São Damião de Veuster – Pai e servo dos leprosos

De antecâmara do inferno, a Ilha de Molokai transformou-se no cenário de uma extraordinária história de heroísmo. Tudo começou quando em suas praias desembarcou um missionário decidido a entregar a vida pelas vítimas da lepra.

O flagelo da lepra atravessou a História como um dos símbolos mais expressivos de infelicidade, desolação e abandono. Poucos infortúnios parecem ter representado, até os nossos dias, um auge de desgraça como o provocado por esta enfermidade que as atas médicas de todos os tempos e lugares registram com descrições dramáticas, difíceis de serem concebidas mesmo pelas imaginações mais inventivas.

Precedida por um longo e silencioso período de incubação, a lepra só se manifesta quando já é um mal estabelecido, através de alguns indícios prenunciativos dos tormentos que se aproximam: insensibilidade da pele à temperatura e à dor provocada por contusões, além de manchas espalhadas pelo corpo. Aos poucos ela avança: as nódoas transformam-se em úlceras purulentas, os membros afetados se entumecem e podem vir a cair, e todo o corpo passa a ser uma chaga, de odor nauseabundo. No estágio mais avançado, ataca os nervos ou algum órgão vital, debilitando as vítimas até levá-las à morte.

Durante milênios, esta moléstia acometeu representantes de todas as classes sociais e ceifou elevadas porcentagens de populações, sem qualquer perspectiva de cura. A descoberta de tratamentos eficazes, que reverteram seus efeitos e trouxeram soluções efetivas, deu-se apenas no século XX.

A “Ilha Maldita”

Fortemente afetado pela doença, o Arquipélago do Havaí presenciou episódios cruéis no decorrer da segunda metade do século XIX. A lepra ali atingiu uma proliferação alarmante, pois muitos nativos polinésios não possuíam resistência à bactéria. Atônito perante um mal crescente que escapava à sua capacidade de coerção, o governo não encontrou outro remédio senão segregar os enfermos num local isolado, visando evitar a contaminação. O nome da ilha escolhida para tal fim, hoje célebre pelos feitos que passaremos a narrar, ficou conhecido no mundo inteiro como sinônimo de tragédia: Molokai.

No ano de 1866 as autoridades havaianas começaram a deportar os leprosos para a península de Kalaupapa, localizada ao norte de Molokai. Neste recanto de privilegiada beleza natural, isolado do resto da ilha por rochedos intransponíveis, foram estabelecidos os vilarejos de Kalawao e Kalaupapa, que começaram a receber um número cada vez maior de leprosos provenientes de todo o Arquipélago. Ao cabo de alguns anos eles seriam oitocentos, chegando a mais de mil em algumas épocas.

A narrativa do que ali se passou desde então corresponde mais à descrição de um pesadelo do que à da vida numa ilha paradisíaca. No entanto, eis a rigorosa verdade histórica: após uma captura traumática, na qual com frequência se fazia uso da força para vencer a inconformidade dos enfermos e de suas famílias, eram eles desembarcados na colônia, e ali viviam na mais completa carência material e espiritual.

“Os suprimentos esgotavam-se em questão de horas, os moribundos agonizavam ao ar livre, os cadáveres permaneciam insepultos. Não havia sequer um simulacro de ordem pública; era um espetáculo de devassidão e licenciosidade inacreditáveis, representado ao som ininterrupto e ignorado dos estertores dos moribundos”.1 Os recém-­chegados eram recebidos por moradores antigos que se apressavam em fazer-lhes uma sinistra comunicação: “Aole kanawai ma keia wahi — Não há lei neste lugar”.2 Todas as tentativas de intervenção governamental — que, aliás, foram ínfimas — fracassaram perante a enormidade de problemas daqueles homens debilitados, imersos num misto de revolta, desespero e ódio.

Uma sentença de martírio

A Santa Igreja Católica, na pessoa do Bispo Dom Luís Maigret, observava com pesar essa realidade tão contrária ao espírito do Evangelho, perguntando-se o que fazer para reverter o quadro. A existência de tantas ovelhas tresmalhadas fê-lo convocar alguns sacerdotes do Havaí aos quais expôs a questão de Molokai. Após deixar claro que não exigiria de nenhum deles o sacrifício de ali se encerrarem, mostrou-lhes o quanto o bem daquelas almas abandonadas reclamava uma assistência religiosa. Para sua surpresa, apresentaram-se voluntariamente quatro padres para a terrível missão, entre eles um belga chamado Damião de Veuster.

