Exemplo vivo de genuíno desprendimento e da mais pura despretensão, São Francisco brilhou pela pobreza de espírito: teve o coração livre de todo e qualquer apego, convencido de que a figura deste mundo passa.
N os últimos fulgores do século XII, no seio de uma abastada família da cidade de Assis veio à luz um varão enviado por Deus, cujo nome era, inicialmente, João (cf. Jo 1, 6).
Sua mãe, mulher muito piedosa chamada Pica, deu-lhe esse nome sem o conhecimento do pai, Pedro de Bernardone, que se encontrava em viagem de negócios na França. Segundo alguns autores, o progenitor ficou tão feliz ao retornar daquele país e conhecer o filho que quis chamá-lo Francesco – francês, em italiano.[1] E, de fato, ele assim ficou conhecido.
Jovem de espírito forte e alegre
A infância e juventude de Francisco transcorreram na mais completa despreocupação. Filho de ricos comerciantes, sempre teve à sua disposição muito dinheiro, que gastava quase sem pensar. Dotado de um modo de ser liberalíssimo, desfrutava tranquilamente de tudo o que podia em matéria de boa alimentação, vestimentas e bens pessoais.
Logo se notou que ele “pertencia à classe dos espíritos fortes e alegres”,[2] tornando-se rapidamente, em sua efusividade constante, um líder de seus coetâneos. Embora gracejador, era muito simpático e cortês com quem quer que lhe dirigisse a palavra, nunca injuriando alguém nem pronunciando vocábulos torpes, mesmo quando ofendido. Assim, vivia rodeado de amigos, com os quais se comprazia em festas e passeios pela cidade, ao som de cânticos.
Cedo brilhou também em seu espírito a virtude da generosidade. A todos os pedidos dos pobres e necessitados atendia com invariável solicitude, e chegou um dia a fazer o propósito de nunca negar um pedido que lhe apresentassem em nome do Senhor.[3] A avareza jamais encontrou morada em seu coração, quiçá como sinal da enorme predileção que a Providência depositara em sua alma.
O início da conversão
Curiosamente, foi no auge dessa juventude leviana que Deus começou a revelar-Se a Francisco e falar-lhe ao coração. Por duas vezes visitou-o através de sonhos, os quais, embora não tivessem claro caráter místico, comoveram-no profundamente e lhe fizeram refletir sobre a vida que levava.
O primeiro fato manifesto de sua conversão deu-se certa ocasião em que caminhava e cantava com seus companheiros pelas ruas de Assis. Subitamente, viu-se arrebatado pelo Senhor “e seu coração foi preenchido por tanta doçura que ele não podia nem falar nem mover-se, e nem sentir ou ouvir outra coisa além daquela doçura, a qual o distanciara tanto dos sentimentos mundanos que, como ele mesmo disse depois, mesmo se tivesse sido cortado em pedaços não teria podido mover-se daquele lugar”.[4]
Deste dia em diante, algo mudou em seu interior. “Começou a reputar-se vil e a desprezar aquelas coisas que antes amara, mas não ainda plenamente, porque não estava ainda completamente desapegado das vaidades deste mundo”.[5] Subtraindo-se, então, pouco a pouco de suas antigas preocupações mundanas, passou a esforçar-se por levar uma vida santa. Todos os dias recolhia-se para rezar a sós, e procurava doar aos pobres com mais prodigalidade e frequência que antes.
A via à qual a Providência o chamava não lhe estava, porém, inteiramente clara. Ansiava a pobreza por cima de todas as coisas, mas, como seu coração não encontrava eco nos ambientes por ele frequentados, abstinha-se de pedir conselhos aos outros a esse respeito, exceto a Deus.
O Altíssimo designara Francisco para personificar a pobreza como nunca antes fora compreendida ou vivida pelos homens. As fontes das quais devia haurir as arquetipias celestes que estava chamado a representar provinham – e ele assim o esperava – do próprio Deus.
