Ao comemorar a dedicação da Catedral do Papa, a Igreja lembra que cada batizado é também um templo que deve ser devolvido a Deus na plenitude de sua beleza.
Evangelho da Festa da Dedicação da Basílica do Latrão
13 Estava próxima a Páscoa dos judeus e Jesus subiu a Jerusalém. 14 No Templo, encontrou os vendedores de bois, ovelhas e pombas e os cambistas que estavam aí sentados. 15 Fez então um chicote de cordas e expulsou todos do Templo, junto com as ovelhas e os bois; espalhou as moedas e derrubou as mesas dos cambistas. 16 E disse aos que vendiam pombas: “Tirai isto daqui! Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio!” 17 Seus discípulos lembraram-se, mais tarde, que a Escritura diz: “O zelo por tua casa me consumirá”. 18 Então os judeus perguntaram a Jesus: “Que sinal nos mostras para agir assim?” 19 Ele respondeu: “Destruí este Templo, e em três dias o levantarei”. 20 Os judeus disseram: “Quarenta e seis anos foram precisos para a construção deste Santuário e Tu o levantarás em três dias?” 21 Mas Jesus estava falando do Templo do seu Corpo. 22 Quando Jesus ressuscitou, os discípulos lembraram-se do que Ele tinha dito e acreditaram na Escritura e na palavra d’Ele (Jo 2, 13-22).
I – A cabeça e mãe de todas as igrejas
A Igreja celebra com esplendor a festa da Dedicação da Basílica de São João de Latrão, que ostenta o título honorífico de “Omnium urbis et orbis ecclesiarum mater et caput”, ou seja, “Mãe e cabeça de todas as igrejas da cidade [de Roma] e do mundo”. É ela a Catedral do Papa, ao contrário do que se costuma pensar devido ao papel hoje desempenhado pela Basílica de São Pedro, a qual, na verdade, é apenas uma das quatro basílicas papais da Cidade Eterna.
Até o exílio dos Papas em Avignon, no século XIV, viviam eles no Palácio de Latrão, antiga propriedade da família Laterano, nome pelo qual ficou conhecido. O cônsul romano Pláucio Laterano, por suspeita de conspiração, foi morto pelo infame Nero que lhe confiscou os bens, dentre os quais esse edifício, na mesma época em que movia a perseguição aos cristãos.1 Não imaginava o tirano que, anos mais tarde, tudo aquilo seria doado à Igreja pelo imperador Constantino, e tornar-se-ia residência dos sucessores de Pedro e primeira basílica da Cristandade. O Papa São Silvestre dedicou-a no ano 324.2
Nesta basílica encontramos não só vestígios de variados estilos artísticos, graças às obras de embelezamento e ampliação realizadas ao longo dos séculos, mas também numerosas e valiosíssimas relíquias. Dentre as principais contam-se a mesa onde foi celebrada a Santa Ceia (cf. Mt 26, 20-28; Mc 14, 18-24; Lc 22, 14-17), parte do tecido purpúreo com que os soldados revestiram o Divino Redentor na Paixão (cf. Mc 15, 17; Jo 19, 2), as cabeças de São Pedro e de São Paulo, e a taça na qual São João Evangelista, segundo uma antiga tradição, foi obrigado a tomar um veneno que, por milagre, não lhe fez mal.
Um elo entre o Céu e a Terra
Por ser a Catedral de Roma, São João de Latrão possui um estreito vínculo com a pessoa do Sumo Pontífice, elo entre nós e a eternidade: “tudo o que ligares na Terra será ligado nos Céus, e tudo o que desligares na Terra será desligado nos Céus” (Mt 16, 19). Devido a esta prerrogativa a basílica passou a ser um símbolo da unidade da Igreja.
