Os católicos de hoje muitas vezes carecem de noções elementares acerca de sua religião. Alguns nem sequer conhecem os motivos que os levam a ela pertencer. Não se dão conta de que sua Igreja é uma instituição divina, fundada há mais de dois mil anos pelo Verbo Encarnado, sobre a qual paira a promessa da imortalidade. Por ela, mártires entregaram suas vidas, sacerdotes e simples leigos lutaram até a morte, doutores gastaram sua existência no estudo e desenvolvimento de sua doutrina.
Talvez esse desconhecimento da grandeza da Igreja se deva ao fato de que seus maiores tesouros permanecem invisíveis para grande parte dos fiéis. Com efeito, em dois milênios ela adquiriu, pelo aprofundamento das verdades da Fé reveladas por Deus, riquezas incomparavelmente mais valiosas que todas as preciosidades materiais que ornam seus templos ao redor do mundo.
Tais riquezas a tornam Mãe e Mestra da verdade não somente de um povo, mas da humanidade inteira. E, por isso, trata-se de uma Igreja de caráter universal, católica.
Ao longo dos séculos, ela se manteve imaculada e fiel na pregação da verdade, apesar de, por vezes, as aparências sugerirem uma ideia contrária. Guiada pelo Espírito Santo, sempre engendrou filhos que, contra as expectativas do poder das trevas, brilharam como verdadeiros sóis de santidade, apontando aos homens, pela doutrina e pelo exemplo, o verdadeiro rumo a seguir.
Dentre esses luminares destaca-se, por sua lógica cristalina, São Tomás de Aquino.
O mundo medieval
Com o passar dos séculos a Fé cristã, batalhadora e vitoriosa, fez florescer uma era impregnada de bênçãos espirituais, em que os homens, vivendo em torno da Igreja e se nutrindo de seu ensinamento, chegaram a um desenvolvimento teológico nunca antes visto: a Idade Média.
No mundo em que vivemos é difícil ter noção do que foi verdadeiramente esse período histórico. Muito eloquentes são as palavras de Leão XIII ao descrevê-lo: “Tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava os Estados. Nessa época, a influência da sabedoria cristã e a sua virtude divina penetravam as leis, as instituições, os costumes dos povos, todas as categorias e todas as relações da sociedade civil. […] Organizada assim, a sociedade civil deu frutos superiores a toda a expectativa, frutos cuja memória subsiste e subsistirá, consignada como está em inúmeros documentos que artifício algum dos adversários poderá corromper ou obscurecer”.1
Essa época, na qual as escolas e as universidades floresceram com imenso vigor, tinha a fé como base de seu trabalho intelectual. O ensino continuava a apoiar-se na Hierarquia Eclesiástica, mas, ao mesmo tempo, procurava perscrutar os dados da Revelação para chegar a novas e inéditas conclusões.
A Teologia, “rainha das ciências”, via sua serva, a Filosofia, assumir uma importância crescente. Sobre o que a Teologia ensinava aos cristãos, em geral todos estavam de acordo. Entretanto, questionava-se o relacionamento da fé com a razão. Esta deveria ajudar aquela, ou o contrário? Qual seria o papel da Filosofia no pensamento cristão? Tais problemas, desde muito cedo, tiveram de ser enfrentados pelos pensadores medievais.
Aristotelismo cristão
Desde os Padres da Igreja, a Filosofia cristã havia sido eminentemente platônica. O aristotelismo, com seu realismo e seus métodos racionalistas, era pouco conhecido. Isso se devia, em grande parte, ao fato de os escritos do Estagirita terem chegado ao Ocidente, através de traduções do árabe ao latim, com não poucos erros e falsas interpretações. Basta dizer que, segundo algumas dessas versões, Deus não seria o criador do universo…
A controvérsia atingiu tal ponto de tensão que, em 1210, um concílio parisiense chegou a excomungar os aristotélicos. A situação, porém, mudaria com Gregório IX, e logo a Filosofia aristotélica ganharia cidadania no mundo cristão.
O primeiro teólogo que empregou o conjunto da Filosofia aristotélica para apoiar sua doutrina teológica foi o fundador da escola franciscana, Alexandre de Hales. Mais original e mais profundo ainda foi o dominicano Santo Alberto Magno, para quem a razão não só tinha o direito, mas também o dever de demonstrar o que é demonstrável a respeito da fé, e cujo projeto consistia em tornar os ensinamentos de Aristóteles acessível aos latinos, incorporando na cultura ocidental a vasta herança científica que o mundo árabe havia conservado e acrescentado.2
Contudo, a palavra final caberia ao homem que marcaria a posteridade com sua doutrina e se tornaria o eixo central do pensamento cristão, num equilíbrio justo entre razão e fé: São Tomás de Aquino.