A vontade divina se torna manifesta
Ao passar certa vez em frente à Igreja de São Damião, Francisco ouviu uma voz interior que lhe ordenava entrar e rezar. Obediente, adentrou no recinto e pôs-se diante do Divino Crucificado, o qual, de repente, começou a falar-lhe: “Francisco, não vês como minha casa está em ruínas? Trata de reconstruí-la”.[6]
De início, o jovem converso entendeu ao pé da letra o pedido do Redentor e, com toda a prontidão, arranjou a reforma completa daquela igrejinha. Entretanto, as palavras de Cristo possuíam um alcance muitíssimo maior, que Francisco só logrou compreender com o correr do tempo: ele deveria ser um renovador da Santa Igreja Católica, reconduzindo-a ao verdadeiro caminho, do qual, infelizmente, havia se desviado.
Tal manifestação divina foi de grande auxílio para o Poverello compreender sua vocação. Esta se explicitou definitivamente durante uma Missa em que escutou dos lábios do sacerdote as palavras de Nosso Senhor: “Não leveis nos vossos cintos nem ouro, nem prata, nem dinheiro, nem alforje para o caminho, nem duas túnicas, nem sandálias, nem bordão” (Mt 10, 9-10). Ouvindo isso, exclamou emocionado: “É isso que eu desejo realizar de todo o coração!”
A partir daquele momento, “soube com certeza absoluta o que queria, não vacilou nem hesitou mais. […] Transbordando de alegria, toda sua alma suspirava por seguir a palavra do Senhor e por concretizá-la”.[7]
Oposições por parte da família
Ora, como sói acontecer àqueles que se entregam com radicalidade ao serviço de Deus, a perseguição não tardou em chegar à vida de Francisco. Tendo resolvido abandonar casas, campos, pai, mãe e irmãos por amor a Deus, recebeu logo a recompensa prometida pelo Salvador: o cêntuplo, com perseguições (cf. Mc 10, 29-30).
Seu pai, Pedro de Bernardone, opôs ferrenha resistência à decisão do filho de seguir a Cristo. Certo dia, não sabendo mais o que fazer para dissuadi-lo de seus intentos, denunciou-o ao Bispo com calorosas queixas. Este, porém, discreto e sábio, aconselhou Francisco a comparecer em seu palácio e responder as acusações do pai. E assim fez ele.
No dia marcado, apresentou-se ao Senhor Bispo. Após ser confortado pelas ardorosas palavras deste, o santo jovem tomou uma atitude inesperada: dirigiu-se a um quarto próximo, despiu-se de suas roupas e, retornando à sala, depositou suas vestes e todo o dinheiro que levava aos pés de seu progenitor, em sinal de pleno rompimento com o mundo. Pedro de Bernardone, estupefato e tomado de furor, apanhou os pertences do filho “enlouquecido” e retirou-se sem dizer nada.
O prelado, então, com lágrimas nos olhos, aproximou-se do rapaz e revestiu-o com o próprio manto, escondendo, nas largas dobras deste, sua penosa nudez; em seguida, estreitou-o fortemente ao coração.[8]
Esta extraordinária cena, julgada segundo critérios humanos, bem pode ser considerada uma loucura; as almas de fé, porém, facilmente compreendem sua beleza. Com efeito, “o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, pois para ele são loucuras; nem as pode compreender, porque é pelo Espírito que se devem ponderar” (I Cor 2, 14).
A partir desse episódio, São Francisco desposou-se para sempre com a “Dama Pobreza”. Doravante ele seria, para a Cristandade do seu tempo, “o símbolo e a lembrança viva de Cristo. […] Quando o mundo estava em perigo de se tornar gelado, chegou a hora deste Santo do amor. Ele merece o nome de ‘transformador do mundo!’”[9]
Por que “transformador do mundo”?