Convém ainda levarmos em consideração que, em sua sabedoria, a Santa Igreja estabelece o Ciclo Litúrgico, dentre outras razões, com o intuito de prolongar pelos séculos afora as graças concedidas no momento histórico comemorado. E assim como ao celebrar cada Natal com verdadeira piedade somos favorecidos com as bênçãos dadas a Nossa Senhora, São José e aos pastores no Presépio, na festa de hoje somos convidados a participar das graças e da alegria sobrenatural dos católicos de Roma quando o Papa tomou posse de sua sede episcopal oficialmente, podendo gozar de plena liberdade religiosa.
Nascida sob o signo da perseguição
Para melhor compreendermos a importância desta data, lembremo-nos de que a Santa Igreja Católica nasceu sob o signo da perseguição, em circunstâncias por vezes tão violentas que obrigavam os primeiros cristãos a se refugiar nas catacumbas — os cemitérios cristãos — para praticar o culto.3 Era costume na Roma Antiga escavar extensas galerias subterrâneas, verdadeiros labirintos, nas quais sepultavam os mortos. Transitar por elas era perigoso, pois quem o fizesse podia se perder com facilidade, sem ter como retornar. Nas épocas de perseguição, os irmãos que nos precederam com o sinal da Fé precisavam embrenhar-se nessas profundezas — naquele tempo sem dispor de luz elétrica —, com grande risco de serem denunciados, presos e supliciados. No Coliseu e no Circo Máximo grande número de cristãos manifestaram sua adesão à Fé com a própria vida, ao serem mortos pelas feras na arena diante do público ou em meio a terríveis tormentos.
Nas catacumbas também se comemorava devotamente o aniversário do martírio dos que tinham derramado o sangue para dar testemunho de Cristo, junto a seus restos mortais lá conservados, costume que deu início à veneração das relíquias dos Santos. Três séculos de fidelidade nessa situação nos mostram, sem dúvida, a extraordinária força da Igreja em seu nascedouro!
A liberdade de culto outorgada por Constantino com a promulgação do Edito de Milão, em 313, por influência de sua mãe Santa Helena, e o consequente pulular de incontáveis igrejas por todo o império — dentre as quais a Basílica de Latrão ocupa um posto proeminente — representaram para os fiéis indescritível alívio e alegria. Expressivo é o testemunho de Eusébio de Cesareia ao retratar o exultar do povo cristão com o advento dessa nova era da História da Igreja: “um dia esplendoroso e radiante, sem nuvem alguma que lhe fizesse sombra, ia iluminando com seus raios de luz celestial as igrejas de Cristo pelo universo inteiro, […] transbordávamos de indizível gozo, e para todos florescia uma alegria divina em todos os lugares que pouco antes se encontravam em ruínas pela impiedade dos tiranos, como se revivessem, depois de uma longa e mortífera devastação. E os templos surgiam de novo desde os fundamentos até uma altura imprevista, e recebiam uma beleza muito superior à dos que anteriormente haviam sido destruídos”.4
Por isso a festa da Dedicação da Basílica do Latrão foi instituída em Roma, expandindo-se mais tarde, e hoje consideramos com júbilo esse templo grandioso, que até nossos dias impressiona por seu esplendor.
II – Leituras altamente simbólicas
Para a Missa desta festa foram escolhidas leituras altamente simbólicas, sendo a primeira delas extraída da Profecia de Ezequiel (47, 1-2.8-9.12), belíssima e rica em significado. Narra ele a visão em que é levado ao Templo de Jerusalém, de onde manam águas que vão se tornando cada vez mais caudalosas a ponto de ser impossível transpô-las. Trata-se de uma imagem da fundação da Igreja Católica.
Por sua influência benéfica, rios de graça são derramados sobre o mundo, fecundando suas margens e fazendo nascer árvores pródigas em frutos: as virtudes, os dons de Deus, o bom exemplo e a santidade que ela promove e alimenta. De seus ramos brotam folhas com propriedades curativas, pois se uma alma adquire um vício, sofre uma queda ou apresenta qualquer fraqueza, junto a ela está a Igreja com os remédios para saná-la: a Penitência e os demais Sacramentos, a direção espiritual e a oração.
