Homem de caráter forte e explosivo, São Jerônimo é comparado na Liturgia das Horas com um sol e com um leão. Quais os traços de sua vida que levaram a Igreja a estabelecer tão poético paralelismo?

 

Era uma bela e aprazível tarde de outono, em fins do século IV. Num mosteiro situado nos arredores de Belém, na longínqua Palestina, ouvia-se apenas o ecoar da voz grave e compassada de um monge, proveniente da sala onde a comunidade inteira, em silencioso recolhimento, escutava a leitura espiritual.

De repente, entrou no recinto um enorme leão manco. Mal o viram, os monges debandaram, num tremendo alvoroço. Só um permaneceu sentado, impassível: o superior da casa. Levantando-se, chamou a fera com um aceno de mão. Esta se aproximou como um dócil cordeirinho e mostrou-lhe uma pata ferida. Depois de examiná-la, o religioso providenciou que os irmãos a curassem e dessem alimento ao felino, o qual se comportou com exemplar mansidão e passou a viver com eles. Além de protegê-los e prestar-lhes numerosos serviços, tornou-se fiel companheiro de seu benfeitor, o reitor do convento, célebre asceta, sábio e escritor. E quem ia visitá-lo em sua cela o encontrava o mais das vezes com a pena na mão, debruçado sobre um pergaminho, e tendo a seu lado o majestoso rei dos animais…

Será realidade esta historieta contada pelos mais antigos biógrafos de São Jerônimo? Segundo alguns autores, sim; para outros, porém, trata-se de pura lenda. Apesar da controvérsia, todos concordam que nada poderia transmitir à posteridade uma noção tão acertada a respeito de São Jerônimo quanto imaginá-lo convivendo com um leão. Sim, pois este grande Padre da Igreja foi um homem de caráter forte e explosivo, ardente de zelo pela glória de Deus e incansável defensor da Fé que, por proclamar a verdade com galhardia, mereceu ser comparado pela Igreja com um leão.

São Jerônimo, por Taddeo di Bartolo –
Metropolitan Museum of Art, Nova York

Jovem estudante em Roma

O Império Romano do Ocidente se encontrava no seu ocaso quando Jerônimo chegou a Roma pela primeira vez, por volta do ano 360. Era então um jovenzinho de 12 anos de idade, inteligente, decidido e voluntarioso, com um futuro promissor diante de si. Filho de família cristã e de boas posses, havia ele concluído o ensino básico em sua pátria — a pequena Stridon, cidade da Dalmácia — e vinha estudar numa das famosas escolas de gramática e retórica da capital do Império.

Duas características do novo aluno logo despertaram a atenção dos mestres: o incomum talento literário e o vivo entusiasmo pelos clássicos latinos, que naquela época constituíam a base do aprendizado das letras. Jerônimo regalava-se com a leitura destes autores — dos quais, Cícero era o seu preferido — e não poupou dinheiro nem esforços para formar uma biblioteca particular, copiando de próprio punho várias obras. Ademais, dotado de excelente memória, decorava os textos com facilidade e, com seu ânimo belicoso, não hesitava em declamá-los diante da classe, desafiando as burlas dos colegas e as críticas dos professores.

Sempre atraído pela polêmica, tornou-se assíduo frequentador do fórum, onde podia complementar as lições recebidas em classe, observando de perto a nobre arte da oratória. Entretanto, se esta o encantava, jamais o iludiu. Menino sagaz, percebia quanto aquelas discussões — que muitas vezes terminavam em ofensas pessoais — eram em geral movidas pela vaidade, visando a fortuna e o aplauso dos outros. E ele aspirava a coisas mais altas.

Embora fosse ainda catecúmeno — pois naquele tempo normalmente se adiava o Batismo para depois da adolescência —, havia aderido com tal determinação aos princípios religiosos transmitidos pelos pais, que nem mesmo o ambiente de decadência da Urbe conseguiu abalar suas convicções. Assim, nos feriados costumava visitar as catacumbas em companhia de alguns virtuosos amigos, para juntos venerarem os sepulcros dos mártires. Quiçá aquelas galerias sagradas tenham despertado nele o enlevo pela fortaleza dos filhos da Igreja, os quais, enfrentando os césares, as multidões e as feras, tinham abraçado a morte com ­alegria, por amor ao Reino dos Céus. Ele também queria ser admitido nesta Instituição Sagrada, geradora de Santos e heróis.

