O Livro dos Salmos é um verdadeiro compêndio de nosso relacionamento com Deus. Dificilmente encontraremos um sentimento, uma moção, uma provação ou uma súplica que não estejam expressos com poesia em seus versículos.
Contudo, entre esses textos inspirados, o Salmo 129 chama a atenção devido à justeza quase “científica” com que descreve, passo a passo, uma prova à qual está sujeita toda alma que leva a sério a própria santificação.
Em determinado momento da vida, o homem descobre a distância insondável que o separa da perfeição – e de Deus, portanto –, constata não ter forças para a transpor e sente que o naufrágio se aproxima. Nessa hora, só encontra uma esperança, uma tábua de salvação: a prece, arma infalível que o orgulho humano teima sempre em relegar a último recurso.
Da alma brota, então, o grito lancinante: “Do fundo do abismo, clamo a Vós, Senhor; Senhor, ouvi minha oração” (Sl 129, 1-2). Ela não presume que seu pedido será atendido, apenas clama. Entretanto Deus só espera essa atitude de humildade para fazer sentir sua presença.
Quando a alma percebe a audiência divina, que palavras profere? Curiosamente, não pede que lhe seja indicada uma saída. Ela sente que, para não sucumbir, tem necessidade imediata de outra coisa: precisa de clemência. “Se tiverdes em conta nossos pecados, Senhor, Senhor, quem poderá subsistir diante de Vós?” (Sl 129, 3).
Uma vez pedida, a clemência vem e – ó maravilha! – ela mesma é a solução: “Mas em Vós se encontra o perdão dos pecados, para que, reverentes, Vos sirvamos” (Sl 129, 4).
Uma devoção para todos
Por que nos aventuramos a descrever esse processo? Para demonstrar como, cedo ou tarde, Deus nos faz passar por certos dramas, a fim de vincar em nosso espírito uma verdade crucial: precisamos da misericórdia. E dificilmente se pode falar em misericórdia, sem evocar a célebre devoção ao Sagrado Coração de Jesus.
Essa figura terníssima de tal maneira supre e satisfaz nossa necessidade de compaixão, que alguns chegaram a postular ter sido ela “inventada” especificamente com tal finalidade.
Explicamos. Foi só a partir do século XVII, com Santa Margarida Maria Alacoque, que dita forma de culto se alastrou por todo o orbe católico, e com tanta pujança que alguns autores chegaram a afirmar ter sido ela uma invenção do catolicismo moderno, o qual haveria abandonado a elevadíssima concepção medieval do amor, materializando-a em uma adoração ao Coração físico de Jesus.1 Segundo outros, São Cláudio de la Colombière ter-se-ia inspirado em um certo quaker chamado Thomas Goodwin para idealizar a devoção, e depois instigado Santa Margarida a propagá-la.2
Felizmente, esses postulados são falsos. A carência de afeto – ou o excesso de sentimentalismo – do homem moderno não teve o mérito de “criar” o Sagrado Coração de Jesus. Durante a própria Idade Média, no silêncio dos claustros, já vemos São Bernardo penetrar misticamente o lado de Cristo aberto pela lança, a fim de encontrar em seu interior o Coração transpassado e desvendar os segredos desse grande sacramento de bondade, as entranhas misericordiosas de nosso Deus.3 E não só ele, mas outros grandes nomes da espiritualidade do século XII seguiram as mesmas sendas.4
Na verdade, essa devoção é muitíssimo anterior inclusive à Idade Média. Jesus mesmo nos apontou como exemplo seu Coração “manso e humilde” (Mt 11, 29), e parece que os primeiros veneradores deste estão muito próximos dos tempos em que ele palpitou fisicamente entre os homens. Falando de um modo mais específico, ao percorrermos os escritos do Apóstolo São Paulo encontramos nele um verdadeiro paladino do Sagrado Coração de Jesus5 e, em certo sentido, um precursor das revelações de Santa Margarida.
O que é o coração para São Paulo?