As figuras — tomadas de elementos da natureza — empregadas nesta passagem mostram a força do Corpo Místico de Cristo, que não só goza de imortalidade, mas está em contínuo desenvolvimento, comparável a um rio já impetuoso em suas origens, que se vai alargando, fertiliza, transforma e dá vida a tudo. Essa é a Igreja!
Outro importante aspecto desta leitura é a sua harmoniosa conjugação com o Evangelho, dando o tonus de como este deve ser analisado.
A polêmica marca o início da vida pública de Jesus
13 Estava próxima a Páscoa dos judeus e Jesus subiu a Jerusalém.
A magnífica cena da expulsão dos vendilhões do Templo, descrita por São João, ocorreu durante a primeira Páscoa da vida pública de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ele já havia convertido a água em vinho nas Bodas de Caná (cf. Jo 2, 1-12), e subiu com seus primeiros discípulos a Jerusalém, sem dúvida acompanhado por Nossa Senhora e outras pessoas mais próximas.
Cumpre ressaltar que, segundo consta nos outros Evangelhos, Jesus tomou semelhante atitude nesse recinto sagrado ao menos duas vezes.5 Uma foi no início de sua pregação, narrada neste trecho, e outra alguns dias antes da Paixão (cf. Mt 21, 12-13; Mc 11, 15-19; Lc 19, 45-48). Em ambas as situações encontramos Nosso Senhor manifestando um aspecto de sua divina personalidade que desconheceríamos se não fosse a circunstância referida pelo texto sagrado: a cólera do próprio Deus, a indignação do Onipotente, vista através dos véus da natureza humana.
Intolerável profanação do lugar santo
14 No Templo, encontrou os vendedores de bois, ovelhas e pombas e os cambistas que estavam aí sentados.
Por ocasião da Páscoa, reuniam-se em Jerusalém judeus vindos de toda a parte para cumprir o preceito de visitar o Templo. A Lei prescrevia o oferecimento de vítimas em holocausto — bois, cordeiros, pombos e rolas —, mas, como é compreensível, quase ninguém trazia de longe os animais para esse fim. Os peregrinos também deviam pagar o imposto anual do Templo em moeda judaica. Como na época havia israelitas dispersos por inúmeras nações, cada qual com a moeda própria, ao chegarem de viagem eram obrigados a procurar negociantes que efetuassem o câmbio.6 As moedas estrangeiras, sobretudo a romana, circulavam livremente pela Judeia. Quando os príncipes dos sacerdotes e os escribas puseram Nosso Senhor à prova, a propósito da liceidade de se pagar imposto a Roma, Ele respondeu apontando para a efígie de César gravada no denário que Lhe fora mostrado por eles (cf. Lc 20, 20-26). O pormenor nos permite concluir que levavam consigo dinheiro romano além do hebraico, pois o primeiro lhes possibilitaria comerciar com todos, enquanto o segundo só entre os compatriotas.
As necessidades do culto acima descritas deram margem ao estabelecimento de um verdadeiro comércio de animais e de uma praça de cambistas no átrio do Templo, chamado Pátio dos Gentios, onde o acesso aos estrangeiros ainda era permitido. Ali a movimentação se assemelhava à de um mercado ou de uma feira cheia de vida dos dias de hoje, acrescida de manifestações do temperamento oriental, muito comunicativo e afeito a cânticos e discussões. A soma de todos esses elementos resultava num tumulto inadmissível naquele recinto incomparavelmente sagrado, a ponto de a simples lembrança desses fatos nos dar a impressão de um Templo profanado. Podemos fazer ideia da inconveniência do ambiente se imaginarmos o interior de uma das nossas atuais igrejas ocupado por comerciantes que vendem produtos e se comunicam aos gritos, perturbando a paz. Quando Nosso Senhor entrou no Templo e constatou esse quadro de agitação, visto por Ele enquanto Deus desde toda a eternidade, resolveu utilizar a força.
Mãos que abençoam também castigam
15 Fez então um chicote de cordas e expulsou todos do Templo, junto com as ovelhas e os bois; espalhou as moedas e derrubou as mesas dos cambistas.