Quando contava mais ou menos 20 anos de idade, pediu o Batismo. Apesar de não ter deixado nenhuma descrição das circunstâncias em que recebeu este Sacramento — o qual, segundo se crê, foi-lhe administrado pelo Papa Libério —, as afirmações por ele feitas em escritos posteriores denotam o quanto o acontecimento marcou sua vida, a ponto de declarar que se sentia “romano não apenas por linhagem, mas de modo especial por ter obtido junto à Cátedra de São Pedro sua consagração na milícia de Cristo”.1

A fera se aproximou dele como um dócil cordeirinho e mostrou-lhe uma pata ferida –
Cenas da vida de São Jerônimo, por Sano di Pietro – Museu do Louvre, Paris

Primeira experiência monástica

Concluídos os estudos, o jovem neófito partiu para a Gália. Os motivos desta viagem são desconhecidos. É provável, contudo, que um deles fosse o desejo de iniciar uma carreira prestigiosa na cidade de Tréveris, a qual, sendo residência habitual do imperador Valentiniano I, oferecia numerosas oportunidades. Ali deu ele o primeiro passo de sua gloriosa trajetória, não ocupando um cargo naquele Império prestes a desmoronar, mas servindo à imortal Igreja Católica.

Algumas décadas antes, chegara a Tréveris Santo Atanásio, exilado por Constantino, trazendo uma novidade para o Ocidente: a forma de vida ascética dos monges orientais. E certamente foi no contato com os religiosos recém-estabelecidos na Gália Bélgica que a graça falou à ­alma de Jerônimo, abrindo-a para a vocação monástica.

Enquanto esteve naquela cidade, continuou a acrescentar livros à sua biblioteca pessoal. No entanto, copiou códices bem diferentes dos que até então tinham sido alvo de seu interesse: duas obras de Santo Hilário de Poitiers, sendo uma delas o Comentário sobre os Salmos. Com a transcrição deste, abriam-se para Jerônimo as portas da exegese, na qual ele em breve faria render seus talentos, produzindo verdadeiras joias para o mundo cristão.

Sua primeira experiência de vida monástica se deu pouco depois, em Aquileia, onde se uniu a um grupo de ascetas por ele denominado “quase coro dos bem-aventurados”,2 de tal modo eram animados pelo amor a Deus e pela benquerença mútua. A Providência, porém, tinha outros planos para ele. No desejo de visitar a Terra Santa e conhecer o heroísmo dos solitários do deserto, abandonou aquele convívio paradisíaco e pôs-se a caminho do Oriente.

“Onde está o teu tesouro…”

O itinerário da longa viagem passava pela cidade de Antioquia, no sul da atual Turquia, cuja população, composta de judeus, gregos e sírios, formava uma sociedade bastante helenizada. Ali se deteve por algum tempo Jerônimo, hospedado na casa de um amigo, em condições que lhe permitiram aprofundar-se no estudo da língua grega.

Todavia, seu espírito não estava em paz. Queria servir a Cristo; por amor a Ele renunciara à carreira, à família e a todos os seus bens… exceto a um: “Eu não conseguia desapegar-me da biblioteca que com tanto trabalho formara em Roma. Chegava a jejuar — pobre de mim! — para não demorar a entregar-me à leitura de Túlio. Depois das longas vigílias em oração e das lágrimas saídas do fundo do meu coração pela profunda recordação de meus pecados passados, apanhava Plauto nas mãos. Se, retornando à razão, resolvia ler um profeta, aborrecia-me com seu estilo inculto; e como a cegueira dos meus olhos me impedia de ver a luz, atribuía a culpa ao sol, e não aos meus olhos”.3

Encontrava-se ele em grande luta interior quando, certo dia, caiu gravemente enfermo, com febres agudas que o obrigaram a guardar o leito. Sucedeu-lhe então um fenômeno curioso: “Senti-me de súbito arrebatado em espírito até o tribunal do Juiz. […] Interrogado acerca de minha condição, respondi que era cristão. Mas quem o presidia replicou: ‘Mentes, tu és ciceroniano e não cristão; onde está o teu tesouro, aí está teu coração (Mt 6, 21)’. Então emudeci e, entre os açoites — pois Ele ordenara que me açoitassem —, atormentava-me mais o fogo da consciência, considerando este versículo: mas no inferno, quem te louvará? (Sl 6, 6)”.4

As boas disposições de Jerônimo alcançaram-lhe por fim a indulgência do Senhor, que o libertou. Ao voltar a si, trazia nas costas as marcas das vergastadas e sentia dores no corpo.

