Alma firme e pervadida de fé, não temeu esta jovem fundadora enfrentar tormentas e dificuldades, sem se abalar, na consolidação da obra que lhe fora encomendada pela Providência.
O desânimo, meu pai, está muito longe do meu espírito. […] Crede, por fim, que estamos bem convencidas de não haver em nós a santidade exigida pelas obras de Deus e, assim, de minha parte, eu não me surpreenderia com nenhuma espécie de insucesso”. 1
Estas categóricas palavras, dignas de um ancião experimentado em mil batalhas, fluíam, entretanto, da pluma de uma jovem de apenas 24 anos… Acabava ela de ver-se abandonada por seu diretor espiritual e era aconselhada pelo superior eclesiástico a suprimir a congregação religiosa que de suas mãos nascia, mas tratava do assunto com extraordinário desapego e elevação de espírito.
De onde vinha tamanha firmeza?
Tendo frequentado desde pequena ambientes indiferentes ou contrapostos à Religião, esta jovem fundadora soubera ver quão vazias e instáveis são as coisas desta vida — a riqueza ou a pobreza, a inteligência, o prazer e até mesmo o convívio familiar —, quando falta o essencial: a fé.
Apoiada neste princípio, gravado a fogo em sua alma, Santa Maria Eugênia de Jesus erigiu uma magnífica obra em meio a terríveis tormentas. E tal foi sua integridade diante das dificuldades, que o Papa Pio XII não duvidou em qualificá-la de “mulher forte, mulier fortis, em toda a força do termo: sempre pronta a cumprir a vontade divina, de ânimo intensamente piedoso, de coração transbordante de amor a Cristo, de inteligência robusta, luminosa, vasta, de caráter firme, resoluto, continuamente direcionado para o objetivo proposto”. 2
Uma divisa olvidada pelos Milleret
Nihil sine fide — nada sem fé — era, não por acaso, a divisa da família em cujo seio nascera Ana Eugênia Milleret de Brou, a 25 de agosto de 1817. Contudo, no início do século XIX, tal lema se convertera tão só em uma bela frase gravada no brasão familiar. Jacques Milleret, pai de nossa Santa, preferia guiar-se pelas ímpias doutrinas de Voltaire, enquanto sua esposa, Eleonora Eugênia de Brou, descendente da nobreza da Bélgica e Luxemburgo, tampouco parecia empenhada em reavivar este ideal.
A infância de Ana Eugênia transcorria farta e tranquila em Metz, sua cidade natal. O pai, além de possuir ali uma mansão, era deputado de Moselle, dono de três bancos e de uma vasta propriedade em Preisch, onde uma exuberante natureza tornava especialmente agradável a estadia nas melhores épocas do ano. Não faltavam à menina as brincadeiras em companhia dos irmãos, nem a sólida educação condizente com sua categoria social. Falava com perfeição o francês e o alemão, e era instruída pela mãe na prática das virtudes naturais, pois a levava a visitar os pobres e enfermos, e a ensinava a ser honesta e generosa.
Todos os membros da família participavam de certas cerimônias da Igreja, às quais, naquele tempo, era quase uma obrigação social comparecer. Todavia, sua vida de piedade reduzia-se praticamente só a isso. As crianças receberam os Sacramentos, mas sua educação religiosa fora negligenciada. “Minha ignorância dos dogmas e ensinamentos da Igreja era inconcebível. No entanto, eu participara das aulas de catecismo com os outros meninos, fizera minha Primeira Comunhão com amor, e Deus mesmo me concedera graças que foram, junto com vossas palavras, o fundamento de minha salvação”, 3 escreverá ela mais tarde ao padre Lacordaire.
Uma dessas graças se deu ao receber Jesus Eucarístico pela primeira vez. Sentira, naquele momento, a pequenez das coisas deste mundo e ouvira em seu coração estas proféticas palavras: “Perderás tua mãe, mas serei para ti mais que uma mãe. Virá o dia em que deixarás tudo aquilo que amas para Me glorificar e servir àquela Igreja que não conheces”. 4 Ficara depositada na alma da jovem aristocrata uma possante semente. Daí a alguns anos a veremos florescer.
Radical mudança na vida da família
Ana Eugênia já experimentara o amargo sabor do infortúnio quando morreram seus dois irmãos, ainda pequenos. Mas em 1830 uma tragédia familiar provocou uma radical mudança na vida dos Milleret. Inábeis operações do senhor Jacques fizeram-no perder a fortuna. Viram-se obrigados a vender todos os imóveis e bens. Cessaram as festas e, ademais, Ana Eugênia, com 13 anos, teve que partir para Paris com a mãe, enquanto o pai permanecia em Metz com seu irmão Luís, apenas dois anos mais velho, de quem ela era inseparável.
