavam na sociedade.
Santo Aidano “nunca ensinava nada que ele próprio não praticava”.[6] Com seu exemplo atraiu para a santidade numerosas almas, entre elas a de Hilda, que logo se sentiu atraída pela força de sua personalidade.
Nova abadessa de Hartlepool
Convivendo de perto com o santo varão e admirando sua virtude, comprovada em todos os ambientes, “Hilda decidiu servir só a Deus na vida religiosa”.[7] Não havia, entretanto, nenhum mosteiro no reino onde ela pudesse ingressar, e por isso pensou em imitar sua irmã, que morava no convento de Chelles, na França.
A tradição conta que ela ficou um ano preparando-se para o passo que daria; contudo, Santo Aidano enviou-lhe uma mensagem indicando que sua vocação não se cumpriria na felix Francia, mas na turbulenta Nortúmbria… Sem duvidar um instante, Hilda renunciou ao propósito cultivado ao longo de meses e colocou-se à disposição de seu diretor. Contava trinta e três anos de idade à época.
Reza o velho adágio que “nada de grande se faz de repente”, e no plano espiritual esta verdade se verifica de modo eminente: o início da vida religiosa de Hilda foi tão modesto que nem mesmo o nome de seu primeiro mosteiro passou para a História. Sabe-se somente que Santo Aidano proveu-lhe um terreno onde, numa pequena construção, abraçou a disciplina religiosa juntamente com algumas companheiras.
Aos poucos, cativadas pela perseverança e pelo exemplo de amor a Deus que emanava do pequeno mosteiro, muitas outras jovens decidiram seguir o caminho de perfeição encetado por Santa Hilda. Tempos depois, Santo Aidano transferiu as religiosas para um mosteiro em Hartlepool, cuja abadessa era Santa Bega.
Também de origem principesca, esta Santa irlandesa tornou-se grande amiga de Hilda, a qual muito aprendeu com ela sobre a vida consagrada. Entretanto, logo ficou claro que a vocação de Santa Bega era de um teor mais contemplativo e austero. Por isso, partiu ela para uma ermida, deixando Hilda como abadessa do mosteiro.
Whitby, fruto de uma promessa
Enquanto Hilda progredia exercendo com sabedoria o cargo de abadessa, a Nortúmbria era atormentada mais uma vez pela guerra, agora, tristemente, entre reis católicos.
Com a morte de Osvaldo o reino novamente se dividiu, ficando seu irmão Osvio detentor do poder em Bernícia – onde se encontrava o mosteiro de Hilda –, enquanto Osvino, primo de Eduíno, se tornava rei de Deira, onde Santo Aidano desenvolvia florescente missão apostólica.
Ora, a propósito de um desentendimento entre os dois soberanos, Osvio enviou emissários para matar secretamente Osvino. A notícia de que um rei batizado fora o fautor de tal crime resultou demasiado cruel para Santo Aidano, que veio a falecer onze dias depois do monarca. Hilda perdeu assim seu guia e conselheiro. No entanto, ela soube oferecer com resignação este sacrifício que a Providência lhe pedia. Do holocausto de seu amor filial surgiria o mais valioso legado de sua obra.
O Rei Osvio, vendo-se ameaçado pelo feroz pagão Penda, ofereceu a Deus doze terrenos para a fundação de mosteiros em reparação pelo seu pecado, e prometeu consagrar-Lhe a vida de sua pequena filha, Eanfleda. Enfrentando um exército trinta vezes superior ao seu, Osvio saiu vitorioso.
Fruto dessa promessa foi a Abadia de Whitby, da qual Santa Hilda se tornou abadessa e na qual passou a morar a pequena princesa, de apenas um ano de idade.
Whitby logo se tornou o centro da Cristandade na Grã-Bretanha. A comunidade se compunha de monges e freiras, com dependências separadas para os dormitórios e um único ponto comum, a igreja.
Havia também uma completa separação entre o noviciado e a abadia. Manter a vida comunitária entre pessoas dotadas de caráter tão independente e bélico requeria uma prévia purificação das mentalidades e costumes dos futuros monges. Santa Hilda o conseguiu de tal forma que “aqueles que saíam de seu mosteiro para servir às almas eram pessoas excepcionalmente equilibradas”.[8]
Uma renúncia amorosa e obediente
No ano 664, uma discrepância com relação à festa da Páscoa, celebrada em datas diferentes pelos cristãos adeptos das tradições celtas e os que seguiam os costumes de Roma, levou o Rei Osvio a convocar um sínodo na Abadia de Whitby.