“Repreende o sábio, e ele te amará” (Pr 9, 8), diz o Autor Sagrado. Não foi outra a reação de Jerônimo: “Daí em diante, dediquei-me ao estudo das leituras divinas como antes não o havia feito com as profanas”.5 Da fidelidade a esta graça surgiram corolários tão excelentes e abundantes, que a Igreja o reconhece e venera como o Doutor Máximo na interpretação das Escrituras.6

Com o auxílio da graça, combateu energicamente as tentações sofridas durante aquele período no deserto –
Cenas da vida de São Jerônimo, por Sano di Pietro – Museu do Louvre, Paris

Precioso fruto do combate às tentações

Com “poucos livros e muitas ideias elevadas”,7 o monge itinerante partiu de Antioquia para a região desértica de Cálcis da Síria, junto à atual Alepo. Buscava a solidão, mas não conseguiu desfrutá-la por muito tempo, pois naquele deserto havia numerosos eremitas, e alguns deles se fizeram seus companheiros.

Nesse período, ele sofreu duras tentações. Com o auxílio da graça, combateu-as energicamente, aliando à oração e à penitência um recurso eficaz para afastar as sugestões do demônio: aplicou-se à aprendizagem da língua hebraica, com a ajuda de um irmão de origem israelita. “Quanto trabalho consumi nesta tarefa” — recordava ele, já na ancianidade — “quantas dificuldades enfrentei, quantas vezes, desesperançado, desisti para depois recomeçar”.8

Além de lhe renderem méritos no Céu, estes árduos momentos de estudo foram, na verdade, os alicerces da colossal missão que anos mais tarde ele levaria a cabo, traduzindo a Bíblia do hebraico e do grego para o latim. E por isso acrescentava: “Agradeço agora ao Senhor, pois colho os doces frutos de tão amarga semeadura”.9

Quis a Providência conceder-lhe ainda duas importantes prerrogativas: o sacerdócio, que recebeu em Antioquia, tão logo regressou do deserto; e os ensinamentos de São Gregório Nazianzeno, de quem foi discípulo ao longo de três anos, em Constantinopla. Sob o impulso deste insigne mestre, São Jerônimo traduziu do grego para o latim a Crônica de Eusébio de Cesareia e as Homilias de Orígenes.

Padroeiro dos tradutores

Uma necessidade da Santa Igreja o fez retornar a Roma em 382, convocado pelo Papa São Dâmaso para participar do Concílio Geral que ali se realizaria naquele ano. Não obstante, quando o evento terminou, o Santo Padre o reteve a seu lado, tomando-o por secretário e conselheiro. O amor e a obediência ao Vigário de Cristo estavam acima de todas as aspirações do sábio asceta: só dali a três anos, após a morte do Santo Pontífice, retomaria ele o caminho do Oriente.

Mais do que soluções de problemas eclesiásticos, nesta estada em Roma ocupou-se de trabalhos relativos às Escrituras, dos quais o grande impulsionador era o próprio Papa. Este lhe apresentou consultas sobre diversas passagens bíblicas, e as respostas tanto o agradaram — não só pela clareza e profundidade, como também pelo belo estilo —, que logo lhe encomendou a revisão do texto latino dos Evangelhos, cujas versões eram, além de inexatas, muito pouco literárias.

Assim começou São Jerônimo sua gigantesca obra de tradução da Bíblia, primeiramente a partir do texto grego e, anos mais tarde, utilizando os originais hebraicos, donde resultaria a famosa Vulgata. Devido a este magistral empreen­dimento, bem como às regras de tradução que deixou consignadas em seus escritos, ele hoje é considerado, a justo título, o padroeiro dos tradutores.

Guia, mestre e verdadeiro pai

À semelhança de lírios nascidos no lodo, havia naquela Roma decadente, eivada de paganismo, almas nobres pelo sangue e pelo ideal. Eram damas da alta aristocracia, virgens e viúvas, que, congregadas por Santa Marcela, almejavam alcançar a perfeição cristã. Socorriam pobres e enfermos, e defendiam escravos; mas também lhes atraía a vida ascética: jejuavam, dedicavam-se a práticas piedosas, reuniam-se para recitar os Salmos e estudar a Bíblia.

Em São Jerônimo encontraram elas um mentor, um guia, um mestre e verdadeiro pai. Ele as orientava nas sendas do ascetismo, as instruía na ciência das Escrituras e chegou a constituir um projeto monástico para estas almas de escol, em uma propriedade de Santa Marcela, que acabou não vingando.

Entre tal plêiade de santas se destacam Santa Paula e sua filha Santa Eustáquia, que o seguiram em sua viagem definitiva para o Oriente, juntamente com os monges, seus companheiros. Depois de uma peregrinação à Terra Santa e uma breve permanência no Egito, a comitiva se estabeleceu em Belém, onde, quase quatro séculos antes, nascera o Salvador. Sobre a rústica Gruta que então Lhe servira de abrigo, erguia-se agora a imponente Basílica da Natividade, construída pelo Imperador Constantino.