Outros dramas sobrevieram. Em 1832, uma epidemia de cólera assolou Paris e, em poucas horas, Ana Eugênia viu a mãe perecer, sem sequer dar tempo para serem-lhe administrados os últimos Sacramentos.
Órfã aos 15 anos, foi acolhida por uma amiga da mãe, a senhora Doulcet, cujo marido era coletor geral de impostos em Châlons. Os prazeres mundanos lhe voltaram a fazer parte da vida e sua virtude da fé, então tão pouco alimentada, vacilava diante das habituais conversas anticlericais daqueles ambientes. Algumas réstias da luz penetrada em sua alma no Batismo e na Eucaristia, porém, se mantinham. “Deus, em sua bondade, deixara-me um vínculo de amor. Eu podia duvidar da imortalidade da alma, mas rejeitava espontaneamente tudo quanto atacava o Sacramento do Altar”. 5
Aos 18 anos, as diversões não a satisfaziam. Sua inteligência, muito viva, fazia-lhe perceber que a vida não podia ser tão vazia e carente de sentido. “Meus pensamentos são um mar agitado que me cansa, me pesa. Tanta instabilidade, nunca o repouso, um ardor que sempre ultrapassa os limites do possível. Às vezes, absorvida por questões bem acima do meu alcance e sobre as quais eu faria melhor em não pensar: as mais altas questões do mundo. Eu queria saber tudo, analisar tudo, e lançando-me em regiões amedrontadoras, vou ousadamente interrogando todas as coisas, perseguida por não sei que necessidade inquieta de conhecimento e de verdade, que nada pode saciar”. 6
“Eu estava realmente convertida”
No fim de 1835, seu pai mandou-a para a casa de uma prima, a senhora Foulon. Tanto ela quanto as filhas eram muito piedosas, fato que pôs a jovem Milleret em um perigo talvez maior de perder a fé, porque elas “eram aborrecidas, pareciam-me estreitas”, 7 comentaria a Santa.
Sem embargo, soara a hora da Providência. Seguindo o costume parisiense de seu século, foi ouvir na Catedral de Notre Dame os sermões dominicais do padre Henri Lacordaire, no auge da fama como pregador. A jovem sentiu-se intimamente tocada. “Vossa palavra” — escreveria poucos anos depois ao sacerdote dominicano — “respondia a todos os meus pensamentos, explicava o melhor de meus instintos, completava meu entendimento das coisas e reanimava em mim a ideia do dever, o desejo do bem, já prestes a definhar em minha alma; enfim dava-me uma generosidade nova, uma fé que nada mais devia fazer vacilar”. 8
Ana Eugênia encontrara o eixo de sua existência. “Minha vocação nasceu em Notre Dame”, 9 gostava de dizer. Acabariam as provações? Não! Pelo contrário, estas haveriam de se tornar mais penosas e intensas ao longo de sua vida; mas ela firmara sua fé sobre a rocha eterna e nada mais a podia abalar. “Eu estava realmente convertida e sentia o desejo de entregar todas as minhas forças, ou melhor, toda a minha fraqueza a esta Igreja que, doravante, era a única a meu ver que possuía o segredo e o poder do bem”. 10
A jovem comunicou ao padre Lacordaire suas aspirações e ele respondeu: “Reza e espera”. 11 Ana Eugênia obedeceu.