Como devemos entender o fato de Jesus, a substância da própria Bondade, dar vazão ali à sua divina cólera? Ele, de quem São Pedro diz que “pertransivit benefaciendo — andou fazendo o bem” (At 10, 38). Ele, que Se comove às portas da cidade de Naim com a desolação de uma viúva junto ao féretro de seu filho, e o ressuscita (cf. Lc 7, 12-16); quando o vento e a procela ameaçam a barca dos discípulos, uma ordem sua acalma por completo a tempestade (cf. Mt 8, 26); preocupa-Se com cinco mil homens e suas respectivas famílias que O seguem a um lugar deserto, e lhes proporciona alimento (cf. Mt 14, 15-21); mais tarde, o timbre de sua voz, tão imponente e poderosa, ergue do sepulcro o amigo cuja morte O fizera chorar, morto havia quatro dias: “Lazare, veni foras! — Saia fora, Lázaro!” (Jo 11, 43). Ninguém recorre a Ele sem receber um benefício. Tão longe leva o Mestre a disposição de nos socorrer, que promete: “Qualquer coisa que Me pedirdes em meu nome, vo-lo farei” (Jo 14, 14). Caminhando para o fim da vida terrena, desejoso de afastar a perturbação das almas dos Apóstolos, diz: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz” (Jo 14, 27); e no Cenáculo, após a Ressurreição, volta a confortá-los antes de partir para o Pai: “A paz esteja convosco!” (Lc 24, 36).
Aquelas mãos curam todos os que se aproximam acometidos por qualquer enfermidade: tocam os olhos de um cego e este recupera a vista (cf. Mc 8, 25), os ouvidos de um surdo-mudo e, somando-se o gesto à palavra “Éfeta! — Abre-te!”, ele não só ouve como também fala (cf. Mc 7, 34-35). Mãos que livram a sogra de Pedro de uma febre (cf. Mt 8, 14-15), e ao segurarem a mão da falecida filha de Jairo restituem-lhe a vida (cf. Lc 8, 54-55).
Aquelas mãos feitas para abençoar, em determinado momento decidem dar uma bênção especial, com um hissope peculiar: um látego. Jesus, conhecedor de todos os segredos da natureza, terá escolhido fibras adequadas para tecer esse instrumento com maestria única. Não imaginemos que Ele acariciasse com suavidade e doçura as costas dos que lá se encontravam. Pelo contrário, usa de violência pondo-os para fora e derrubando as mesas dos cambistas, de maneira a fazer rolar as moedas pelo chão. Segundo se calcula, eram nada menos que duas mil pessoas transitando nessa área, e Cristo as expulsou sozinho, valendo-Se apenas de um chicote. Isso nos ajuda a medir não apenas a intensidade da cólera e a força de seu braço, mas, sobretudo, o ímpeto vindo do fundo de sua Alma, inteiramente aliado à ira divina. E assim como sabemos existir n’Ele quatro formas de conhecimento — o divino, o beatífico, o infuso e o experimental —, poderíamos considerar sua indignação sob cada um desses aspectos.
O grave pecado dos fautores do comércio
16 E disse aos que vendiam pombas: “Tirai isto daqui! Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio!”
As palavras de Nosso Senhor — “Tirai isto daqui!” — são impositivas, permitindo-nos comprovar mais uma vez seu império absoluto. Em seguida acusa-os por terem transformado um local tão sagrado quanto a casa de seu Pai numa “casa de comércio”. No futuro, ao expulsar de novo os vendilhões, Ele externará sua ira pela reincidência neste grave pecado, denominando o Templo conspurcado com um termo ainda mais incisivo: “covil de ladrões” (Mt 21, 13; Mc 11, 17; Lc 19, 46).