Este missionário de 33 anos era, sem sombra de dúvida, o mais indicado para a tarefa. Nascera no vilarejo flamengo de Tremelo, filho de camponeses fervorosos que ofereceram quatro de seus oito filhos para o serviço da Igreja. José, o caçula, havia escolhido o nome de Damião ao ingressar na Congregação dos Sagrados Corações. Sua resolução de seguir o chamado de Deus deixara uma ponta de decepção no pai, o qual via nele seu sucessor nos negócios familiares, pois era um jovem “hábil e inteligente como quatro”.3

Fiel ao apelo da graça, ingressou no noviciado, fez os estudos eclesiásticos e partiu aos 25 anos para o Havaí, onde foi ordenado presbítero. Quando se ofereceu como voluntário para Molokai, contava já com oito anos de uma fecunda e bem-sucedida experiência evangelizadora entre os nativos.

Dom Maigret aceitou seu oferecimento sem externar um pensamento inevitável: essa resolução equivalia a uma sentença de martírio. Ainda mais admirado com aquele missionário cuja intrepidez conhecia, quis acompanhá-lo pessoalmente à “Ilha Maldita”, aonde chegaram em 10 de maio de 1873. Ali o zeloso Prelado soube encontrar palavras adequadas para transmitir aos leprosos, na língua nativa, a notícia que ia transformar suas vidas: “Até agora, meus filhos, vocês estiveram abandonados e sem ajuda nenhuma. Mas não será mais assim; trouxe-lhes alguém que será como um pai, alguém que os ama tanto que, pelo bem-estar de todos e pela salvação de suas almas imortais, não hesitou em tornar-se um de vocês, a fim de viver e morrer aqui”.4

“Ele cumula-nos de cuidados e carinho, constrói as nossas casas, e quando um de nós cai doente, dá-nos chá, biscoitos e açúcar” – Em 1888, um ano antes da sua morte, companhado por 64 meninos que moravam na colônia.

Brilha uma nova esperança

Iniciou-se assim uma aventura como poucas vezes se escreveu, baseada na coragem de um homem que soube enfrentar o sofrimento multiplicado pelo sofrimento.

Seu primeiro ato na ilha foi celebrar a Missa numa pequena capela inacabada. Dois leprosos se aproximaram com timidez, assistiram ao Santo Sacrifício e lhe pediram em seguida para atender um moribundo, que acabou expirando pouco depois nos braços do sacerdote.

Com a alma dilacerada perante tanta miséria, padre Damião logo se deu conta do quanto havia por fazer. Em primeiro lugar administrar os Sacramentos, mas também, ao mesmo tempo, suprir a falta de água, de alimentos, de remédios e até de cemitério. Precisou solucionar um problema ainda mais grave: a apatia dos leprosos, que haviam perdido a vontade de viver.

“Mais ainda que esse renascimento material, o que a presença do padre Damião operou no inferno de Molokai foi a ressurreição moral”.5 E o próprio Santo explica o segredo deste resultado: “Bondade para todos, caridade para os necessitados, mão amiga para os sofredores e moribundos, tudo isso somado a uma sólida formação religiosa aos meus ouvintes: estes têm sido meus invariáveis recursos para introduzir hábitos morais entre os leprosos”.6

“O que me mantém aqui é Deus e a salvação das almas”

Se quisermos descobrir a fonte de seu ânimo para levar adiante essa empresa humanamente inviável, teremos de reconhecer que seu extraordinário amor ao próximo o movia a agir assim e lhe dava forças para suportar os padecimentos daí decorrentes. Ora, esse amor dirigia-se a Deus em primeiro lugar, pois, como ensina São Tomás de Aquino, “o amor ao próximo não é meritório senão por amá-lo por causa de Deus”.7 Em passagem anterior, explicara o Doutor Angélico: “A razão de amar o próximo é Deus; pois o que devemos amar no próximo é que ele esteja unido a Deus. Fica, portanto, claro que o ato pelo qual Deus é amado é da mesma espécie daquele pelo qual se ama o próximo”.8

