Bem mais agradável teria sido para o Patriarca de Alexandria guardar silêncio e conservar uma vida tranquila e pacata. Mas, podia se manter em silêncio quando a Fé se encontrava em tão grave perigo?

 

Numa das ruas de Constantinopla, que era, em muitos aspectos, a primeira cidade do mundo de então, dois homens de meia-idade caminhavam a passos largos. Suas vestimentas suntuosas, confeccionadas com ricos tecidos, pareciam ser das melhores. Enquanto andavam, uma calorosa conversa estabeleceu-se entre eles:

— Não, não. Jesus não era Deus e Homem; a divindade estava sobre Ele como essa túnica está sobre ti. Até me parece ouvir ainda as palavras do último sermão: “Jesus é para mim um Deus, visto que encerra Deus. Adoro o vaso por causa do seu conteúdo, a vestimenta por causa do que ela cobre”.

— Não estou tão certo disso – respondeu pensativo o interlocutor – Há numerosos trechos das Sagradas Escrituras que não concordam com esta afirmação. Nunca leste no Evangelho: “O Verbo Se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14)?

— Sim, mas como tu explicarias, se Jesus fosse mesmo o Verbo, que Ele morresse na Cruz? Está claro: foi só a humanidade de Cristo que sofreu a Paixão.

A discussão ficava cada vez mais delicada. Ambos sentiam-se como que “pisando em ovos”… Se foi apenas um homem que morreu na Cruz, não se poderia atribuir mérito infinito a seu sacrifício, e isso suporia negar a Redenção. Que restaria da Fé Católica?

Estas e outras perguntas cruzavam o espírito dos dois personagens quando, por fim, o mais convicto dentre eles disse com timidez:

— Eu também, no início, estive reticente… Todavia, ao saber que o principal defensor desta doutrina não é outro senão nosso ilustre Bispo, aderi a ela do fundo do coração.

O diálogo teve de ser interrompido: haviam chegado à igreja. Já ­inúmeras pessoas se aglomeravam na nave central do templo e, nas laterais, disputavam-se os últimos lugares. Afinal, o que estava por acontecer?

São Cirilo de Alexandria Santuário
do Sameiro (Portugal)

Nestório nega a Maternidade Divina

Naquela jovem Cristandade, era Nestório conhecido pela eloquência que transbordava de seus lábios. Muitos o consideravam um “segundo Crisóstomo”… Em Antioquia havia se destacado como monge e, eleito Bispo de Constantinopla no ano 428, “em toda a sua atuação se apresentava sempre como homem profundamente religioso, reformador do povo e do clero, e com sua vida ascética e o fogo de sua palavra entusiasmava e fascinava a todos os que o escutavam”.[1]

Muitos católicos, decerto, consideravam santo aquele que se mostrava inteiramente dedicado à Igreja e preocupado com os fiéis. Difícil era não nutrir veneração por um prelado tão piedoso e asceta. E ali estava uma multidão reunida para ouvir um discípulo de Nestório, sacerdote de sua confiança.

Inicia-se a pregação. Suas palavras, a História não as guardou. Unicamente se sabe que discorreram sobre a Santíssima Virgem, à qual os ouvintes dedicavam sincero amor e devoção.

Dizia ele que, malgrado sua grandeza e santidade, Maria não era Mãe de Deus, Theotókos. Como uma criatura poderia gerar o Criador? Ela era Mãe do homem Jesus, e nada mais… Um forte burburinho percorreu o povo. Os fiéis ardiam de indignação, alguns choravam de raiva ao ver a mais excelsa criatura tão inescrupulosamente degradada. Não foram poucos os que abandonaram o templo, à espera de mais explicações.

Entretanto, houve alguém, bem longe dali, que não se contentou com uma reação fugaz e infrutífera. E, ­assumindo sobre si a defesa da causa da Encarnação do Verbo e da Maternidade Divina, entrou na luta contra a heresia.

Retidão de consciência do Patriarca Cirilo

Onde nascera? Quem foram seus pais? Que instrução recebeu? A nenhuma destas perguntas é possível responder com segurança. São Cirilo de Alexandria entra na História como fruto de um amor ardente por Jesus Cristo e sua Mãe Virginal.