De fato, essa situação criada com o passar dos anos proporcionava renda ilícita não só aos vendedores e cambistas, mas em primeiro lugar aos membros do Sinédrio, de maneira particular à família sacerdotal de Anás. Haviam eles instituído um sistema de controle desse comércio e um monopólio sobre todos os trâmites ali efetuados. Livres de qualquer concorrência, aproveitavam-se das exigências legais para impor valores inflados, configurar roubos e extorquir do povo as mais variadas quantias.7
A verdadeira origem da indignação do Divino Mestre
17 Seus discípulos lembraram-se, mais tarde, que a Escritura diz: “O zelo por tua casa me consumirá”.
O modo de proceder de Nosso Senhor sugere uma pergunta: deixou Ele de ser bondoso naquela ocasião? Ele, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, não pode ter nenhuma reação desequilibrada ou defectiva; n’Ele tudo é perfeito, por ser a própria Perfeição. Como discernir, então, a sua misericórdia no momento em que emprega a força física? Como descobrir as qualidades do “Príncipe da Paz” (Is 9, 5) n’Aquele que empunha um açoite?
Quando se fala em paz, se esquece com frequência da célebre definição de Santo Agostinho: “pax omnium rerum, tranquilitas ordinis — a paz é a tranquilidade da ordem”.8 Onde não se estabelece a tranquilidade, ainda que haja ordem, não há paz; e tampouco se deve afirmar que ela existe havendo tranquilidade, mas sem ordem. Ora, os vendilhões atentavam contra a ordem e, além disso, perturbavam a tranquilidade. Cabia a Cristo, sublime modelo para todos os homens, constituir-Se como exemplo também dos que são chamados a utilizar a força para instaurar a disciplina e manter a paz, o que muitas vezes só é possível através de métodos impositivos.
Sendo Deus, Ele poderia ter agido nessa hora como mais tarde no Horto das Oliveiras. Ao se aproximarem os enviados dos pontífices e dos fariseus para prendê-Lo, Ele Se adiantou e perguntou: “A quem buscais?”. Responderam eles “A Jesus Nazareno”, e Ele disse “Ego sum! — Sou Eu” (Jo 18, 4-5). No mesmo instante todos caíram com a face por terra, pelo impacto de sua personalidade. Agora, entretanto, Ele mesmo confecciona e usa um chicote.
Em nossos dias, muitos manifestam dificuldade em compreender a conduta do Salvador nesse episódio, por não vislumbrarem ali os efeitos de sua misericórdia. Lembremo-nos de que Jesus assim procedeu para benefício das almas, com enorme empenho em perdoar, corrigir e conceder a salvação. Quem afirmaria que o Divino Mestre, de chicote na mão, deseja nos dar a felicidade? É indispensável partir sempre do princípio de que tudo quanto Ele fez não poderia ser melhor. Se Ele perdoa a adúltera (cf. Jo 8, 11), a samaritana (cf. Jo 4, 4-42), Santa Maria Madalena (cf. Mc 16, 9), cura os enfermos, ressuscita os mortos, multiplica os pães e os peixes (cf. Mc 6, 38-44) e até caminha sobre as águas (cf. Mt 14, 26), é com o intuito de favorecer todos, movido pelo mesmo zelo que manifesta pela casa de seu Pai, que vê maculada por um tumulto comercial e por interesses alheios à Religião.
Os judeus pedem um sinal
18 Então os judeus perguntaram a Jesus: “Que sinal nos mostras para agir assim?”
Com a insolente atitude de exigir de Nosso Senhor um sinal, na realidade eles pedem explicações sobre sua autoridade e a razão que O levou a expulsar os comerciantes. Querem uma prova, fiéis ao mau costume — característico de seus antepassados, desde remotos tempos — de acreditar tão só pela confirmação de acontecimentos espetaculares. Custa-nos avaliar que espécie de fé possuíam essas almas, pois se para crer precisavam testemunhar milagres estrondosos, onde estava o mérito?
No entanto, se realmente esperavam um sinal, deveriam reconhecer que o fato de um só homem afugentar milhares de pessoas era a demonstração claríssima de estar agindo por força sobre-humana. Numa época em que não existiam as armas de fogo, Ele nem sequer Se serviu da espada ou da lança, mas teceu um chicote de cordas, de si insuficiente para amedrontar todos os presentes. Em tese, bastaria dominar o seu braço para impedi-Lo de continuar e a vitória dos negociantes estaria assegurada. Eles poderiam tê-Lo prendido, interrogado e levado à morte no mesmo dia.