Num de seus escritos, São Damião revela esta impostação interior, ao comentar o desejo que tinha de salvar os enfermos: “Seu aspecto é horrível, mas têm uma alma resgatada pelo preço do adorável Sangue de nosso Divino Redentor. Também Ele, em sua divina caridade, consolou os leprosos. Se não posso curá-los como Ele, ao menos posso consolá-los e, pelo santo ministério que em sua bondade me confiou, espero que muitos deles, purificados da lepra da alma, se apresentarão ante seu Tribunal de modo a poderem entrar na comunidade dos Bem-aventurados”.9

É inegável que viver solitário naquele local de tormentos pesava-lhe muito, como ele próprio reconheceu: “Ainda que me oferecessem todos os tesouros da Terra, não permaneceria cinco minutos mais nesta ilha. O que me mantém aqui é apenas Deus e a salvação das almas”.10 A virtude prevalecia sobre as inclinações da natureza, com efeitos que podiam ser notados inclusive no seu modo de tratar os enfermos. Comovedoras são as palavras de certo leproso, pronunciadas num improvisado discurso de agradecimento ao Bispo, por ter-lhes enviado o missionário: “Ele cumula-nos de cuidados e carinho. É ele que constrói as nossas casas, e quando um de nós cai doente, dá-nos chá, biscoitos e açúcar, e aos pobres dá roupas”.11

Uma colônia totalmente renovada

Com o passar do tempo, a atividade apostólica desse incansável homem de Deus em Molokai alcançou resultados que despertaram admiração no mundo inteiro. Cuidou praticamente sozinho de 3.137 leprosos, dos quais 2.312 faleceram e foram sepultados por ele. Antes de receber qualquer auxílio, construiu 300 cabanas e fez dois mil caixões com as próprias mãos. Transcorridos 11 anos de atividade, a colônia estava totalmente renovada.

Durante todo esse tempo, o Santo mantinha sua atenção voltada para as necessidades dos seus queridos doentes, e, conforme ia adquirindo experiência no acompanhamento da enfermidade, parecia vislumbrar a chegada de remédios eficazes contra ela. “Padre Damião não havia desanimado quanto à descoberta da cura da lepra. ‘Mas, até onde sei, ela ainda não foi encontrada’, disse. ‘Quem sabe se, pela incansável perseverança dos médicos, isso acontecerá num futuro próximo’”.12

Com efeito, menos de 50 anos após a sua morte a ciência encontrou os meios para deter a ação do bacilo Mycobacterium lepræ, descoberto pelo norueguês Gerhard Hansen, ainda nos dias de Damião.

Algo, porém, era previsível. Embora todos os habitantes da “Ilha Maldita” procurassem afastar tal pensamento, cedo ou tarde o missionário também seria atacado pela doença.

Ao longo de cinco anos caminhou com doçura e mansidão rumo ao seu calvário – São Damião em 1888, um ano antes da sua morte

“Nós, os leprosos”

Certo dia, ao deixar cair acidentalmente uma chaleira de água sobre os pés, não sentiu dor alguma… Era o sinal inequívoco de que contraíra a lepra!

Na homilia do domingo seguinte, assim dirigiu-se aos fiéis para dar-lhes a notícia: “Nossa verdadeira pátria é o Céu, para onde nós, os leprosos, estamos certos de ir muito em breve […]. Lá não haverá mais nem lepra nem feiúra, e seremos transfigurados”.13 A temida doença, que em qualquer outro causaria aflição e talvez desespero, nesse ministro de Deus operou “uma profunda transformação. Sem descuidar de suas atividades, respondeu aos avanços da lepra com um maior aprofundamento espiritual”.14

Ao longo de cinco anos caminhou rumo ao seu calvário, com doçura e mansidão, apenas implorando a Deus que não o deixasse morrer antes de estar assegurada a continuidade da assistência aos leprosos. E sua oração foi ouvida: “Como num conto de fadas, os últimos dias de Damião iluminaram-se subitamente. As nuvens de desespero e solidão que havia séculos pesavam sobre a lepra começaram a dissipar-se e o mundo finalmente se apercebia da existência e das necessidades dos leprosos. Era como se todos os sonhos desse sacerdote solitário tivessem recebido uma confirmação explícita por parte da Providência: juntamente com os que haveriam de sucedê-lo, começaram a chegar também donativos e mensagens de solidariedade de todo o mundo”.15