Em tão almejado recolhimento, o Santo Doutor passou os últimos 34 anos de sua vida, sem cessar de trabalhar –
À esquerda, gruta de São Jerônimo, Basílica da Natividade (Belém); à direita, morte de São Jerônimo, por Sano di Pietro

Junto ao Presépio do Senhor

Em tão almejado recolhimento, o Santo Doutor passou os últimos 34 anos de sua vida, sem cessar de trabalhar: às mortificações e longos períodos de oração se sucediam horas de intensa atividade, nas quais escrevia ou ditava seus comentários exegéticos e cartas — tendo entre seus correspondentes o célebre Bispo de Hipona, Santo Agostinho —, e compunha obras de caráter biográfico e sobre a História da Igreja. Foi também ali que ele elaborou vibrantes tratados apologéticos, nos quais “contestou enérgica e vivazmente os hereges que recusavam a Tradição e a Fé da Igreja”.10

Onde hauriu forças para ser fiel a tão alta missão? Ao analisar sua longa trajetória, podemos notar um fator incontestável de sua santidade: o amor apaixonado à Mãe de Deus, tão presente no conjunto de sua obra que “se poderia falar com certa liberdade de ‘mariologia jeronimiana’”.11 Um dos escritos mais famosos em que manifesta seu grande amor por Nossa Senhora é o tratado em defesa da virgindade de Maria, contra Helvídio, detrator deste privilégio. As palavras com as quais o encerra — em seu estilo acerado de sempre — denotam uma sincera piedade mariana: “Como penso que tu, derrotado pela verdade, começarás a detratar minha vida e lançar-me maldições […], te advirto, preventivamente, que estas tuas invectivas, lançadas com a mesma boca com que caluniaste Maria, serão para mim motivo de glória”.12

Em Belém, onde brilhou a luz da salvação do mundo nas mãos de Maria Santíssima, terminou seus dias. Tendo ele forjado sua índole férrea no cadinho da polêmica e do asceticismo monástico, e na suavidade da devoção a Nossa Senhora, se transformou no “sol que a Escritura ilumina”, no leão que, “derrubando os hereges”, preservou as “mensagens da Fé”.13 

 

Notas

1 PENNA, Angelo. San Jerónimo. Barcelona: Luis Miracle, 1952, p.19.
2 SÃO JERÔNIMO. Eusebii Chronicorum. L.II, ad ann. 379: ML 27, 507.
3 SÃO JERÔNIMO. Ad Eustochium, Paulæ filiam. De custodia virginitatis. Epistola XXII, n.30: ML 22, 416.
4 Idem, ibidem.
5 Idem, 417.
6 Cf. BENTO XV. Spiritus Paraclitus, n.1.
7 MORENO, Francisco. São Jerônimo. A espiritualidade do deserto. São Paulo: Loyola, 1992, p.31.
8 SÃO JERÔNIMO. Ad Rusticum monachum. Epistola CXXV, n.12: ML 22, 1079.
9 Idem, ibidem.
10 BENTO XVI. Audiência geral, de 7/11/2007.
11 PENNA, op. cit., p.424.
12 SÃO JERÔNIMO. Adversus Helvidium. De perpetua virginitate Beatæ Mariæ, n.22. In: Obras Completas. Tratados apologéticos. Madrid: BAC, 2009, v.VIII, p.115.
13 MEMÓRIA DE SÃO JERÔNIMO. Hino de Laudes e Vésperas. In: COMISSÃO EPISCOPAL DE TEXTOS LITÚRGICOS. Liturgia das Horas. Petrópolis: Ave Maria; Paulinas; Paulus; Vozes, 1999, v.IV, p.1330.

 

São Jerônimo – Igreja do Mosteiro dos Jerônimos, Lisboa

Hino da hora Laudes

 

Tradutor e exegeta da Bíblia,
foste um sol que a Escritura ilumina;
nossas vozes, Jerônimo, escuta:
nós louvamos-te a vida e a doutrina.
Relegando os autores profanos,
o mistério divino abraçaste,
qual leão, derrubando os hereges,
as mensagens da fé preservaste.
Estudaste a palavra divina
nos lugares da própria Escritura,
e, bebendo nas fontes o Cristo,
deste a todos do mel a doçura.
Aspirando ao silêncio e à pobreza,
no presépio encontraste um abrigo;
deste o véu a viúvas e virgens,
Paula e Eustáquia levaste contigo.
Pelo grande doutor instruídos,
proclamamos, fiéis, o Deus trino;
e ressoem por todos os tempos
as mensagens do livro divino.

 

 

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