É evidente que não o tentaram fazer porque estavam tomados de pavor. Na verdade, ninguém teve coragem de se levantar contra Ele! Que outro sinal buscavam? Essa falta de reação dos maus, paralisados pelo temor imposto por Nosso Senhor, era demonstração de um tão extraordinário poder, que bem poderia afirmar Jesus: “O sinal que vós quereis é o medo que tendes de Mim!”. Todavia, Ele vai atendê-los, concedendo por misericórdia aquilo que pedem.
Um Templo superior ao Templo
19 Ele respondeu: “Destruí este Templo, e em três dias o levantarei”. 20 Os judeus disseram: “Quarenta e seis anos foram precisos para a construção deste Santuário e Tu o levantarás em três dias?”. 21 Mas Jesus estava falando do Templo do seu Corpo.
22 Quando Jesus ressuscitou, os discípulos lembraram-se do que Ele tinha dito e acreditaram na Escritura e na palavra d’Ele.
A enigmática resposta do Filho de Deus fê-los pensar, não sem grande culpa, que Ele pretendia destruir o Templo. Esta blasfema suposição seria mais tarde alegada junto ao sumo sacerdote e a todo o Sinédrio para endossar a sua condenação à morte (cf. Mt 26, 61; Mc 14, 58). Tanto a intenção quanto o dito do Divino Mestre foram, na verdade, bem diferentes.
Qual era a prova que Ele haveria de dar? A sua própria Ressurreição, pois os judeus iam matá-Lo, destruindo o Templo “do seu Corpo”, e Ele triunfaria da morte, cumprindo com exatidão esta profecia.
Nosso Senhor Jesus Cristo era plenamente homem, tinha Corpo e Alma, com inteligência, vontade e sensibilidade. Como todos nós, padecia cansaço, fome, sede e outras consequências do estado de contingência que assumira — exceto o pecado (cf. Hb 4, 15) —, como recorda São Cirilo de Alexandria: “Com efeito, está dito que Ele teve fome, que suportou as fadigas de longas caminhadas, o abatimento, o temor, a aflição, a agonia e a morte na Cruz. […] E assim como Ele é completo em sua divindade, também é completo em sua humanidade”.9
A partir do momento em que Deus, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, Se encarna e assume a nossa natureza, seu Corpo passa a ser o Templo perfeitíssimo de Deus — não apenas do Filho, mas também do Pai e do Espírito Santo — estabelecido na face da Terra como pedra angular, peça principal e Cabeça da Santa Igreja. Esse Templo, encontramo-Lo ainda hoje de forma invisível, mas real, na Eucaristia. E Deus deseja que se construam templos para abrigar o Templo verdadeiro da Santíssima Trindade, o Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo, oculto sob as Sagradas Espécies.
III – Nós também somos templos de Deus
O ensinamento do Apóstolo na segunda leitura (I Cor 3, 9c-11.16-17) nos dá o desfecho da Liturgia de hoje: “Acaso não sabeis que sois santuário de Deus e que o Espírito de Deus mora em vós?” (I Cor 3, 16). Pelo Sacramento do Batismo também nós nos tornamos templos de Deus, a um título muito superior ao do templo puramente material ou do tabernáculo. Este, por mais nobre e valioso que seja, não pode manter um colóquio com Cristo Jesus nem ser inabitado por Ele, e apenas O protege.
O primeiro Templo de Jerusalém, considerado como o ponto de referência máximo em todo Israel, foi destruído. Após a reedificação ele já não possuía a magnificência de outrora, e houve quem lamentasse o fato. Contudo, o profeta Ageu chegou a afirmar que o edifício anterior não conhecera a grandeza reservada ao segundo (cf. Ag 2, 9), a glória de ser visitado pelo Homem-Deus. De modo análogo, o templo que somos nós atinge a plenitude de sua beleza pela infusão da graça divina e pelos efeitos da presença do Corpo, Sangue, Alma e Divindade do Senhor na Sagrada Eucaristia.