Para bem compreender o espírito e a obra de São Francisco, é preciso considerar que a humanidade do século XIII vinha sendo corroída por uma profunda crise, estabelecida sobretudo nas camadas mais altas da sociedade, inclusive no próprio clero. Havia um “entusiasmo crescente pelos prazeres do mundo, efeito direto da melhoria de condições de existência e do desenvolvimento das relações entre as pessoas”.[10] Traduzindo-se logo nos costumes, esse afã de gozo terreno se estendeu por todas as classes sociais e deu livre curso aos excessos do luxo e à avidez de lucros; em consequência, os corações se desprenderam gradualmente do amor ao sacrifício e das aspirações de santidade.[11]
O grande erro da Idade Média possui uma raiz metafísica: os homens passaram a servir-se dos meios materiais apenas pelos benefícios que eles traziam em si mesmos, e não mais como instrumentos para conhecer, amar e glorificar seu Criador. Começaram a apropriar-se do que era de Deus para sua fruição pessoal.
Nessas circunstâncias históricas, São Francisco foi enviado pelo Espírito Santo para ser um exemplo vivo de genuíno desprendimento e da mais pura despretensão. O carisma da obra por ele fundada reflete a pobreza de espírito de que nos fala o Evangelho (cf. Mt 5, 3): ter o coração livre de todo e qualquer apego, usar dos bens como se não se estivesse usando, “pois a figura deste mundo passa” (I Cor 7, 31); regozijar-se com as criaturas pela alegria de encontrar nelas um reflexo das perfeições do Criador, e não pelo desejo de um mesquinho prazer individual.
Esta é a admiração despretensiosa que brilha de maneira incomparável no famoso Cântico das criaturas, “o sermão novo que o Santo mandou a seus frades pregar pelo mundo inteiro, a conquistá-lo para o amor de Deus”.[12]
Os primeiros seguidores e a fundação da Ordem
Já totalmente esclarecido sobre sua missão, Francisco começou a anunciar a verdade no pleno ardor do espírito de Cristo, e convidou outros a se associarem a ele na busca da santidade. Quando conseguiu congregar em torno de si doze discípulos, decidiu que dali em diante se chamariam Frades Menores. O conjunto se reunia em torno da pequena Igreja da Porciúncula, sempre usando vestes vis.
Inspirado por Deus, o Poverello partiu para Roma, a fim de obter de Honório III a aprovação de sua primeira regra, que prescrevia uma pobreza absoluta em imitação da vida de Cristo e dos Apóstolos. O Santo Padre, que poucos dias antes vira em sonho a Santa Igreja sendo sustentada miraculosamente por um homenzinho pequeno e de aspecto miserável, logo reconheceu São Francisco e concedeu-lhe não só a aprovação que desejava, como todos os sinais de benquerença e admiração.
Novo caminho de salvação
Munidos da bênção e proteção papais, os religiosos saíram pelas cidades, em duplas, proclamando a todos aquele novo caminho de salvação que Deus Se dignara revelar a seu pai espiritual.
Em suas pregações, São Francisco possuía “algo de insinuante que persuadia. […] Era um moralista inexorável, que não calava nada do que lhe parecesse errado”, e por isso despertava “em torno de si não somente admiração, mas também temor: tinha em si um pouco da alma terrível de São João Batista”. Seu discurso se comparava “a uma espada que traspassava os corações”.[13]
Esse imenso apostolado logo conquistou para o serviço de Deus uma jovem nobre de dezessete anos, chamada Clara, a qual, arrebatada pela santidade de Francisco, decidiu segui-lo de todo o coração. Tornou-se, então, a fundadora do ramo feminino da Ordem.
Em pouco tempo, eram tantos os que se sentiam atraídos pelo carisma franciscano que Francisco viu-se obrigado a fundar também uma Ordem Terceira, à qual viriam a pertencer ninguém menos que São Luís IX de França, Santa Isabel da Hungria e Santa Isabel de Portugal.