Os hebreus de outrora entendiam o homem de uma maneira muito concreta, e nunca dissociavam corpo e alma. É frequente encontrar, no Antigo Testamento, alusões à dimensão simbólica dos olhos, das orelhas, do coração, da língua, das mãos e até mesmo dos pés para evocar a totalidade da atividade humana. O coração, evidentemente, tem a primazia.6
São Paulo foi herdeiro dessa concepção. Se analisarmos suas cartas, em muitas passagens encontraremos alusões ao coração como: o receptáculo da caridade ou a fonte de onde ela procede (cf. Rm 5, 5; I Tim 1, 5), o sacrário das consolações (cf. II Tes 2, 16; Col 2, 2), da paz de alma (cf. Col 3, 15), da obediência à Palavra de Deus (cf. Rm 6, 17), da misericórdia (cf. Col 3, 12), da generosidade (cf. II Cor 9, 7) e das resoluções firmes (cf. I Tes 3, 13).
Em síntese, o coração aparece como o centro da personalidade, o lugar no qual se enraíza a vida religiosa e moral e se determina a orientação da existência. Para resumir tudo em uma única palavra, como Dr. Plinio Corrêa de Oliveira,7 o coração simboliza a mentalidade do homem.
Sob essa perspectiva, a devoção ao Coração de Jesus adquire uma profundidade insondável. Mais adiante voltaremos a esse assunto.
Entranhas: sinônimo de coração
Apesar de tão vasta gama de significados, é inegável que o coração possui uma relação toda especial com o amor.
Nesse sentido, há outro termo que o Apóstolo utiliza como equivalente: entranhas. A paridade entre ambos é universalmente reconhecida, mas este último apresenta um matiz especial de afeto, como comenta o Pe. Bover: a palavra “entranhas expressa maior ternura, delicadeza ou profundidade de sentimento que coração, como também certo movimento ou inclinação à pessoa amada. […] As entranhas são o símbolo do próprio amor, no que ele tem de mais íntimo e requintado, e a síntese da pessoa inteira, no que ela tem de mais atrativo e comunicativo”.8
Aliás, é preciso dizê-lo, São Paulo não usa a expressão “coração de Jesus”, mas somente “entranhas de Jesus”. Entretanto, isso não altera em nada a profunda similitude teológica entre seus escritos e as revelações de Santa Margarida.
Jesus foi traído por seu amor
Sobre a compreensão de São Paulo acerca do amor de Jesus, podemos encontrar três passagens especialmente elucidativas: “A minha vida presente, na carne, eu a vivo na fé do Filho de Deus que me amou e Se entregou por mim” (Gal 2, 20); “Progredi na caridade, segundo o exemplo de Cristo, que nos amou e por nós Se entregou” (Ef 5, 2), “Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e Se entregou por ela” (Ef 5, 25).
Nessas perícopes, o Apóstolo expressa as três dimensões do amor de Nosso Senhor: “Cristo me amou”, “Cristo nos amou” e “Cristo amou a Igreja”. Trata-se de uma dileção por cada homem, pela humanidade e, de modo especial, por seu Corpo Místico. São Paulo deixa claro também que o amor de Jesus O levou a entregar-Se. O próprio Redentor o expressou nas palavras da instituição da Eucaristia, como recorda a Primeira Carta aos Coríntios: “Isto é o meu Corpo, que é entregue por vós” (11, 24).
Dir-se-ia ser tal o carinho de Cristo por nós que acabou “obrigando-O” a consumar a Paixão e, não contente com isso, a fazer-Se nosso alimento. O Salvador não padeceu na Cruz porque Judas O entregou; o asqueroso filho da perdição chegou tarde demais: Jesus já havia sido “traído” por seu próprio amor.
Sim, traído, porque Ele Se dispôs a sofrer, mesmo sabendo que nós seríamos infiéis ao seu sacrifício. Ao menos é disso que Se queixa a Santa Margarida: “Eis o Coração que tanto amou os homens, que nada deixou de perdoar até esgotar-se e consumir-se para lhes demonstrar seu amor, e que em reconhecimento não recebeu, da maior parte, senão ingratidão, seja por suas irreverências e sacrilégios, seja pela frieza e desprezo com que Me tratam neste Sacramento de amor. E o que ainda Me fere muito é que são corações a Mim consagrados os que assim Me tratam”.9
O Filho nos ensina a ser filhos
Embora o Sangue de Nosso Senhor tenha sido inúmeras vezes lançado ao solo, não por isso deixou de ser fecundo. Em outra aparição à vidente, Ele descobriu seu amoroso Coração, afirmando: “Eis o Mestre que te dou, o qual te ensinará tudo o que deves fazer por meu amor. Por isso, tu serás sua discípula amada”.10 A torrente de caridade que brota das entranhas do Salvador se derrama sobre quem se dispõe a dela beber, e o introduz numa verdadeira escola. O que aprendemos nela?