Nosso templo deve ser sempre embelezado
Por isso, devemos cuidar desse templo vivo como Jesus cuidava de Si mesmo e estar totalmente dispostos a vencer qualquer paixão ou má inclinação para mantê-lo intacto, lembrando a justa ameaça de São Paulo: “Se alguém destruir o santuário de Deus, Deus o destruirá, pois o santuário de Deus é santo, e vós sois esse santuário” (I Cor 3, 17). Na medida em que somos íntegros, enriquecemos e aprimoramos nosso templo com vitrais, pinturas, símbolos, cores e belos mármores, e conforme crescemos em piedade eucarística, entregamo-nos a Nosso Senhor, fugimos do pecado e combatemos os nossos defeitos e caprichos, mais as suas paredes se tornam abençoadas e somos penetrados pela presença da Santíssima Trindade, que passa a falar com mais frequência no interior da alma.
Não permitamos a profanação desse templo
Portanto, que a acolhida de Jesus em nosso templo não se assemelhe à que Lhe foi dada no Templo de Jerusalém, que, embora O tenha recebido na Apresentação e nas suas múltiplas pregações, depois não quis reconhecê-Lo como Redentor, Sumo Pontífice e seu verdadeiro Senhor. Não profanemos nosso recinto sagrado, como não pode ser profanado o tabernáculo que contém o Santíssimo Sacramento. Não permitamos de maneira alguma o estabelecimento de um comércio ilegítimo em nossa alma, pior que o câmbio de moedas ou a venda de animais: a admiração pelas coisas do mundo que nos distanciam de Deus. Em quantas ocasiões da vida, especialmente neste tempo em que o pecado campeia por toda a Terra, corremos o risco de transformar nosso templo num “covil de ladrões”! Tomemos muito cuidado nessas circunstâncias para não trocarmos a “moeda” da eternidade pela do mundo.
Dois caminhos a escolher
Hoje somos colocados diante de dois caminhos: um no qual nos constituímos o templo vivo de Nosso Senhor Jesus Cristo que será glorificado, outro o do Templo de Jerusalém, que recusou o Homem-Deus e foi destruído, sem dele restar “pedra sobre pedra” (Lc 21, 6). Não é possível enveredarmos por uma terceira via: ou é a da aceitação plena ou a da rejeição total, iniciada muitas vezes por uma adesão a meias. Lembremo-nos de que toda mediocridade na busca da plenitude do espírito do Redentor significa uma recusa, e neste caso torna-se necessária uma reconstrução. Portanto, esta festa nos conduz a um exame de consciência e a uma tomada de atitude face à santidade séria, forte, rigorosa, vibrante e entusiasmada que Nosso Senhor espera de nós. Deus fez de nós um templo e, em certo momento, deveremos restituí-lo em ordem. Afinal, o templo do corpo foi-nos dado para que nós nos adoremos nele ou para rendermos culto ao Criador?
Senhor, purificai este templo!
Se em alguma ocasião nosso templo foi profanado, hoje é o dia de pedir: “Senhor, vinde com vosso chicote e expulsai os vendilhões que estão dentro de mim!”. Este é o dia da expulsão dos vendilhões do templo de nossa alma, caso tenhamos permitido que nela se fizesse comércio, transformando-a num “covil de ladrões”. Aproveitemos esta festa para assimilar com ardor o ideal de integridade e sermos verdadeiramente honestos, abandonando qualquer má inclinação que possa macular, ainda que seja num ponto mínimo, o vitral de nosso templo. Façamos desde já o propósito de tratar nosso corpo com todo respeito e veneração, e de nunca usá-lo para ofender a Deus. É preferível morrer que pecar, pois ao manter-se livre de qualquer comércio, o templo de cada um ressuscitará com a glória extraordinária que lhe é prometida por Aquele que recebeu do Pai o poder de fazer justiça. ◊
Notas