Perseguido pelos próprios discípulos…
Apesar de tantas vitórias, o Santo de Assis não escapou da tragédia dos conflitos internos. Ele foi traído por um de seus discípulos mais próximos, Elias de Cortona, que arrancou de suas mãos o governo da Ordem. Esse filho infiel arrastou outros atrás de si, e fez dos Frades Menores uma instituição vistosa diante do mundo, que logo ocupou cátedras de universidades. Com imensa dor no coração, Francisco teve de renunciar à sua obra mais amada…
Os discípulos revoltosos contavam com o apoio da Cúria Romana, que julgava a regra evangélica de São Francisco dura demais para ser observada pelos “mais fracos”. O próprio Pontífice alegou, certa vez, que era preciso “pensar nos que viriam depois”.[14]
Num belo dia, porém, enquanto caminhava angustiado e temeroso pelo futuro de sua “família pobre”, apareceu-lhe um Anjo que lhe fez esta promessa consoladora: “Eu te digo, em nome de Deus: tua Ordem nunca vai deixar de existir, até o último dia”![15]
Afastado da direção de sua obra, o Poverello decidiu refugiar-se na solidão, acompanhado apenas por alguns poucos discípulos fiéis. Neste período bendito, foi galardoado com a maior graça mística de sua vida: recebeu do próprio Redentor, em sua carne, os sagrados estigmas da Paixão!
Últimos anos nesta terra
Não faltava muito para sua partida deste mundo. Nos últimos anos de vida, esteve doente e, enfraquecido pela dura ascese e pelos estigmas, mal podia caminhar. Quando, aos quarenta e dois anos, sentiu chegar o fim de seus dias, abençoou a cidade de Assis e pediu a seus discípulos que entoassem algum cântico à “Irmã Morte”. A ela se entregou, cantando, no dia 3 de outubro de 1226.
O mundo ficava privado de sua dulcíssima presença, mas o inestimável tesouro de seus ensinamentos, exemplos e espírito permaneceu para sempre. Este santo legado, sem dúvida, transcendeu as necessidades da Idade Média e tornou-se uma lição para a humanidade inteira, até o fim dos tempos.
Nos dias atuais, em que tantos homens rejeitam a Fé e se afundam nos mais vergonhosos pecados, Deus pergunta às almas que ainda O amam: “Não vês como minha casa está em ruínas?” E as conclama a reconstruí-la.
Diante deste grandioso chamado, que atitude tomaremos? Levantar-nos-emos como outros “Franciscos” para defender sua glória?
Peçamos forças a Nossa Senhora para imitar o Santo de Assis. Despojemo-nos das vestes do relativismo e do pecado, e lancemo-nos sem titubear ao combate que nos é proposto, com o coração cheio do amor que pervadiu a vida, a obra e a memória do Poverello. ◊
Notas
[1] Cf. A vida de São Francisco de Assis. Nós que convivemos com ele… Assis: Minerva, 2014, p.21-22.
[2] JOERGENSEN, Johannes. São Francisco de Assis. Petrópolis: Vozes, 1957, p.111.
[3] Cf. A vida de São Francisco de Assis, op. cit., p.23.
[4] Idem, p.27.
[5] Idem, p.28.
[6] NIGG, Walter. Francisco, o Irmão Menor. In: O homem de Assis. Francisco e seu mundo. Petrópolis: Vozes, 1975, p.11.
[7] Idem, p.14.
[8] Cf. JOERGENSEN, op. cit., p.104-105.
[9] NIGG, op. cit., p.19.
[10] CROUZET, Maurice (Dir.). História Geral das civilizações. A Idade Média. 2.ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1958, t.III, p.151-152.
[11] Cf. CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Revolução e Contra-Revolução. 5.ed. São Paulo: Retornarei, 2002, p.26-27.
[12] FÉLIX LOPES, Fernando. Opúsculos de São Francisco de Assis. Braga: Editorial Franciscana, 1968, p.139.
[13] JOERGENSEN, op. cit., p.211.
[14] Cf. NIGG, Op. cit., p.34-35.
[15] Idem, p.35.
Boa noite, Pela primeira vez estou lendo sobre São Francisco, tive um sonho em que uma freira me dava uma imagem Santa dizendo Assis.Pretendo comprar uma pois intendi q era São Francinco de Assis.