Síntese tomista entre fé e razão
Para o Doutor Angélico, a Filosofia era de ótima serventia para a Teologia, pois permitia demonstrar alguns pressupostos da fé acessíveis à razão natural, como a existência e a unicidade de Deus, bem como ilustrar, mediante oportunas similitudes, certas verdades de fé e refutar racionalmente os argumentos que se lhe opunham.3 Ele percebia que o aristotelismo, purificado das interpretações errôneas dos árabes, podia fornecer à Teologia bases muito mais sólidas do que as do agostinianismo platônico.
Tendo estudado com Santo Alberto Magno em Paris e em Colônia, São Tomás foi além da empresa de seu mestre e utilizou-se do aristotelismo para sintetizar a Filosofia Antiga e o dogma cristão. Nascia uma das maiores obras filosóficas e teológicas que os séculos veriam.
Um diálogo amistoso entre fé e razão, onde uma auxilia a outra, tornou-se uma das notas mais peculiares do pensamento do Aquinate. É o que Bento XVI comenta em uma audiência geral no ano de 2010: “O mundo da racionalidade, a Filosofia pensada sem Cristo e o mundo da fé são compatíveis? Ou então se excluem? […] São Tomás estava firmemente convencido da sua compatibilidade; aliás, que a Filosofia elaborada sem o conhecimento de Cristo praticamente esperava a luz de Jesus para ser completa. Esta foi a grande ‘surpresa’ de São Tomás, que determinou o seu caminho de pensador. Mostrar esta independência de Filosofia e Teologia e, ao mesmo tempo, a sua relacionalidade recíproca, foi a missão histórica do grande mestre”.4 Além disso, entre seus escritos de maior renome encontra-se, por exemplo, a Suma contra os gentios, na qual ele demonstra racionalmente, para aqueles que não possuem fé, as razões para crer.
Mas a atividade de São Tomás não se reduziu à sua magistral síntese entre fé e razão. Sua incomparável obra teológica – cuja maior expressão é, sem dúvida, a Suma Teológica – baseada numa Filosofia “purificada” por ele mesmo, rendeu à Santa Igreja uma importantíssima, para não dizer indispensável, contribuição.
Luminar da Santa Igreja
Ao tecer considerações sobre um homem de tal envergadura e sobre sua influência na História da Igreja, corremos o risco de ficar muito aquém da realidade… Com efeito, as chances de se analisar superficialmente um personagem são proporcionais ao tamanho da figura contemplada.
Basta nos atermos ao modo como a vida e a obra do Aquinate foram consideradas por sucessivos Pontífices, para nos darmos conta de que não estamos diante de um homem qualquer.
“Ele [sozinho]”, assegura João XXII, “iluminou a Igreja mais que todos os outros Doutores; em um ano se aproveita mais a leitura de seus escritos, do que estudando a doutrina de outros durante a vida inteira”.5 Inocêncio IV, por sua vez, chegaria a afirmar sobre a doutrina do Doutor Angélico: “Nunca se verá aqueles que a seguirem se apartarem do caminho da verdade, e sempre será suspeitoso de erro aquele que a impugnar”.6
Com Leão XIII e sua encíclica Æterni Patris, o Aquinate receberia os maiores louvores. O documento apresenta as razões pelas quais o ensinamento tomista está em íntima consonância com o Magistério da Igreja, e deve ser adotado como guia oficial dos estudos filosóficos e teológicos. Por isso, São Tomás foi declarado padroeiro das escolas e universidades católicas.
Para esse Pontífice, os ensinamentos do Doutor Angélico não se restringem, de forma alguma, ao âmbito da família dominicana: “É um fato constante que quase todos os fundadores e legisladores das Ordens Religiosas ordenaram a seus companheiros que estudassem as doutrinas de São Tomás e aderissem a elas religiosamente, dispondo que a ninguém fosse lícito separar-se impunemente, por pouco que fosse, das pegadas de tão grande mestre”.7 Leão XIII vai mais além e encontra no ensinamento de São Tomás a solução para os males da sociedade civil e familiar que “viveria certamente mais tranquila e mais segura se nas academias e nas escolas se ensinasse doutrina mais sã e mais conforme ao ensinamento do Magistério da Igreja, tal como o contêm as obras de Tomás de Aquino”.8
Os Papas do século XX também se mostram prolixos em louvar a sabedoria do Santo de Aquino. Para Paulo VI, São Tomás “possuiu, no máximo grau, a coragem da verdade, a liberdade de espírito ao enfrentar os novos problemas, a honestidade intelectual de quem não admite a contaminação do Cristianismo pela Filosofia profana, mas tampouco defende a rejeição apriorística desta”. Por esta razão, o Doutor Angélico soube conciliar a secularidade do mundo com a radicalidade do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, “evitando assim a tendência antinatural de negar o mundo e seus valores, sem por isso faltar às exigências supremas e inabaláveis da ordem sobrenatural”.9
João Paulo II, por sua vez, salienta a atualidade do pensamento tomista na encíclica Fides et ratio, de 14 de setembro de 1998, recordando que o Aquinate “foi sempre proposto pela Igreja como mestre de pensamento e modelo quanto ao reto modo de fazer Teologia”.10 Nesse documento, o Papa polonês confere ao Santo o belo título de “Apóstolo da verdade”.11
Além dos Pontífices individualmente considerados, diferentes concílios ecumênicos também tomaram sua doutrina como seguríssima, verdadeiro baluarte da ortodoxia: “Nos Concílios de Lyon, Vienne, Florença e Vaticano [I], pode-se dizer que São Tomás interveio nas deliberações e decretos dos padres, e quase foi o presidente”.12 No Concílio de Trento, junto aos livros que sobre o altar presidiam as sessões – as Sagradas Escrituras e os decretos dos Sumos Pontífices –, encontrava-se a célebre Suma Teológica do Santo. Que maior testemunho de aprovação poderia ser dado à sua obra magna? Mais recentemente, o Concílio Vaticano II recomendou vivamente o pensamento tomista em dois documentos: Optatam totius e Gravissimum educationis. E Bento XVI13 fez notar a importância conferida pela Igreja ao Doutor Angélico ao citá-lo por sessenta e uma vezes em seu catecismo.