Albores da fundação
Enquanto esperava, ela sonhava “ser um homem, para, como eles, ser profundamente útil”. 12 “Com seu olhar, rico de vigor viril e ao mesmo tempo de feminina agudeza”, 13 a jovem havia analisado a fundo os males da sociedade laicizada em que vivia e lamentava-se pela ausência de formação religiosa de tantas jovens da aristocracia liberal da época: “Filha de uma família infelizmente pouco cristã, educada numa sociedade que o era menos ainda, ficara sem minha mãe aos 15 anos e, pelas circunstâncias da vida e por causa de minha posição, tivera muito mais relações e conhecimento do mundo do que normalmente se tem nesta idade. Eu pudera compreender a infelicidade da classe social à qual eu pertencia, e vos confessarei não conhecer, ainda hoje, pensamento mais triste do que esta recordação. Parece-me que toda alma que ama um pouco a Igreja, e conhece a profunda irreligião de três quartas partes das famílias ricas e influentes de Paris, deve sentir-se pressionada a tudo empreender para fazer penetrar Jesus Cristo entre elas”. 14
Já dominada pelo desejo de salvar almas, Ana Eugênia encontra, na Igreja de Santo Eustáquio, outro pregador cujo zelo a impressiona e ao qual pede um conselho: o padre Teodoro Combalot. Este anelava fundar uma congregação sob a proteção de Nossa Senhora da Assunção, empenhada na educação de meninas, como base para a regeneração da sociedade, e viu naquela jovem de 20 anos todas as qualidades requeridas para ser a fundadora. Na realidade, suas intenções eram bem mais ousadas. Tratava-se, explicou-lhe ele, de erigir uma obra dedicada a “tudo reconstruir sobre o Cristo, fazê-Lo conhecido, bem como sua Igreja, estender as fronteiras de seu Reino”. 15
Ela se sente tocada com a proposta, mas hesita e objeta: “Não conheço a vida religiosa. Tenho tudo a aprender. Sou incapaz de fundar qualquer coisa dentro da Igreja de Deus”. Ao que retruca o sacerdote, com convicção: “É Jesus Cristo que será o Fundador de nossa Assunção; seremos apenas instrumentos e, entre as mãos de Deus, os mais fracos são os mais fortes”. 16
Após alguma resistência, Ana Eugênia aceita ser dirigida espiritual do padre Combalot e, seguindo suas orientações, espera junto às beneditinas alcançar a maioridade: 21 anos, então. Depois viaja à Lorena para despedir-se da família, faz o noviciado com as visitandinas e, com mais três vocações recrutadas pelo mesmo sacerdote, inicia a obra da Assunção em 1839.
Educação integral aliada à fé
Em meio ao intenso programa de estudos estabelecido pelo padre diretor, Madre Maria Eugênia de Jesus — seu nome como religiosa — estava convicta de ser a contemplação a principal fonte de sabedoria da nova congregação. “A educação era nosso dever, a vida religiosa nossa atração”, 17 dizia ela.
Tendo experimentado por si mesma o vazio que deixa na alma uma educação distante da fé, queria que as futuras formadoras da Assunção ensinassem, mais do que com palavras, pelo testemunho de vida. “A fé proporciona mais sabedoria que a velhice”, 18 afirmava. “É preciso formar caracteres firmes […]. Nossa missão: a fé dinâmica, a fé dominando o raciocínio, o gosto, bem como os afetos”. 19
O novo instituto tinha por carisma dedicar-se a uma educação integral, o que conduz à “preocupação com a formação do critério, do senso crítico, da retidão de pensamento, principalmente à luz da fé e confiança na graça”. 20 Tais princípios farão Paulo VI exclamar, ao beatificá-la: “Que luz para nós cristãos, que seríamos por vezes tentados, num mundo secularizado, de separar a educação humana da fé!”. 21
Abandono à vontade divina
Iniciada a fundação da obra almejada, sem o saber, Madre Maria Eugênia preparava-se para enfrentar as maiores tormentas da sua vida. E estas foram causadas por quem menos se poderia esperar: o padre Combalot!
Embora cheio de impulsos generosos, tinha ele um caráter muito volúvel. “Mudava de ideia sobre qualquer coisa a cada quinze dias”, 22 escreve a Santa. Por exemplo, à ordem de estudar os Salmos e Santo Agostinho, seguia-se a de largar todos os livros; à de comer carne todos os dias, logo se sobrepunha a de fazer duras penitências, entremeadas com severas repreensões. A cada uma dessas orientações, a madre se dobrava com humildade e obediência.
Apesar de submissa às ordens recebidas, a graça a inspirava, entretanto, a não deixar o leme da fundação em mãos de alguém tão inconstante e comunica a situação ao Arcebispo de Paris, Dom Dionísio Augusto Affre. O prelado conhecia bem o padre Combalot — a quem qualificava de homem “de nobre coração, mas de cabeça quente” 23 — e logo compreende o que se passava.
Para resolver o problema, designa um superior para a comunidade, cuja nomeação o impetuoso sacerdote não aceita. Decide, pelo contrário, que a fundadora e as religiosas o acompanhem à Bretanha, a fim de se subtraírem da autoridade do Arcebispo. A situação se torna muito tensa. E no dia 3 de maio de 1841, o padre Combalot junta seus livros e cartas, e abandona a comunidade, para nunca mais revê-la.