Sobre suas origens carnais pouco se conhece, apenas que era sobrinho do Patriarca de Alexandria. Nos seus escritos transparece um amplo domínio dos clássicos pagãos, o que demonstra ter sido esmerada a sua formação. Contudo, não são eles o alicerce do seu pensamento, e sim os mais antigos Padres da Igreja.

Suas obras não são redigidas em estilo poético ou artístico, mas as caracterizam a clareza nas ideias e o tom polêmico nas palavras. As circunstâncias exigiam que assim ­fosse!

Com a morte de seu tio, Cirilo ascende à sé episcopal, em 17 de outubro de 412. Transcorridos alguns anos, o santo Patriarca tem notícia da nova doutrina defendida e promulgada por Nestório, que ia se alastrando entre os monges do Egito. Com seu caráter ardoroso e combativo, já no primeiro momento decide proceder com energia.

Sua prontidão em defender a Fé mereceu, séculos mais tarde, o elogio de Pio XI: “Entre os opositores da heresia nestoriana, que não faltaram nem mesmo na capital do Império do Oriente, sem dúvida tem o primeiro lugar o homem santo e vingador da integridade católica, que foi Cirilo, Patriarca de Alexandria”.[2]

Desde o princípio, deixa São Cirilo uma lição de submissão e respeito, digna de admiração: ao deparar-se com a doutrina de Nestório, não poderia ele – com base em seu conhecimento e estudo, empregando sua jurisdição patriarcal – emitir um parecer? Não! Por sua retidão de consciência abstém-se de “sentenciar por sua própria autoridade uma causa tão grave, sem antes pedir e escutar o juízo da Sé Apostólica”.[3]

“Satanás está a ponto de tudo transtornar”

À época sentava-se Celestino I na Cátedra de Pedro, e a ele dirige uma reverente missiva, apelando ao antigo costume das igrejas que, em suas palavras, “nos constrange a comunicar a Vossa Santidade os acontecimentos desse gênero”.[4]

Por tal motivo, acrescenta, “sou obrigado a vos escrever para vos avisar que satanás está a ponto de tudo transtornar. Enfurecido contra as igrejas de Deus, procura turbar em todas as partes a paz dos fiéis. Esta besta nefasta, que se compraz na impiedade, não repousará jamais. Até o presente guardei um profundo silêncio e não escrevi absolutamente nada a Vossa Santidade nem a vossos irmãos no sacerdócio sobre aquele que administra atualmente a Igreja de Constantinopla, pois sei perfeitamente que a precipitação nessa matéria é nociva. Mas como o mal está agora prestes a chegar ao auge, é imperiosamente necessário romper o silêncio e vos narrar tudo o que tem acontecido”.[5]

Ora, não era a primeira vez que o Papa tinha notícias da convulsão que devastava as igrejas do Oriente. Nestório, dominado pelo orgulho, não aceitava qualquer crítica ou oposição. Mostrava-se tão seguro de sua superioridade que nem sequer se preocupava em responder as objeções teológicas que lhe eram ­feitas.

A alguns monges que defenderam a Fé, acusou de sublevadores da ordem pública, denunciou-os ao governo e conseguiu que fossem presos. Por fim, ousou tentar fazer proselitismo até com o Romano Pontífice, ao qual enviou em 429 uma carta “mandando-lhe, entre outras coisas, uma ampla coleção de suas homilias”.[6]

O discernimento e sabedoria do Papa logo o fizeram aquilatar o erro que se escondia sob aparência de boa doutrina, bem como as torpes intenções de seu propagador. Por isso mandou os escritos de Nestório ao douto abade de São Vítor, em Marselha, a fim de dar seu parecer.

A resposta do religioso chegou a Celestino I junto com a carta de São Cirilo. Tomando tal eventualidade como sinal da Providência, o Papa designou este último como legado pontifício e juiz em tão importante questão, e escreveu ao próprio Nestório, intimando-o a submeter-se, em tudo, às decisões do santo Patriarca.