Por fim, vale a pena lembrarmos que a doutrina teológica de São Tomás de Aquino se tornou “lei da Igreja” quando o novo Código de Direito Canônico14 demonstrou categórica preferência pelos ensinamentos desse doutor na formação dos clérigos.
Aos que procuram a verdade
Uma das notas características e até essenciais da elaboração do pensamento de São Tomás está na sua convicção sobre a unicidade da verdade: Deus é a Verdade Absoluta e todas as outras verdades que existem esparsas pelo universo são decorrentes desta, primeira e essencial.
Muitos séculos se passaram desde a morte do Doutor Angélico, ao longo dos quais o mundo foi se transformando. Na sociedade atual, em que reina o relativismo, a famosa indagação de Pôncio Pilatos torna-se cada vez mais frequente: “Que é a verdade?” (Jo 18, 38). Mais do que ignorá-la, as pessoas se negaram a procurá-la onde ela realmente está.
Quantas filosofias novas surgiram quais “pedras de tropeço”! Quantos modos de vida divergentes do Evangelho! Quantos pensadores que, em nome de um presunçoso e falso progresso da razão, deturparam a verdade única e imutável! Deixando penetrar a confusão das mentes até mesmo no recinto sagrado, quantos mestres culpados desfiguraram e continuam a desfigurar a imaculada doutrina da Igreja, perturbando e escandalizando os pequeninos!
Ora, diante de tanto reconhecimento prestado pela Esposa Mística de Cristo à doutrina que São Tomás legou-lhe, a ponto de ver nela uma referência segura em matéria teológica e propor, mais de uma vez, que fosse lecionada com toda a propriedade, uma pergunta se apresenta: aqueles que visam combater e menosprezar o genuíno ensinamento tomista não estão lutando contra a própria doutrina e, mais, contra a própria “mentalidade” da Igreja?
Encontramo-nos há sete séculos da canonização de um dos maiores luminares do Cristianismo, e nunca estivemos tão necessitados de seus ensinamentos!
Se somos daqueles que, de fato, querem que reine a verdade de sempre, a verdade católica, a única e imutável verdade, por que não recorremos ao ensinamento e à valiosa intercessão de São Tomás? Parafraseando a passagem bíblica (cf. Gn 41, 55), resta-nos recomendar com toda a propriedade: “Ide a Tomás!” A todos os autênticos amigos da sabedoria, os que vivem da verdade e para a verdade, este grande Santo foi e sempre será um ponto de referência incomparável. ◊
Notas
1 LEÃO XIII. Immortale Dei, n.28. Petrópolis: Vozes, 1960, p.15.
2 Cf. SÁNCHEZ HERRERO, José. Historia de la Iglesia. II: Edad Media. Madrid: BAC, 2005, p.406-407.
3 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Super De Trinitate. Prœmium, q.2, a.3.
4 BENTO XVI. Audiência geral, 16/6/2010.
5 JOÃO XXII, apud BERTHIER, OP, J. J. Sanctus Thomas Aquinas. “Doctor Communis” Ecclesiæ. Romæ: Editrice Nazionale, 1914, p.45.
6 INOCÊNCIO IV, apud LEÃO XIII. Æterni Patris.
7 LEÃO XIII. Æterni Patris.
8 Idem, ibidem.
9 SÃO PAULO VI. Lumen ecclesiæ, n.8.
10 SÃO JOÃO PAULO II. Fides et ratio, n.43.
11 Idem, n.44.
12 LEÃO XIII. Æterni Patris.
13 Cf. BENTO XVI. Audiência geral, 2/6/2010.
14 Cf. CIC, cân.252 §3.