Dois versículos paulinos conexos aportam luz a esta reflexão: “A prova de que sois filhos é que Deus enviou aos vossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: ‘Aba, Pai!’” (Gal 4, 6); “Porquanto não recebestes um espírito de escravidão para viverdes ainda no temor, mas recebestes o espírito de adoção pelo qual clamamos: Aba! Pai!” (Rm 8, 15). Quer dizer, o Espírito Santo é o Espírito do Filho, infundido em nossos corações para nos proporcionar a filiação adotiva.
Em outras palavras, Nosso Senhor, objeto das predileções do Pai, concede-nos gozar do mesmo amor que Ele recebe. E não só isso: enquanto verdadeiro Homem, que ama o Pai com sentimentos e afetos humanos perfeitíssimos, nos impulsiona a participar também de seu amor ascendente.
Enfim, quando o Espírito do Filho é infundido em nossos corações, os torna semelhantes ao d’Ele: o Filho nos ensina a ser filhos.
Coração de Paulo, Coração de Cristo
O ápice de tal escola é a troca de corações. Santa Margarida Alacoque descreve que, certa vez, Nosso Senhor lhe pediu seu coração e o introduziu em seu próprio Coração adorável, no qual o mostrou a ela como um pequeno átomo, que se consumia naquela fornalha incendiada. Em seguida, tirou-o dali como se fosse uma chama ardente, e voltou a inseri-lo no lugar de onde o tinha misticamente retirado, dizendo-lhe: “Eis, minha amada, um precioso penhor de meu amor, o qual encerra em teu peito uma pequena centelha de suas vivas chamas, para que te sirva de coração”.11
O que significa tal visão? Recordemos que esse órgão simboliza a mentalidade. A partir do momento em que o augustíssimo fenômeno sobrenatural da troca de corações ocorre, a alma passa a julgar, sentir, agir e reagir à semelhança do próprio Homem-Deus; trata-se de uma vida nova que começa a florescer.
O Apóstolo das Gentes sem dúvida também recebeu essa graça, como deixa claro em uma de suas frases mais emblemáticas: “Eu vivo, mas já não sou eu; é Cristo que vive em mim” (Gal 2, 20). Com razão concluiu São João Crisóstomo, ao comentar essa afirmação: “O coração de Paulo, portanto, era o Coração de Cristo”.12
Fazei nosso coração semelhante ao vosso
E a nós cabe, porventura, uma meta tão elevada? Poderíamos almejá-la sem correr o risco de cair na presunção? Para fornecer uma solução adequada a tais perguntas, nada melhor do que ceder a palavra ao próprio São Paulo.
O Apóstolo nos preceitua a ser “imitadores de Deus” (Ef 5, 1), progredindo na caridade até o derramamento de sangue se necessário, conforme o exemplo de Nosso Senhor. Devemos, afirma em outro lugar, ser uma “carta de Cristo” (II Cor 3, 3), escrita não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas nas tábuas de carne dos nossos corações. Em síntese, eis a resposta: é evidente que sim!
Também Santa Margarida, em uma missiva, suplica a certa religiosa que faça uma doação de todo o seu ser, para que Nosso Senhor, tendo-o purificado daquilo que O desagrada, possa dispor dele segundo o seu beneplácito. De ordinário, continua a Santa, Ele pede isso a seus mais queridos amigos: unidade de vontade, para não querer nada além do que Ele quer; unidade de amor; unidade de coração, de espírito e de operação, para nos unir ao que Ele realiza em nós.13
Meta tão sublime poderia parecer um pouco etérea, se ambos os paladinos do Sagrado Coração de Jesus não houvessem explicitado bem claramente seu significado.