“Seja feita a vontade de Deus!”, 24 exclama a jovem fundadora que, aos 24 anos, via-se agora sem o apoio de sempre, com a obrigação de levar adiante o empreendimento iniciado. E, buscando refúgio na fé, concluía: “Deus não tira nada sem Se doar mais profundamente no lugar… Mostrou-nos que a obra era d’Ele e quer fazê-la sozinho”. 25
A Providência, porém, enviara-lhe novo auxílio na pessoa do padre Emmanuel d’Alzon, jovem Vigário-Geral de Nîmes, com o qual trocava abundante correspondência. Ambos tinham o anseio de tornar Cristo presente na sociedade laicizada em que viviam e davam-se mutuamente conselhos nesse sentido. Mais tarde ele fundará o ramo masculino da Assunção.
“Não creio ter outra vocação”
Dando novas provas de sua inconstância, o padre Combalot deixara uma carta a Mons. Affre, “tão comovente quanto desconcertante, pedindo-lhe para tomar conta da obra” 26 da Assunção. O Arcebispo põe então a comunidade sob sua proteção e designa Mons. Jean Nicaise Gros — mais tarde Bispo de Versalhes — para seu superior eclesiástico. Seguindo sua orientação são redigidas as constituições e regras, e em suas mãos as religiosas emitem os primeiros votos, no dia 15 de agosto daquele mesmo ano de 1841, recebendo o hábito definitivo de professas.
Não obstante, nova tempestade desaba sobre a frágil embarcação. Vendo as naturais dificuldades de uma comunidade que ainda não atingira toda a sua maturidade, Mons. Gros temeu por seu futuro e aconselhou à fundadora a voltar para a Ordem da Visitação, onde fizera o noviciado e da qual guardava tão boas impressões. Quanto às outras irmãs, cada qual ficaria livre para escolher o instituto religioso que melhor lhes conviesse.
Madre Maria Eugênia não se perturbou. Pediu um curto tempo para reflexão, após o qual redigiu uma carta respeitosa, mas direta, expondo as metas, o espírito e as características da Assunção. No final da mesma, declarava: “Ouso dizer que a satisfação pessoal nunca esteve entre os nossos pensamentos. Nossa coragem surgiu ao ouvir dos lábios do próprio Monsenhor o testemunho de ser nossa regra boa e edificante, e ter recebido de suas mãos o santo hábito, o qual portamos com alegria e amor. Não sei o que tenhamos feito, na prática desta regra, para perder a benevolência concedida por vossa pessoa; mas se formos consideradas indignas, e se não se realizar por nós a obra de zelo na qual quisemos trabalhar, perdoai-me por tomar a liberdade de dizer-vos: ela é tão necessária que, cedo ou tarde, se fará por mãos mais santas. De minha parte, não creio ter outra vocação senão a de pertencer a ela, quaisquer que sejam os sofrimentos e dificuldades daí decorrentes”. 27
Mons. Gros não tardou em dar-lhe uma resposta, na qual se manifestava inteiramente convencido da providencialidade da obra, e afirmava: “Eu só posso agradecer a Deus as graças que Ele vos deu”. 28
Desenvolve-se a congregação
Afinal, estava definitivamente fundada a Assunção, sobre a fé e a firmeza de Madre Maria Eugênia de Jesus. As meninas chegavam, as escolas começavam a crescer e a congregação se desenvolvia, para “formar verdadeiras mães de família, dar às mulheres os conhecimentos amplos e hábitos simples sem os quais não saberiam exercer a influência que o Cristianismo lhes deve dar”, 29 como noticiava a Gazeta da França, apresentando as esperanças depositadas na nova instituição religiosa.
Com a mesma valentia, a incansável fundadora enfrentou outras tormentas e obteve muitas vitórias, como a aprovação pontifícia das constituições da Assunção, sempre visando a implantação do Reino de Cristo. Decorrido pouco mais de um século de sua morte — ocorrida a 10 de março de 1898 —, as Religiosas da Assunção têm comunidades atuantes em vários países da Europa, África, Ásia e nas três Américas, dedicadas à educação de meninas de todas as camadas sociais.
Desta santa e profícua vida podemos dizer com o salmista: “Os que confiam no Senhor são como o monte de Sião, que não é abalado, e permanece para sempre” (Sl 124, 1). Porque ela confiou no Senhor, nada a pôde abalar! ◊