Quando a Fé está ameaçada, não se deve duvidar em agir

Os grandes dias de Alexandria já tinham ficado para trás, tanto na esfera civil quanto na espiritual. Passara a era das grandes polêmicas que, em vida de Atanásio, animavam a cidade. Vivia-se agora num ambiente pacato e sossegado, ainda iluminado pelas saudades dos tempos áureos.

Como poderia Cirilo deixar de apreciar essa serenidade que o cercava? Bem mais agradável seria para o Bispo de Alexandria guardar silêncio e conservar uma vida tranquila, isenta de perigos. Além do mais, o foco do mal não estava em seu território… Contudo, podia se manter, sem culpa, em silêncio “quando a Fé, corrompida por muitos, encontrava-se em grave perigo?”[7]

Só havia uma resposta, assim registrada pela sua própria pena: “Eu amo a paz; não há nada que me aborreça mais do que as querelas e as disputas. Eu amo todo o mundo e se pudesse curar um irmão, perdendo todos os meus bens e haveres, estaria disposto a fazê-lo com alegria, pois a concórdia é o que mais estimo… Mas a Fé está ameaçada e um escândalo espera todas as igrejas do Império Romano… A doutrina sagrada nos está confiada… Como poderemos remediar esses males?… Eu estou pronto a suportar tranquilamente todas as torturas, todas as humilhações, todas as injúrias, para que a Fé não sofra nenhum prejuízo”.[8]

De outro lado, a perspectiva de iniciar uma ágria controvérsia com um irmão no Episcopado fazia sua alma sangrar: “Sinto-me cheio de afeto pelo Bispo Nestório, a quem ninguém ama mais do que eu… […] Mas quando a Fé está ameaçada, não se deve duvidar em sacrificar a própria vida”.[9]

Celestino I convoca o Concílio de Éfeso

Com a autoridade recebida do Sumo Pontífice convoca em Alexandria um sínodo, no qual foram compostos os célebres doze anátemas que posteriormente levariam seu nome. Neles, o santo e pacífico Patriarca adverte, increpa e condena!

Os doze anátemas foram enviados para Nestório com a ordem expressa de subscrevê-los. Para o orgulho do heresiarca, acostumando a impor em tudo sua vontade, era uma terrível afronta. Tratou então de ganhar para si as boas graças do Imperador Teodósio II, que, sendo de caráter harmonizador, pediu ao Papa a convocação de um concílio.

O povo, entusiasmado, acorreu à igreja onde se celebrava a magna assembleia: abria-se o caminho para proclamar como dogma a Maternidade Divina de Maria! –
O Concílio de Éfeso – Basílica de Notre-Dame de Fourvière,
Lyon (França)

Não respondera já Celestino I a Nestório, desaprovando sua doutrina? Que restava ainda por decidir? A situação, porém, era delicada e o Papa acedeu ao desejo do imperador: o concílio teria lugar em Éfeso, no ano de 431. Os Bispos Arcádio e Projecto, juntamente com o presbítero Filipe, foram nomeados legados pontifícios. Cirilo recebeu a instrução de ouvir a Nestório embora, sendo conhecida sua doutrina, não coubesse dúvida sobre sua condenação.

Nestório e os seus foram os primeiros a chegar; logo compareceu Cirilo, acompanhado de cinquenta prelados egípcios. Pouco a pouco outros se apresentaram. Contudo, os legados pontifícios não apareciam. Então, o Patriarca de Alexandria abriu o concílio!

A Igreja proclama o dogma da Maternidade Divina

Não faltam historiadores que discutam a validade desta primeira sessão. Porém, o famoso Pe. Bernarnino Llorca, SJ, defende que “São Cirilo tinha, sem dúvida, faculdade para começar as sessões do concílio e, em consequência, as decisões por ele tomadas foram inteiramente válidas”.[10]

Caberia argumentar se não teria sido mais prudente aguardar a chegada dos legados pontifícios e do Patriarca de Antioquia. Entretanto, prolongar a espera traria ainda maiores prejuízos à Santa Igreja, dada a atitude contrária aos desígnios do Papa manifestada pelo imperador.