São Paulo preceitua: “Deixai de lado todas estas coisas: ira, animosidade, maledicência, maldade, palavras torpes da vossa boca, nem vos enganeis uns aos outros. Vós vos despistes do homem velho com os seus vícios, e vos revestistes do novo, que se vai restaurando constantemente à imagem d’Aquele que o criou”. Portanto, continua ele, é preciso que nos revistamos “de entranhada misericórdia, de bondade, humildade, doçura, paciência” (Col 3, 8-10.12).
Sim, Nosso Senhor quer tudo dos que Ele ama: a perfeita conformidade de vida com suas santas máximas, que se traduz numa completa diminuição e esquecimento de si mesmos, como afirma Santa Margarida em uma de suas cartas.14
Em suma, amoldar nossa mentalidade ao Sagrado Coração de Jesus significa conhecê-lo, adorá-lo e imitá-lo em sua integridade, sobretudo onde ela brilha com mais intensidade, ou seja, no escândalo da Cruz. São Paulo não conhecia nada além de “Jesus Cristo crucificado” (I Cor 2, 2), e foi pregado misticamente com Nosso Senhor no madeiro (cf. Gal 2, 19). A nós é pedida a mesma atitude, pois “a Cruz é o trono dos verdadeiros amantes de Jesus Cristo”.15 ◊
Notas
1 É o que sustenta o célebre convertido Joris-Karl Huysmans (cf. En route. Paris: Tresse & Stock, 1895, p.341-342.
2 Cf. BAINVEL, J. Cœur Sacré de Jésus (dévotion au). In: VACANT, Alfred; MANGENOT, Eugène (Dir.). Dictionnaire de Théologie Catholique. Paris: Letouzey et Ané, 1908, v.III, c.303.
3 Cf. SÃO BERNARDO DE CLARAVAL. Sermones in Cantica. Sermo 61, n.4: PL 183, 1072.
4 Cf. VANDENBROUCKE, François. Storia della Spiritualitá. Il Medioevo: XII-XVI secolo. 3.ed. Bologna: EDB, 2013, v.V, p.66.
5 Será de enorme utilidade para esta reflexão a obra do Pe. José María Bover, SJ, à qual remetemos o leitor interessado em maiores aprofundamentos sobre o assunto: San Pablo, maestro de la vida espiritual. 3.ed. Barcelona: Casals, 1955, p.283-317.
6 Cf. CÔTÉ, Julienne. Cent mots-clés de la théologie de Paul. Ottawa: Novalis, 2000, p.84.
7 Cf. CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Devoção ao Sagrado Coração de Jesus. In: Dr. Plinio. São Paulo. Ano XIV. N.155 (fev., 2011); p.10.
8 BOVER, op. cit., p.288.
9 SANTA MARGARIDA MARIA ALACOQUE. Autobiografía. In: SÁENZ DE TEJADA, José María (Org.). Vida y obras completas de Santa Margarida Maria Alacoque. Quito: Jesús de la Misericordia, 2011, p.142.
10 SANTA MARGARIDA MARIA ALACOQUE. Memoria escrita por orden de la M. Saumaise. In: SÁENZ DE TEJADA, op. cit., p.172.
11 SANTA MARGARIDA MARIA ALACOQUE, Autobiografía, op. cit., p.115.
12 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO. Homilias sobre a Carta aos Romanos. Homilia 32, n.24. In: Comentário às cartas de São Paulo. São Paulo: Paulus, 2010, p.530.
13 Cf. SANTA MARGARIDA MARIA ALACOQUE. Carta 94. A la H. de la Barge, Moulins (octubre de 1688). In: SÁENZ DE TEJADA, op. cit., p.366.
14 Cf. SANTA MARGARIDA MARIA ALACOQUE. Carta 109. A la M. M. F. Dubuysson, Moulins (22 de octubre de 1689). In: SÁENZ DE TEJADA, op. cit., p.398.
15 SANTA MARGARIDA MARIA ALACOQUE. Carta 16. A la M. de Saumaise, Dijon (25 de agosto de 1682). In: SÁENZ DE TEJADA, op. cit., p.246.