As tradições cristãs celtas, fruto do apostolado fecundo de São Patrício e São Columba, foram trazidas à Nortúmbria pelos monges de Iona. Os partidários destas tradições afirmavam que a Páscoa era celebrada por eles na mesma data em que, segundo acreditavam, o próprio São João Evangelista o fizera. Outros, porém, reputavam indispensável adotar o calendário da Igreja de Roma, uma vez que somente ali se encontrava o poder das chaves.
Tal argumento em favor da prerrogativa do poder papal era irrefutável, e nenhum dos presentes se opunha à autoridade do Sumo Pontífice. Assim, ao final do sínodo, o Rei Osvio tomou a decisão de adotar os costumes romanos, e isso implicou também em mudanças na estrutura eclesiástica da Nortúmbria.
Mesmo amando até o fundo da alma os costumes celtas, Santa Hilda não se opôs às novas determinações, acatando-as com verdadeira humildade e obediência. No entanto, causou-lhe sofrimento o fato de os monges de Iona, descontentes com o resultado do sínodo, terem retornado para a Escócia.
Magnânima até na hora da morte
Antes de Santa Hilda finalizar sua longa caminhada terrena, aprouve a Deus enviar-lhe uma última purificação pela qual “sua virtude seria aperfeiçoada na fraqueza”.[9] Ao longo de seis anos, sofreu ela de uma doença que lhe produzia terríveis febres. Entretanto, nem por um momento deixou-se abater pelas penas que sofria, e mesmo em seu leito de dores administrou e dirigiu os assuntos da Abadia e do recém-fundado mosteiro de Hackness com toda diligência.
Por fim, na noite de 17 de novembro do ano 680, após receber o Viático, Santa Hilda passou para a eternidade na alegria do dever cumprido. Sua morte foi presenciada só por alguns, mas conhecida misticamente nas dependências do noviciado, onde uma religiosa que a amava profundamente ouviu sinos tocarem no meio da noite e viu sua mãe espiritual entrando no Céu. Também Santa Bega teve uma visão da nobre amiga sendo levada em glória pelos Anjos para o Paraíso.[10]
A piedade e a tradição locais recordam diversos milagres operados pela intercessão de Santa Hilda. Entre os mais conhecidos está a petrificação de venenosas víboras que infestaram as proximidades da abadia quando da sua fundação.
Cem anos após sua morte, bárbaros dinamarqueses invadiram a Nortúmbria e destruíram a antiga abadia. E, depois de dois séculos de silêncio, os cânticos voltaram a ressoar novamente no lugar, na nova abadia beneditina ali erigida em honra a São Pedro. São ruínas desse prédio, cuja construção terminou nas primeiras décadas do século XX.
A abadia de Whitby foi um dos primeiros centros monásticos fechados por ordem de Henrique VIII, em 1540. O tempo a tornou um edifício em ruínas, mas suas paredes ainda serviam como ponto de orientação para os navegantes. Durante a Primeira Guerra Mundial foi bombardeada pelo exército alemão, e hoje só restam em pé algumas paredes. Porém, o nome de Hilda, guerreira e mãe da Cristandade anglo-saxã, consta como tal no Livro da Vida do Cordeiro e com Ele brilhará por toda a eternidade. ◊
Notas
[1] CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Meio século de epopeia anticomunista. São Paulo: Vera Cruz, 1980.
[2] Cf. BROWN, H. E. For God Alone. Phoenix: Leonine Publishers, 2016, p. 2.
[3] SIMPSON, Ray. Hilda of Whitby. A spirituality for now. Abingdon: The Bible Reading Fellowship, 2014, p.9.
[4] SÃO BEDA, O VENERÁVEL. The Ecclesiastical History of the English Nation. Oxford-London: James Parker and co., 1870, L.IV, c.23, p.345-346.
[5] Idem, p.345.
[6] O.S.B, op. cit., p.7.
[7] BROWN, op. cit., p.3.
[8] ELLISON, Clare. Saint Hilda of Whitby. Farnworth: The Catholic Printing Company, 1964, p.9.
[9] SÃO BEDA, O VENERÁVEL, op. cit., p.346.
[10] Cf. SÃO BEDA, O VENERÁVEL, op. cit., p.346-347.