Iniciadas as sessões, “leu-se a correspondência intercambiada entre São Cirilo e Nestório, a sentença dada pelo Papa no Sínodo de Roma, uma longa série de documentos dos Padres da Igreja argumentando em seu favor e, finalmente, pronunciou-se sentença contra Nestório e sua doutrina, após o qual ele foi solenemente deposto”.[11]

O povo, entusiasmado, acorreu à igreja onde se celebrava a magna assembleia e “acompanhou a saída dos padres conciliares, aclamando-os pela cidade”.[12] Havia sido oficialmente declarada a divindade de Cristo, o Verbo Encarnado, o Deus feito Homem. Abria-se o caminho para proclamar como dogma a Maternidade divina de Maria!

O defensor da ortodoxia é acusado de herege

Seria por demais longo narrar aqui todas as vicissitudes sofridas por São Cirilo após o concílio. Depois de ter Se servido dele para consumar o triunfo da verdadeira doutrina, quis a Providência submetê-lo a uma duríssima prova: pessoas sábias e influentes dentro da Igreja acusavam-no de heresia!

Como teria se desviado da Fé o intrépido defensor da ortodoxia? Entretanto, o Patriarca João de Antioquia e o presbítero Teodoreto de Ciro afirmavam haver sinais disso…

Naqueles tempos em que a ciência e a linguagem teológicas ainda estavam em seus primórdios, ­Cirilo usou certas formulações que podiam ser interpretadas como uma defesa do monofisismo. Ora, não seria ele, na realidade, um partidário desta heresia oposta, propugnadora de uma única natureza em Cristo, fusão da divina e humana?

Ao longo de toda a sua existência, o Patriarca de Alexandria tinha demonstrado estar feito da “madeira” dos Santos. Sendo o representante oficial do Papa, era-lhe fácil impor os seus critérios com toda justiça. Entretanto, preferiu dobrar-se às exigências dos seus acusadores, dando-lhes quantas explicações fossem necessárias para convencê-los da ortodoxia de suas afirmações. E quando João de Antioquia lhe exigiu que eliminasse de seus escritos certas expressões que poderiam servir de pretexto aos inimigos da Fé, acedeu de boa vontade a fazê-lo.

O resultado dessa delicada controvérsia foi o Edito de União de 433, que, segundo o mencionado Pe. Bernardino Llorca, “deve ser considerado como complemento indispensável do Concílio de Éfeso”.[13] Com esse documento São Cirilo e o Patriarca João declaram sua almejada comunhão, à qual mais tarde também se uniria Teodoreto.

Foi essa exemplar demonstração de humildade do santo Patriarca uma das maiores provas da altura por ele alcançada no firmamento da Igreja. O Teólogo da Encarnação, o propugnador do primeiro dos dogmas marianos, o paladino da verdadeira Fé, não duvidava em selar com sua mansidão e modéstia a ortodoxia de sua doutrina.

Notas


[1] LLORCA, SJ, Bernardino. Historia de la Iglesia Católica. Edad Antigua. 5.ed. Madrid: BAC, 1976, v.I, p.523.
[2] PIO XI. Lux veritatis, 25/12/1931.
[3] Idem, ibidem.
[4] SÃO CIRILO DE ALEXANDRIA. Epistola XI, apud DU MANOIR DE JUAYE, SJ, Hubert. Dogme et spiritualité chez Saint Cyrille d’Alexandrie. Paris: Vrin, 1944, p.31.
[5] Idem, ibidem.
[6] LLORCA, op. cit., p.525.
[7] SÃO CIRILO DE ALEXANDRIA, op. cit., p.31.
[8] SÃO CIRILO DE ALEXANDRIA. Epistola IX, apud DU MANOIR DE JUAYE, op. cit., p.35.
[9] Idem, ibidem.
[10] LLORCA, op. cit., p.529.
[11] Idem, ibidem.
[12] Idem, ibidem.
[13] Idem, p.532.
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