Ao amanhecer de 15 de abril de 1889, segunda-feira da Semana Santa, ele rendeu serenamente sua alma a Deus. Inconsolados, os leprosos vieram entoar seus cânticos e despedir-se desse sacerdote tão amado, ao qual tanto deviam. Ao mesmo tempo, reinava grande paz nas exéquias, pois todos sabiam que Kamiano fora, como havia desejado, passar a Páscoa junto a seu adorado Salvador, e estaria à espera deles no Céu.

A doação de si levada a um limite inimaginável

O caso de São Damião não é único, pois não faltam na Igreja mártires da caridade movidos por disposições tão louváveis quanto as dele. Entretanto, o número de adversidades que, junto com o drama da lepra, recaíram sobre seus ombros como uma cruz de proporções descomunais, suscita uma estima toda especial.

Levar a doação de si mesmo a esse limite inimaginável, movido apenas pelo amor a Cristo e às almas, comprova a sinceridade do seu desejo de servir a Deus e à Santa Igreja e desperta nos outros, até nos não católicos, sentimentos de intensa admiração. Certo pastor anglicano, ao enviar uma vultosa doação por ele arrecadada para as necessidades dos leprosos de Molokai, escreveu-lhe: “Seu exemplo é mais eficaz para obter conversões à sua própria Igreja do que todos os sermões que ouvi em minha vida”.16

Em 2009 o Papa Bento XVI inscreveu seu nome no Catálogo dos Santos. Essa canonização foi motivo de contentamento para todos quantos algum dia tomaram contato com sua história e aguardavam que lhe fosse dada essa coroa. Embora não tenhamos sido chamados a cuidar das vítimas da lepra, seu exemplo anima cada um de nós a sermos mais generosos no cumprimento da respectiva vocação, a compreendermos que “a Deus devemos dar tudo, absolutamente tudo, e depois de ter dado tudo ainda devemos dar nossa própria vida”.17 ²

1 FARROW, John. Damião, o leproso. São Paulo: Quadrante, 1995, p.82.

2 CLIFFORD, Edward. Father Damien and others. London: Church Army, [s.d.], p.30-31.

3 GONZÁLEZ CHAVES, Alberto José. Beato Damián José de Veuster. In: ECHEVERRÍA, Lamberto de; LLORCA, Bernardino; REPETTO BETES, José Luis (Org.). Año Cristiano. Madrid: BAC, 2003, v.IV, p.312.

4 FARROW, op. cit., p.92.

5 DANIEL-ROPS, Henri. A Igreja das Revoluções. Um combate por Deus. São Paulo: Quadrante, 2006, v.IX, p.512.

6 CLIFFORD, op. cit., p.29.

7 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. II-II, q.27, a.8.

8 Idem, q.25, a.1.

9 SÃO DAMIÃO DE VEUSTER, apud GONZÁLEZ CHAVES, op. cit., p.316.

10 Idem, p.319.

11 FARROW, op. cit., p.135.

12 CLIFFORD, op. cit., p.30.

13 SÃO DAMIÃO DE VEUSTER, apud GONZÁLEZ CHAVES, op. cit., p.321.

14 DELVILLE, Jean-Pierre. Damiano De Veuster. In: LEONARDI, Claudio; RICCARDI, Andrea; ZARRI, Gabriella (Dir.). Il grande libro dei santi. Dizionario Enciclopedico. Torino: San Paolo, 1998, v.I, p.514.

15 FARROW, op. cit., p.173-174.

16 GONZÁLEZ CHAVES, op. cit., p.322.

17 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Via-Sacra. IX Estação. 2.ed. São Paulo: Copypress, 2006, p.34.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Do mesmo autor

Artigos relacionados

Redes sociais

1,644,769FãsCurtir
125,191SeguidoresSeguir
9,530SeguidoresSeguir
558,475InscritosInscrever